Opinião
Henrique Santos e José Cavalheiro

Consequências da Revisão Curricular do Ensino Secundário no Ensino da Engenharia

21 de janeiro, 2005

Foi aprovado no Conselho de Ministros do dia 7 de Janeiro o diploma de Reforma Curricular do Ensino Secundário (RCES) disponível no endereço electrónico http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/FBB007A2-2191-49A5-8C82-91C9DE779DDE/0/DL_Revisao_Curricular_ESec.pdf.

Apesar de numerosas críticas apresentadas por variados sectores durante a fase de discussão, o documento mantém disposições altamente preocupantes, que a subsistirem terão enorme impacto na formação das novas gerações.

Num momento em que a procura dos cursos de Engenharia sofre uma clara quebra, devida a causas insuficientemente caracterizadas pelos organismos dos Ministérios da Educação e da Ciência e do Ensino Superior, mas entre as quais se deve encontrar uma questão de moda e uma fuga às disciplinas de Matemática e Física, importa reflectir sobre a influência das medidas tomadas pelos Ministérios que tutelam a Educação no perfil dos quadros de que o País vai dispor no futuro.

Se existe a preocupação de incrementar o número de licenciados nas áreas da Engenharia e das Ciências Exactas, nas quais o País é deficitário, visando transferir o modelo económico de produção centrado no factor "mão-de-obra barata" para "mão-de-obra altamente qualificada", há que tomar medidas pro-activas que induzam a procura dessas áreas de formação superior; e isto porque essas áreas de formação são estratégicas, constituindo indicadores necessários à promoção de investimento e ao aumento de produtividade.

O laissez faire ou o "deixar o mercado funcionar" mais não é do que confiar a terceiros a condução da política de prioridades, pois a moda que momentaneamente se traduz na afluência maciça a alguns cursos não nasce de geração espontânea; os Ministérios que tutelam a Educação devem actuar e não ser meros anotadores das inclinações induzidas nos estudantes! Nomeadamente fornecendo aos alunos e respectivos agregados familiares dados sobre a empregabilidade associada às diferentes formações disponibilizadas pelo ensino superior, o que só é possível se existir um observatório que seja responsável por processar esta informação - e este observatório não existe! E se o governo não entender atrair os estudantes para as áreas de Engenharia e das Ciências Exactas, pode pelo menos sugerir-se que não os afaste e não contribua para degradar a qualidade da respectiva formação; há alterações desta índole estabelecidas na actual RCES, como se demonstra em seguida.

De facto a RCES veio tornar obrigatória no Curso de Ciências e Tecnologias (aquele que permite o ingresso nas Ciências Exactas, Saúde e Engenharia) apenas uma de duas disciplinas bienais: [Física e Química A] e [Biologia e Geologia]. Os alunos poderão frequentar no 10º ano as duas disciplinas ou uma delas apenas; se optarem pela [Biologia e Geologia], poderão ainda no 11º ano frequentar [Física e Química A] ou não; e se não o fizerem, concluirão o 12º ano sem frequentarem esta disciplina e obviamente sem frequentarem também a disciplina de Física ou Química individualizada que no 12º ano lhe daria seguimento.

Através desta Reforma Curricular, o governo dá explicitamente a orientação aos alunos que acabam de concluir o nono ano de que é possível virem a enveredar pela área das Ciências e Tecnologias sem aprofundarem os conhecimentos de Física e Química do ensino obrigatório. Assim, por via administrativa, passa a considerar-se oficialmente que se pode enveredar por uma carreira técnica sem conhecimentos em áreas estruturantes fundamentais (irá esta medida ser realçada como um factor positivo nas acções de promoção de Portugal como um local atractivo de investimento de alta tecnologia?)

Uma das razões para tornar estas disciplinas opcionais poderá ser a elevada taxa de insucesso, em particular no caso da Física. Compete ao Estado, como entidade reguladora, procurar e implementar soluções para as causas deste insucesso, em vez de adoptar medidas administrativas que diminuam a frequência de disciplinas problemáticas e assim se promova artificialmente o sucesso.

Quando a evolução tecnológica exige uma formação cada vez mais profunda no domínio das Ciências Exactas, o governo adopta, apesar das chamadas de atenção de muitas escolas e instituições profissionais, uma medida com efeitos catastróficos no acesso a esses cursos: de facto, não é necessário ser profeta para prever que o número de estudantes com as habilitações necessárias para o ingresso na Engenharia vai sofrer uma intensa redução, agravando a actual tendência de fuga desta área de formação.

E estarão os cursos de Engenharia em condições de manter a disciplina de Física como específica, tendo em conta a crise de procura por que têm vindo a passar? Poderão correr o risco de ficarem sub-povoados e suportarem o sub-financiamento consequente, se mantiverem essa exigência? Não estará a RCES a impor às Ciências Exactas e Engenharia que adulterem os seus critérios de ingresso, limitando as disciplinas específicas à Matemática?

Mais grave é que a formação deficiente em disciplinas estruturantes coincide com a redução da duração de cinco anos para quatro dos planos de estudo do Ensino Superior, imposta pela uniformização da arquitectura deste ensino aprovada na Declaração de Bolonha! A superação dum deficit que pode ir até três anos de aprendizagem não poderá ser conseguida no Ensino Superior, quando se vai contrair em 20% a actual dimensão curricular, sendo ainda certo que a RCES já prevê também a redução de 350 para 270 do número de horas de escolaridade global de Física e Química (CFQ) com a supressão da disciplina de Técnicas Laboratoriais.

Vem a propósito transcrever parcialmente o "Parecer da Sociedade Portuguesa de Física", emitido em Janeiro do corrente ano, durante o período de discussão pública do diploma, sobre o conteúdo do Documento Orientador da RCES, que como agora se verifica foi simplesmente ignorado:

"1º A Física, nas suas vertentes teórica, experimental e aplicada, deve ser um elemento estruturante da cultura científica do cidadão comum por constituir a base das actuais ciências experimentais e das tecnologias que delas emergem;

2º A Física deve fazer parte da formação básica dos estudantes que pretendem iniciar cursos superiores de ciências e de engenharia;

3º Um bom conhecimento de Física promove a inovação científica e tecnológica indispensável ao aumento da produtividade;

É preocupante a deficiente preparação científica de muitos estudantes que acedem ao ensino superior e também a daqueles que não seguem estudos terciários, os quais constituem a grande maioria dos cidadãos portugueses. Ora, o documento em apreço [RCES], contém disposições que não permitem alterar esta situação.

De facto, a matriz curricular proposta para o Curso de Ciências e Tecnologias retira as disciplinas de Física, Química, Biologia e Geologia do núcleo de disciplinas obrigatórias do ensino secundário, dando-lhes um carácter opcional. Isto não só empobrece a formação científica dos estudantes graduados pelo ensino secundário como, a manter-se o actual sistema de acesso ao ensino superior, obriga os estudantes a fazer opções definitivas de vida profissional quando terminam o ensino básico, o que é incontroversamente cedo demais.

Além disso a matriz curricular proposta contém incongruências evidentes, tais como:

a) permitir que um aluno ingresse numa escola de ciências, engenharia, medicina, farmácia, etc, sem nunca ter aprendido Física no ensino secundário, quando alguns desses cursos exigiram a frequência de três anos de Física nesse nível de ensino;

b) não permitir que os alunos do 12º ano possam frequentar pares de disciplinas que são hoje obrigatórias para ingresso em cursos universitários de grande procura (uma decisão deste teor deveria ser tomada em consonância com as escolas de Ensino Superior e com o Ministério da tutela);

Mesmo numa óptica duma opção não tecnológica, será possível avançar no estudo da Biologia e da Geologia, por exemplo, apenas com os conhecimentos elementares de Física e Química do 9º ano?

Como referiu o Prof Carlos Correia, da Fac de Ciências da UP, em documento tornado público: "A impressão de anti-Ciência tornou-se certeza ao analisar a revisão curricular do ensino secundário, em que há uma diminuição apreciável da formação científica dos alunos, quer a nível teórico quer prático, sem a necessária complementaridade das áreas científicas de Física, Química, Biologia, Geologia."

Em resumo, com a RCES corremos o risco de daqui a quatro anos assistirmos a uma queda abrupta no número de potenciais candidatos ao ingresso em Engenharia e dum modo geral a um claro empobrecimento da formação geral em disciplinas científicas essenciais como a Física e a Química. Esta formação deficiente não pode ser compensada no Ensino Superior, pois coincide com a redução da duração de cinco para quatro anos dos planos de estudo deste grau de ensino, imposta pela Declaração de Bolonha!

As consequências da persistência deste erro a outros níveis, nomeadamente na competitividade económica, são demasiado preocupantes para que possamos aceitá-los em silêncio. Contribuamos pois, dentro da esfera de influência de cada um, para criar um movimento por uma correcção à RCES que reponha o carácter de obrigatoriedade à disciplina bienal de [Física e Química A] no Curso de Ciências e Tecnologias.

Henrique Santos*

José Cavalheiro*

* Professores da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

Texto integral da intervenção proferida pelo Professor José Cavalheiro no encontro "Porto Cidade Região" em 12.02.04