Intervenções
14.º Congresso

Ana Paula Pires (SPRC): Contra a escolarização da educação de infância

25 de maio, 2022

O século XX foi o século dos direitos das crianças, uma vez que marcou a emergência e desenvolvimento de um quadro jurídico-legal de proteção à infância. Portugal acompanhou essa tendência. Foi um dos primeiros países a aprovar uma Lei de Proteção à Infância (1911) e a consagrar na Constituição da República Portuguesa (1976), como direitos fundamentais, os da infância, e a ratificação da Convenção dos Direitos das Crianças em 1990.

Nos anos 90 os ecos do discurso do investimento na qualidade educativa chegam a Portugal num momento sociopolítico em que se vivia “a paixão da educação” que “deram à luz” a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar e as Orientações Curriculares da Educação Pré-Escolar (1997), que apontavam rotas para a sua concretização, lançando uma onda de otimismo sobre a Educação de Infância (o reconhecimento político da Educação Pré-Escolar como primeira etapa da Educação Básica, o alargamento da rede pública de Jardins de Infância, o aumento das taxas de “pré-escolarização” próximas dos valores de outros países na Europa, entre outras, explicam tal otimismo).

Nos primeiros 20 anos deste século, a crescente visibilidade da importância da Educação Pré-escolar, como fator de promoção do sucesso educativo, da igualdade de oportunidades educativas e a sua definição como primeira etapa da Educação Básica, faz com que este nível de educação esteja presente nos discursos da qualidade associados ao da avaliação das instituições educativas, discursos estes imbuídos de uma tendência internacional de (re) definição dos objetivos e finalidades da Educação de Infância, influenciada em políticas neoliberais que introduziram lógicas competitivas, seletivas, de mercado educacional, e como referem as sociólogas Ferreira e Tomás, isto tem contribuído para uma reconfiguração da Educação de Infância através da crescente escolarização, alunização precoce das crianças e processos de “escolificação” que põem em causa a identidade e a especificidade curricular da educação pré-escolar.

Associa-se a esta realidade o facto de os Jardins de Infância da rede pública estarem integrados em Agrupamentos de Escolas, e portanto também estarem sujeitos aos mecanismos de avaliação externa. Neste sentido são visíveis as tendências de “escolarizar” a Educação Pré-escolar enquanto estratégia de promoção da melhoria dos resultados escolares a alcançar pelas crianças nos níveis subsequentes. Esta integração trouxe algumas vantagens organizativas e condições de melhoria da qualidade de oferta, mas também ampliou a possibilidade de se constituir como uma ameaça à especificidade curricular e à autonomia pedagógica da Educação Pré-escolar. Na maioria dos Agrupamentos de Escolas observam-se processos de direção e gestão, orientados por uma racionalidade burocrática uniformizadora com os outros setores de ensino, que põem em causa a conceção holística de gestão do currículo e a avaliação das crianças para as aprendizagens, preconizadas pelas Orientações Curriculares da Educação Pré-Escolar. Estamos a referir-nos à presença de registo obrigatório de sumários de “aulas” (diários e por “turma”), de horários com manchas de tempo destinadas a cada área de conteúdo e de instrumentos de avaliação estandardizados das crianças com enfoque nos resultados.

Há um conjunto de novas expressões (ensino pré-escolar, aluno do pré-escolar, turma) que tem entrado acriticamente no vocabulário que está associado a este nível de educação e que ilustra os novos sentidos que lhe estão a ser atribuídos, particularmente pelos novos agentes que interferem no desenvolvimento do projeto educativo. Um dos exemplos mais flagrantes disto insere-se na fabricação da necessidade do uso de manuais e fichas de trabalho e que é construída pelas pressões do mercado editorial e materializada na oferta de pacotes preparados para consumir pelas crianças e educadores, assim como, as ”ofertas” (impostas) de projetos/programas/ concursos da iniciativa de entidades privadas, de municípios, de organismos estatais e de fundações, não integrados no projeto educativo do Agrupamento de Escola, e que em alguns casos propõem o alargamento do conteúdo curricular.

Apesar do corpo legislativo regulador da qualidade e do conjunto de publicações de apoio que definem a orientação para este setor de educação importa adotar uma vigilância crítica em relação às práticas, dado que são múltiplos os fatores, interesse e sentidos, que estão associados aos discursos da qualidade e da avaliação das escolas. A realidade obriga-nos a uma vigilância permanente das pressões exercidas sobre nós educadores de infância, potenciadas por leituras e apropriações diversas sobre a educação de infância, decorrentes das perspetivas, aspirações, interesses dos diferentes intervenientes, governantes, diretores, professores, famílias e empresas. Estas pressões põem muitas vezes em causa a identidade e a especificidade da Educação Pré-escolar. E para que os direitos das crianças a uma educação de infância de qualidade sejam garantidos somos nós docentes da educação pré-escolar os seus principais defensores acompanhados pela FENPROF, e pelos seus sindicatos, para essa luta em unidade.

Viva a FENPROF! Viva o 14º Congresso! Vivam os educadores, professores e investigadores portugueses!