Opinião
António Brotas

Os estudantes e a Universidade

17 de dezembro, 2003

A situação actual em que se encontra o nosso Ensino Superior é fundamentalmente devida a uma recusa em olhar a previsivel evolução global do sistema, a uma total (e muitas vezes voluntariamente aceite) incapacidade para tomar medidas para travar a sua degradação, à recusa de soluções inovadoras e ao feroz silêncio com que foram ignoradas, durante mais de 20 anos, críticas e chamadas de atenção para situações precisas a que era urgente por termo.

Cito um exemplo: ouvi, há dias, num encontro que teve a presença de técnicos do Ministério, a informação de que há casos de estudantes que entraram em escolas superiores de formação de professores com a nota de 5 valores no Secundário e delas sairam, 4 ou 5 anos depois, licenciados com 19 valores, nota com que concorreram a concursos para colocação de professores. Ignorado este tipo de problemas pelos gurus da nossa Opinião Pública, certamente pelo seu pouco interesse, o debate sobre o Ensino Superior trazido ao grande público está hoje, praticamente, reduzido à discussão do problema das propinas, o que facilita um certo ?moralismo económico? que assentou arraiais: ?não deve ser a Sociedade (ou o Estado) a ter despesas com os estudantes, que estão na Universidade para benefício próprio e são uns priviligiados?.

Esquece-se que os estudantes empenham na Universidade anos de vida que é o seu bem mais precioso, e que a formação que recebem vai, depois, (e ainda bem) ser aproveitada pelo Estado, pelos futuros patrões e pale Sociedade em geral.

Se a Sociedade entende que não precisa de Universidades, acabe com elas, mas se entende que são necessárias, então, aceite que as tem de pagar. Os estudantes das escolas militares não pagam propinas e recebem um salário, e assim deve ser enquanto o país entender que necessita de Forças Armadas. Aproveito o assunto para lembrar uma questão extremamente injusta: os estudantes do Ensino Superior têm o primeiro emprego por volta dos 25 anos. Para terem direito a uma reforma completa têm, assim, de trabalhar até uma idade francamente mais elevada que a maioria dos outros cidadãos. É de inteira justiça que, à semelhança do que se passa nas carreiras militares, para efeito de contagem do tempo de reforma, aos diplomados das Escolas Superiores e outras similares seja contada a duração dos cursos que tiveram de fazer (à custa própria, ou do Estado) para exercer os lugares que vieram a ocupar.

Mas, de momento, olhemos de fora o Ensino Superior. As escolas de qualidade e convenientemente planeada são, indubitavelmente, um dos factores fundamentais do desenvolvimento de um país e das suas regiões. O que infelizmente parece ter sido esquecido em Portugal, é que escolas e cursos sem qualidade assegurada e criados a eito para satisfazer interesses locais, são, também, factores de bloqueamento e atraso que comprometem gravemente o desenvolvimento de um país.

A proliferação e a ligeireza com que se criam cursos e escolas superiores (e a quase incapacidade em suprimir cursos sem alunos) atingiram em Portugal o nivel do risivel.

Quando a recém empossada Ministra da Ciência e do Ensino Superior diz que pretende por Portugal ao nivel dos países avançados da Europa aponta um objectivo fundamental que está ao nosso alcance, mas interrogo-me, sobre quais são as ideias, os projectos e os propósitos (e a coragem, também!) com que pretende por fim, ou pelo menos travar, situações hoje existentes, inteiramente anómalas em termos europeus, e que medidas pretende simultaneamente tomar para assegurar a recuperação e a melhoria futura, que são impossiveis sem crítica, e que provavelmente serão lentas.

Se a ministra não aparecer com propostas verdadeiramente inovadoras que rompam com a lógica burocrática e economicista do sistema e conquistem a adesão, pelo menos de parte dos intervenientes: docentes, estudantes e funcionários, a muito curto prazo ficará reduzida a discutir com os estudantes continuados e sucessivos aumentos de propinas num Ensino Superior cada vez pior e mais caro.

O Ensino Superior de um país só pode funcionar validamente com um mínimo de adesão de parte dos estudantes. Permito-me contar um pequeno episódio, que diz algo sobre a Universidade vista por dentro. Há talvez uns 15 anos, o laboratório da Cadeira de Termodinâmica do Técnico, de que era responsavel, foi transferido de um pavilhão para outro. Com o auxílio dos funcionários, os docentes mudaram os equipamentos, mas havia umas grandes bancadas que precisavem de pelo menos 8 pessoas para carregar com elas. A tarefa não competia aos funcionários da escola. Por estranho que pareça, este é o exemplo de um tipo de problemas que a Universidade tem grande dificuldade em resolver. Já tinha começado o ano escolar e estava eu e uma professora ainda sem sabermos o que fazer, quando começou a praxe, dum modo geral moderada, dos estudantes do Técnico. Fui, então, falar com os estudantes mais velhos para lhes pedir para mobilizarem os caloiros para carregarem as bancadas do laboratório e eles concordaram. Recordo a imagem do cortejo com os caloiros a carregarem com as bancadas. Acho que foi um momento em que aconteceu Universidade.

Penso que os estudantes do Ensino Superior devem pagar taxas diminutas de inscrição nas diferentes cadeiras (crescentes quando reprovarem), mas não propinas. Em vez disso, deveriam dar qualquer coisa como 50 horas de trabalho, por ano, à sua escola. É facil fazer uma listagem de dezenas e dezenas de tarefas em que podem ser úteis e poupar muitas verbas às escolas. Mas sobretudo, assegurando tarefas, poderiam sentir a escola mais deles, mais de todos. E os docentes poderiam, mais facilmente, sentir que são algo mais do que uns simples continuadores dos preceptores do século XVIII, pagos para ensinar (e exercer autoridade) sobre os filhos das famílias ricas.

 * Secretário de Estado do Ensino Superior e Investigação Científica do VI Governo Provisório (1975/76)