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Regresso ao futuro... na ciência

24 de novembro, 2015

Resolveu-se manter “ligado à máquina” o anterior governo, apenas amputado das suas “gangrenas” mais óbvias (onde era claro que estava o Nuno Crato!)... mas nesta reflexão vou ignorar este “pré-cadáver anunciado” do XX governo. (Por isso, “confundirei” propositadamente neste texto o ministério Crato com esta espécie de sucedâneo-a-prazo-reduzido ao qual foi dada posse recentemente... e que até já poderá ter caído na data de publicação deste texto!)

Preocupa-me, sim, que nos preparemos para o XXI governo constitucional (seja dentro de duas semanas... ou só uns meses mais tarde, dependendo de certas “casmurrices”...), e estou a assumir que este resultará, pela primeira vez em “muitos” anos, de um diálogo a convergir para uma aliança do pensamento de esquerda plural, sem exclusões. Ou seja, acredito que teremos pela frente ministérios “competentes (...) que procurem com sinceridade a colaboração (sindical)”, como há uns anos escrevi, e que portanto teremos de ter propostas nossas para apresentar, pois já não será suficiente o “sermos contra”.

Restringindo-me à Ciência e Investigação Científica, com óbvias repercussões no ensino superior, e atendendo ao passado recente, neste aspeto acho vantajosa a recuperação de um ministério próprio para a ciência e ensino superior, que necessitam neste momento uma atenção redobrada e específica, face aos anos negros que viveram, para evitar que se torne definitivo o retrocesso que o atual governo promoveu. Claro que neste, como noutros domínios, mais importante do que a estrutura governamental, é sempre a política e a atitude perante os vários atores envolvidos neste sector que determinará o rumo correto.

A primeira tarefa do próximo ministério, perante uma ciência com muitos domínios, grupos e instituições moribundos, será a recuperação da saúde da ciência em Portugal; e sempre esta recuperação terá de passar pela valorização e recuperações dos nossos investigadores, que são o sangue desta mesma ciência.

Uma análise muito sucinta do descalabro científico provocado nestes 4 anos leva-me a considerar três linhas fundamentais de erros cometidos (que é importante clarificar, para alterar totalmente):

  • Uma ciência sem cientistas (ou com muitos menos... e garantidamente precários e “descartáveis”): o fim dos contratos a prazo do Compromisso com a Ciência (que sempre insistimos que, após avaliação, se tornassem efetivos) permitiu que este governo dizimasse o número de investigadores contratados, e mesmo de bolseiros de investigação, pois alegadamente o país não necessitava do seu trabalho especializado, ou então estes não seriam excelentes... O resultado está à vista: Portugal tinha atraído 38% de estrangeiros nestes investigadores, doutorados e altamente qualificados... e agora restam 8%; relativamente ao elevado número de investigadores que vínhamos a formar (entenda-se, doutoramos, que é o início de uma carreira investigativa), tendo atingido níveis superiores à média europeia, neste aspeto, deixamos agora que mais de metade emigrem para outros países, sem sequer importarmos um número de investigadores estrangeiros que supram este défice!

     
  • Uma ciência só para alguns: embora as verbas globalmente investidas (“gastas”, segundo o governo) na investigação não tenha diminuído muito, o número de centros de investigação com financiamento que lhes permita funcionar caiu para metade, havendo uma grande concentração de financiamento público em poucos centros/institutos/fundações – algumas privadas, já financiadas por outras formas! – e o abandono acentuado de financiamento a certos domínios de conhecimento, ligados às ciências puras e às ciências sociais e humanísticas, privilegiando os domínios ditos “aplicados, sob a desculpa de que são os preferidos dos “mercados”.

     
  • Uma seleção opaca, em que só “alguns” sabem: para garantirem os objetivos anteriores, valeu tudo, desde a mentira sobre as anteriores avaliações científicas da década anterior (consideradas “caseiras” quando foram feitas por painéis internacionais bem mais alargados que os das últimas!), e “encomendou-se” a divulgação destas falsidades a alguns cientistas conhecidos que serviram de “grilo-falante” de Nuno Crato e do governo... para o que até se criou um “Conselho”, nomeado pelo primeiro-ministro, para contrabalançar as posições muito críticas do Conselho dos Laboratórios Associados, presidido pelo Prof. Quintanilha;  cometeram-se ilegalidades e não se cumpriram as leis e regulamentos que este mesmo governo produzira; “vendeu-se” a avaliação dos centros de investigação a uma entidade internacional (ESF, European Science Foundation), que não tinha nenhuma experiência ou capacidade de avaliação de um sistema científico completo de um país, mas apenas de alguns domínios científicos especializados... E aqui surgem como “estranhos” alguns cargos obtidos como “favor”...

Chegados a este ponto “comatoso” da nossa estrutura científica (nos seus aspetos humano e material, para alguns centros e infraestruturas), impõe-se como tarefa prioritária do XXI governo o tal “regresso ao futuro”, não num sentido passadista ou acrítico do que se passara na Ciência durante quase 20 anos, mas sim de voltar a um consenso alargado sobre o futuro deste sector: a maioria destes anos decorreram nos ministérios de Mariano Gago, mas também atravessando governos de direita, e durante este período, com todos os erros e defeitos a melhorar, houve um grande consenso sobre o enorme desenvolvimento científico produzido, que nos trouxe do fundo de todos os índices europeus no sector para um nível comparável, e por vezes superior, ao da média europeia... tendo-nos convertido, num prazo record, num ambiente acolhedor para a investigação científica, capaz de atrair, em certos campos, colaboradores estrangeiros do mais alto nível, e integrando-nos assim numa rede de colaborações científicas internacionais de forma nunca anteriormente atingida.

Este consenso era de tal forma alargado que o próprio programa do governo de Passos Coelho elogiava o percurso da ciência nos anos anteriores... antes de começar a tentar destruir esse património. Não é tudo para repor como estava – e as estruturas sindicais muitas vezes dirigiram críticas construtivas ao governo, sobretudo nos aspetos das carreiras dos investigadores, e na sua inaceitável precariedade – mas há que tornar a consensualizar o rumo a dar à Ciência em geral para a próxima década... e, à luz disso, corrigir as enormes injustiças que resultaram do “vendaval destrutivo” das últimas direções da FCT. Mas este é um domínio em que os cortes abruptos e as soluções precipitadas de curto termo são contraproducentes, pois podem produzir males irreversíveis ao sistema.

Podemos compreender a enormidade das tarefas que se imporão a esse novo governo para corrigir injustiças, e relançar de novo a esperança nas pessoas que trabalham, neste sector como outros, e que é impossível resolver tudo instantaneamente, e portanto seremos pacientes na implementação... mas implacáveis no cumprimento dos princípios: o governo, em nome do estado, tem de assegurar que se comporta como “pessoa de bem” (o que claramente o governo atual não foi!), e aceitar escrever, “preto no branco”, que aceita o princípio da reparação das injustiças, e se passará a reger pelas boas regras europeias recomendadas desde 2005 para este sector (a Carta Europeia do Investigador e o Código de Conduta para o Recrutamento dos Investigadores... que afinal de contas até foram aprovadas por uma CE presidida por Durão Barroso!!!).

Por isso mesmo, concentrando-me nas tarefas e objetivos a curto prazo, e como devemos contribuir construtivamente para que o governo possa reparar, dentro do que ainda for possível, as injustiças de que foram vítimas, sobretudo desde meados de 2013, quer os investigadores (contratados ou bolseiros), quer os centros de investigação: devemos ter a consciência bem clara de que é impossível corrigir totalmente todas as maldades e injustiças provocadas, ao fim de tanto tempo de atraso, e que devemos ter em atenção de não produzirmos nós novas injustiças ao intentarmos corrigir as anteriores. Por isso, avanço aqui algumas ideias para discussão:

  1. Não reconhecendo transparência nem justiça nas avaliações de centros e investigadores que decorreram sobretudo nos últimos 2 anos, mas aceitando que delas decorreram compromissos com investigadores e com programas/centros de investigação que não foram cortados nessa altura, não considero aceitável que se anulem totalmente as avaliações anteriormente feitas, quer a Centros, quer a investigadores/bolseiros; por isso mesmo, não seriam questionados, no período contratado, as bolsas, concursos e programas que tenham sido aprovados e financiados neste período.
  2. A anulação dos efeitos das avaliações deveria ocorrer apenas para aqueles (centros/investigadores) que, numa base voluntária, impugnassem agora (ou recuperassem uma impugnação feita antes) a sua avaliação ocorrida neste período; para o exercício – forçosamente demorado – deste novo processo de avaliação, bem como para permitir as correções necessárias no final do processo, será necessário inscrever no orçamento uma verba adicional, que não faça depender excessivamente a seleção na avaliação de uma escassez de verbas para investigação... (Contudo, atendendo a que a verba total de financiamento da Ciência é uma parcela extraordinariamente pequena do orçamento do estado, e que uma boa parte do financiamento de instituições e investigadores já está consignado, sendo portanto apenas necessário um reforço, e ainda porque se pode/deve conseguir boa parte deste através de verbas europeias do Horizonte 2020, não penso que haja uma dificuldade maior neste reforço necessário!).

     
  3. A precariedade e a falta de transparência têm de ser definitivamente banidos da gestão da Ciência: os investigadores contratam-se para uma carreira, em que são definidos deveres e direitos, formas transparentes de avaliação e progressão, de acordo com a Carta Europeia do Investigador e o Código de Conduta para o Recrutamento dos Investigadores, acima referidos. Tem de ser proibida a contratação de investigadores fora do seu estatuto de carreira – que estamos dispostos a negociar para que seja melhorado! - pois este já inclui opções para situações especiais de contratação, excecional e justificada, como convidados.

     
  4. Até à implementação total do ponto anterior, e de acordo com a diretiva europeia 1999/70/CE, que se refere aos contratos temporários sucessivos, e que Portugal resiste a cumprir, neste sector como nos restantes sectores da Educação, a Fenprof apresentou propostas que, para os investigadores/docentes que estavam nas condições para integrar a carreira, e tinham um certo tempo mínimo de atividade profissional no sector, essa integração fosse imediatamente feita – aliás, uma medida praticamente sem agravamento de custos! Esta deve ser a base de resolução desses casos prementes.

Vamos a isto! Por uma vez, podemos sonhar com um “regresso ao futuro”... apesar de “alguém” não estar arrependido de ter adiado por duas semanas este sonho!

Manuel Pereira dos Santos
Conselheiro Nacional da FENPROF
(2015.10.31)