Intervenções
15.º Congresso

Manuel Rocha (SPRC): O acesso à educação artística

20 de maio, 2025

Na Fenprof, a luta pelos direitos dos professores e educadores não é diferente da luta pelo direito dos nossos alunos a uma educação inteira, capaz das experiências que permitam opções e felicidades que são, afinal, o sentido de todas as vidas. Como naquele cartoon do João Abel Manta dos dias de Revolução, em que uma família de gente comum dava as boas-vindas a um grupo numeroso de artistas, cientistas e pensadores, como quem anuncia a construção de um tempo novo. Cinquenta anos depois, sabemos que a Escola Pública transformou aqueles visitantes em residentes, resistindo à convicção de Salazar segundo a qual, ao povo que somos, bastaria a ilustração das poucas letras do nome de cada um e o reconhecimento dos números capazes de contas de magra adição. A Escola que enterrou a herança fascista é, afinal, a mesma que agora resiste à reinvenção das novas ignorâncias, aquelas a que a Fenprof se opõe com veemência, lutando contra todas as formas de reescrita da história, contra a eliminação da gestão democrática, a ressuscitação de velhos vícios dos quadros de mérito e de honra, a limitação do trabalho sindical e a entronização de ressuscitados capatazes, directores diplomados por uma Farinha Amparo qualquer à razão de 2 mil euros por bico. A Escola que enterrou a herança fascista é a que reivindica educadores na educação especial, investigadores no ensino superior, rede pública no pré-escolar, carreiras dignas em todos os níveis de educação. A Escola que sepultou a Política do Espírito do SNI é a dos miúdos da António Verney que ontem aqui estiveram com os seus professores para revelar que Escola democrática é o contrário das metas de Nuno Crato e semelhantes, que desprezam o humanismo, a ciência pura, determinados em produzir mão de obra barata e enganos tecnocráticos. A Escola que resiste ao assalto neoliberal é a que reivindica uma rede pública de ensino artístico com cobertura nacional e a entrada generalizada da educação artística nos currículos das escolas, em que a música, a dança, o teatro e as artes visuais cumpram o seu papel civilizacional de nos fazer seres humanos.

Por isso afirmamos que o acesso à educação artística não pode estar à mercê de programas de enriquecimento curricular, de mecanismos de pretensa identificação de talentos, do atendimento a oportunidades de negócio mascaradas de serviço público. Naquilo a que os governos vêm chamando rede de ensino artístico especializado, somos cerca de uma dezena de escolas públicas para cerca de centena e meia de escolas do ensino particular e cooperativo. O universo desta centena e meia de escolas não é, contudo, uniforme, reunindo instituições de iniciativa associativa, autárquica e empresarial, numa diversidade de situações – nos planos laboral e educativo – que merece a nossa atenção. Num tal panorama, houvesse vontade política por parte das governações e diversas das escolas de iniciativa autárquica e associativa teriam já passado para a esfera pública, permitindo consolidar projectos educativos e regularizar a situação profissional dos professores que ali vêm laborando, inserindo-os no desenho de uma estratégia nacional de desenvolvimento cultural. Como no caso do Conservatório Regional de Vila Real, pertencente, desde Setembro último à rede pública, registando significativas melhorias organizacionais e pedagógicas. Mesmo assim, está por resolver a situação da vinculação dos docentes que, em muitos casos, ali laboram há muitos anos, e reivindicam a adopção de medidas específicas que impeçam a fragilização da estrutura escolar e das suas próprias vidas.

Camaradas:

Como se fossem existências divinas, os mercados e seus protagonistas imiscuem-se em todos os domínios da vida em sociedade, transportando para a vivência escolar os seus códigos perversos. Nesse sentido, à escola pública compete resistir às imposições das indústrias culturais, desenhando programas que semeiem cantos de romaria deste povo no ambiente geral em que prevalece a cançoneta de um qualquer Tony de Piquenicão de S. Bento, que mostrem o Auto da Barca do Inferno em alternativa ao inferno-ele-mesmo da cópia actualizada dos Morangos Com Açúcar, que lutem pela construção de perfis que resistam à transformação da nossa gente num exército de consumidores. Não serão as artes, por si só, capazes de combater os males do nosso tempo. Mas não percamos a oportunidade de fazermos delas instrumento de questionamento e proposta.

É que a alternativa que nos colocam é assustadora. No passado dia 28 de Abril, o ministro Nuno Melo irrompeu na escola onde trabalho, precedido de abundante escolta policial, e ali se encontrou com a sempre diligente corte composta por autarcas da região, directores de escola e quadros dirigentes do Ministério da Educação. O governante esteve ali para apresentar o chamado Referencial de Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz, o novo manual militarista dirigido a crianças e jovens do pré-escolar ao final do secundário. Para que melhor se percebesse o espírito pacifista do evento instalou-se um carro de combate no recreio da escola, e os jovens lá se animaram em torno do veículo, na macabra ilustração do potencial educativo dos jogos electrónicos de guerra e dos truculentos heróis que povoam infâncias que não tiveram acesso às sugestões do Vasco Granja. A sonoridade circundante era, ainda assim, a de uma escola de música e dança - instrumentos musicais marcando uma (mais uma) insanável contradição na escola destes dias: de um lado a intenção de educar para o belo, do outro a ordem de ensinar a obediência, que é o destino dos candidatos a carne para canhão, os que hão de esmorecer no mercado de trabalho dos salários de miséria e os encaminhados para o glamour mortal das guerras projetadas. Lá pelas 11:30 daquele dia 28, o apagão eléctrico impôs-se. Silenciado o microfone dos discursos militaristas, o Conservatório de Coimbra retomou o seu destino de escola artística pública, lugar de conhecimento e de paz e os figurões lá abalaram para a guerra que os pariu.

A Arte não é capaz da tarefa de salvar o mundo. Mas na ampliação da realidade que produz, consegue Guernikas de denúncia da barbárie, Canções Heróicas de esperança, Excepções e Regras que nos explicam a classe a que pertencemos, Sagrações das Primaveras dos ritos donde provimos. A Arte é um lugar mais onde podemos experimentar a recusa das “lideranças fortes” em ambientes de passividade e abstenção. A Arte é o lugar onde se pratica o exercício colectivo e colectivista da construção de liberdades. Como naquele movimento determinado em que um Mário, que é Nogueira, nos foi precioso porta-voz e camarada, consciente de que o nosso tempo de ameaças não precisa de líderes – exige-nos multidões de iguais, que saibam aonde vão e por que vão por ali.