Intervenções
14.º Congresso

Gonçalo Gonçalves (SPRC): Minha “querida” Escola Primária

17 de maio, 2022

Depois de trinta anos, ainda muitos dos portugueses, incluído a comunidade educativa, utiliza a expressão “escola primária”, numa alusão talvez saudosista das suas infâncias ou na falta de compreensão sobre o que é atualmente o sistema de ensino do 1.º ao 4.º ano. Aliás, há quem ainda fale em “classes”.

A memória da escola da aldeia ou do bairro com a sua proximidade às populações criava uma partilha coletiva que as ajudava a participar no seu desenvolvimento social e a estabelecer uma relação de reconhecimento por quem trabalhava com os alunos.

Existia a valorização da escola, mas com uma maior democratização do ensino, o fechar de milhares de escolas e a passagem do ensino obrigatório para o 9.º ano, muito foi alterado na dinâmica conjuntural da escola com efeitos estruturantes no 1.ºciclo, já que os modelos de gestão escolar também estavam em transformação.

Se para os mais velhos, a escola primária do pré 25 de abril era a reguada, o castigo e quem não aprendia ficava para “trás”, no após 25 de abril a evolução pode não ter sido rápida o suficiente, já que, há quem ainda ache que a escola deve ser um espaço de formatação e não desenvolvimento para uma formação desprendida de condicionalismos formais. Passámos de uma escola aberta, em que os alunos iam à escola de manhã ou tarde, onde havia apenas uma pequena separação entre a escola e o exterior, para uma escola a tempo inteiro com redes ou grades bem altas.

No momento atual de constante transformação, a escola do 1.º ciclo está condicionada pelo ministério de educação, municípios e gestão dos agrupamentos. Todos condicionam! Uns porque condicionam o trabalho dos professores na investigação, na carreira e no horário de trabalho. Outros por condicionarem os meios físicos e materiais. E há quem apenas condicione por não entender a dinâmica de trabalho em monodocência, sobrecarregando com tarefas.

Muito ficou por reformar/fazer nestes 30 anos e este ciclo tem sido deixado isolado num sistema que cada vez menos valoriza o trabalho dos docentes. A escola do 1.º ciclo ficou refém dos interesses, confusa, com muita burocracia e pouca liberdade para criar espaços de felicidade nas nossas salas de aula.

É urgente romper com esta estagnação e reformar. Colocando a felicidade dos alunos e a valorização do professor no centro da construção do currículo.

Para isso passo a enumerar um conjunto de aspetos de devem ter uma resposta o quanto antes:

  • O edificado ou falta de recursos.

De uma freguesia para a outra, mediante o concelho onde estamos, podemos encontrar realidades completamente diferentes e por vezes também há distinção entre escolas do mesmo agrupamento. Se numa escola, há quadro interativo ou material de experimentação em outra pode nem haver os recursos para tirar uma fotocópia, falta de aquecimento ou até mesmo um quadro elétrico a funcionar adequadamente. Há escolas novas interessantes por fora, com ginásios, bibliotecas e salas multiusos, mas depois, não há manutenção ou simplesmente não são adequadas à realidade da comunidade. Mas é de salientar que há ainda escolas do Plano dos Centenários com espaços verdes e adequadas ao nosso clima, que conseguem ser mais eficazes do que a maioria das mega escolas de cimento e pisos coloridos. Tem havido algum deslumbramento na construção de espaços escolares, quando poderia ter havido uma melhoria do que já existia. E há escolas que foram melhoradas e passado dois ou três anos fecharam para dar lugar a mega escolas. Há falta de visão estratégica nos nossos municípios.

  • Subjugação perante o poder local.

Os planos anuais de atividades dos agrupamentos demonstram como os municípios condicionam a ação das escolas e como no nosso dia a dia isso desgasta a capacidade de dar respostas personalizadas aos nossos alunos. Os alunos para os municípios são números e num tratamento equitativo acabam por agudizar algumas das problemáticas sentidas pelas comunidades. Se numa escola há muito alunos com dislexia devia haver a possibilidade de ter recursos humanos para ajudar, mas o que o município achou melhor era dar formação sobre empreendedorismo a todas as escolas (possível exemplo).

Também é de relatar como a gestão do pessoal não docente ou o simples pedido para arranjar uma campainha ou fechadura podem ser bastante desgaste para um coordenador de escola. Como esses recursos humanos foram retirados das escolas ficamos dependentes da sensibilidade do município.

  • Incapacidade de participar nas discissões organizacionais;

Por consequência de um horário de trabalho contínuo os docentes deste ciclo, por vezes não conseguem preparar/participar adequadamente nos momentos de discussão interna dos agrupamentos. Mas também estão muito relevados para um papel marginal nos agrupamentos, até mesmo em agrupamentos sem ensino secundário. Se analisarmos a constituição dos pedagógicos de um agrupamento, podemos encontrar sempre em minoria o 1.ºciclo. Até pode ser um agrupamento em que metade dos alunos são do 1.º ciclo, mas para tratar dos assuntos do 1.º ciclo, apenas há um representante. Também acontece o mesmo problema na constituição das equipas das direções, há muitos agrupamentos em que não há nenhum representante do 1.ºciclo, sobrecarregando o coordenador de departamento e os docentes com tarefas.

  • Demasiadas horas para currículo e pouco espaço para o crescimento individual da criança;

O currículo está demasiado monopolizado pela matemática e português, numa construção formal do saber, fragmentada em blocos que por vezes são a representação de um saber que não acompanha a atualidade e as necessidades dos nossos alunos. Falta a capacidade de desenvolver o currículo através das expressões utilizando o afeto e a felicidade como o motor motivacional para o aluno.

  • A Escola é um depósito de crianças e há pouca capacidade para envolver a comunidade e associações.

Os alunos passam demasiado tempo na escola e depois desse tempo, ainda vão para o “futebol”, “judo”, “dança”, “Inglês”... Isso não faz sentido, é uma carga excessiva! Precisam de espaço para sociabilizar e aprender através do brincar saudável.  Uma escola, que inicie a sua jornada às 8h30 e acabe às 12h30/13h, 14h30 já com a hora de almoço, seria suficiente, desde que a comunidade e as associações estejam preparadas.

  • Horários muito extensos com pouco espaço para a investigação e preparação de novas abordagens educativas;

A jornada de trabalho constante dos professores do 1.º ciclo não fomenta uma boa prática pedagógica. Não têm tempo ou disponibilidade para a partilha pedagógica com os pares, procurar novas ferramentas pedagógicas e preparar adequadamente a sua prática letiva. Está sempre condicionada por uma jornada mais extensa que os outros ciclos de ensino. Neste momento um professor tem oito disciplinas por turma, podendo ter até trinta conteúdos diferentes para preparar, caso esteja numa escola de lugar único!

  • Muitas tarefas, sem haver horas para as exercer, sobrecarregado o dia a dia da vida familiar;

Não existe na componente letiva ou não letiva horas para coordenação de ano, coordenação de escola, projeto eco-escolas, equipa padde ou outras, mas, no entanto, o trabalho é solicitado pelos ME e Direções o que acarreta o sacrifício da vida pessoal dos docentes.

  • Não há horas previstas para o contatos com os encarregados de educação/ gestão do plano de turma;

O contato com as famílias é fundamental para articular o desenvolvimento e as necessidades de jovens que ainda têm por vezes dificuldades em comunicar e exprimir sentimentos. É um trabalho de equipa casa/escola que permite colmatar falhas ou ajustar as necessidades das crianças e das famílias. No entanto ao contrário dos outros ciclo praticamente não existem horas previstas no horário de trabalho do docente para concretizar esta tarefa. Ele ao acontecer, é por voluntariado do docente ou vontade de ajudar as famílias no percurso dos seus educandos.

No entanto, há um conjunto de tarefas, como relatórios para a segurança social, construção de documentos de apoio à aprendizagem ou outros que apenas podem acontecer através da partilha de informações com a família e outros.

  • Condicionar a existência de alunos condicionais. Passar a fazer parte dessa decisão os docentes do pré-escolar e do 1.º ciclo, para além dos encarregados de educação;

A imaturidade das nossas crianças tem sido cada vez mais evidenciada para sua incapacidade para comunicar ou capacidade de tomar pequenas decisões. Chegamos a encontrar crianças portuguesas de pais portugueses que têm pronuncia brasileira. Casos de crianças que ainda não têm autonomia para ir à casa de banho ou expressar minimamente um vocabulário básico esperado para um aluno que inicia o 1.º ano. Mas, no entanto, a decisão de matricular as crianças no 1.º ano é apenas da responsabilidade da família. Não faz sentido haver crianças a adormecer na sala de aula, que se arrastam penosamente por currículos que não conseguem compreender ou que não entendem minimamente o comportamento dos seus pares. É angustiante perceber que aquela criança, apenas precisa de tempo, para brincar, para socializar com os seus pares e adquirir mais vocabulário. Naquelas salas fechadas do 1.º ciclo perdem a alegria de serem crianças.

  • Relação com os outros ciclos.

Há a necessidade de empoderar as educadoras, para o reconhecimento do seu papel fundamental na formação inicial das crianças. Não precisamos de escolarizar o pré-escolar, mas o seu trabalho tem que ser mais valorizado. No 2.º ciclo é fundamental trazer os docentes para a partilha pedagógica em contexto de sala de aula, bem como, dar os meios aos docentes do 1.º ciclo para acompanharem o percurso dos alunos até ao 6.º ano e apoiarem os docentes do 2.º ciclo.

  • Envelhecimento dos docentes do 1.º ciclo e a incapacidade da tutela para compreender a necessidade ajustar a carga laboral com as capacidades dos docentes do 1.ºciclo.

O sistema é penoso para os docentes em monodocência e tem criando um desgaste tremendo entre estes. Não querendo dramatizar, mas constatei um conjunto demasiado grande de colegas que faleceram muito perto da reforma ou logo após.

É fundamental, equiparar os professores em monodocência aos outros dos outros ciclos, com redução da componente letiva, progressivamente ao longo da idade. Independentemente do seu vínculo laboral. Aliás, esta medida permitiria que muito do trabalho de coordenação pudesse ser executado, sem retirar horas de apoio que os nossos alunos tanto precisam. Independentemente de continuar a existir ou não docentes em monodocência, os horários de trabalho devem ter o mesmo número de tempos/minutos que os outros ciclos. É no 1.º ciclo que encontramos vários docentes de vários grupos em que todos eles têm cargas laborais muito diferentes, apesar de toda a responsabilidade ser depositada no docente do grupo 110.

  • Qualidade da alimentação e dos refeitórios.

A qualidade da alimentação nas nossas escolas deve ser devidamente investigada. Se por vezes, sabemos que existem cozinheiras que fazem magia com produtos alimentares de pouca qualidade, também sabemos que o correto é que sejam fornecidos alimentos com maior qualidade. Devemos exigir um maior investimento na alimentação e saúde dos nossos alunos, com a compra local de bens alimentares e de preferência biológicos, criando sustentabilidade na economia local e na natureza.

As escolas precisam de ter refeitórios adequados que permitam conforto. 

  • Papel fundamental das escolas do pré-escolar e 1.ºciclo para fixar população nos povoados de menor dimensão e envolver as populações na criação de uma matriz cultural que valoriza o ambiente e a participação coletiva em sociedade, na partilha do conhecimento potencializando a sustentabilidade.

Ainda existem algumas escolas de pequenas localidades que não fecharam, elas são dos poucos espaços da responsabilidade do estado que ainda permanecem com alguma responsabilidade local. Têm sido esquecidas e menorizadas no panorama estratégico do planeamento demográfico e social português. Bem como a sua capacidade para promover a sustentabilidade ambiental.

Com o centralismo nas grandes escolas, as pequenas populações ficam vazias de famílias concentrando as populações em vilas e cidade de grande dimensão onde a mobilidade, as comunicações, o saneamento, estruturas públicas precisam ser constantemente atualizadas. Há um crescimento demográfico em torno dessas grandes escolas, com um aumento da despesa pública, para além do detrimento do ambiente e da sustentabilidade.

Preservar as pequenas escolas nas pequenas populações, permite desenvolver a capacidade da sociedade compreender melhor a sua relação com a escala social. Bem como na urgência de promover uma Escola que participa ativamente na compreensão e valorização do património ambiental local. 

 

Viva aos educadores, professores e investigadores!

Viva ao 14.º congresso da Fenprof!