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Entrevista ao Ministro da Educação, 30 de junho de 2023

O outro lado da entrevista ao ME

05 de julho, 2023

“Instabilidade na Educação decorre de uma competição negativa entre governantes”

Os governantes não param de repetir, mas os professores não estão mesmo dispostos a ceder. O dossiê da devolução do tempo de serviço está “aberto”, insiste o Secretário-geral da FENPROF, que diz que é hora de todos “se focarem nos alunos” e nos problemas que afetam as suas aprendizagens, em particular a falta de professores. Mário Nogueira afirma que a criação de apoios a professores deslocados, para aliviar custos com despesas acrescidas, tem sido promessa de vários ministros, mas sem passar disso mesmo. E lembra que desde 2012, mais de 12 000 professores abandonaram a profissão e 19 236 aposentaram-se, a que se somarão mais 3500 no ano em curso.

 

P  Os professores estiveram em protesto durante quase todo este ano letivo. Reconhece-lhes alguma razão?

R  Obviamente que sim ou não teriam lutado. Lutaram pela devolução do tempo de serviço que cumpriram e só por obstinação ou castigo governantes a negam. A disponibilidade dos sindicatos para negociarem um faseamento é conhecido e seria a forma de acabar com a discriminação dos professores em relação à quase totalidade dos trabalhadores da Administração Pública e dos docentes que exercem no continente em relação às regiões autónomas. Quanto ao chamado “acelerador” não passa de um mecanismo que introduzirá maiores distorções na carreira, acentuando as desigualdades.

 

P  Qual foi o impacto destes protestos nas aprendizagens dos alunos?

R  Os próprios alunos, em reportagens que a comunicação social tem passado, afirmam que o que os prejudicou foi a falta de professores. Nas escolas, embora o ministro não faça justiça aos professores, estes desenvolvem estratégias que, apesar da sua luta, não deixam os alunos para trás. Além disso, muitas das ações têm lugar  antes ou nos intervalos das aulas, aos sábados ou ao final do dia. É tempo de o ME e o governo se focarem na necessidade de, valorizando a profissão docente, a tornarem atrativa e, assim, garantirem os professores em falta para as necessidades dos alunos.

 

P  Os sindicatos já disseram que os protestos vão manter-se no próximo ano. É sustentável continuar a viver com esta instabilidade?

R  É difícil, de facto, por isso não se compreende por que o ministério continua a não querer resolver os problemas que estão na base dos protestos, não se esgotando na carreira e no tempo de serviço. Foram desenvolvidos processos negociais, mas o resultado ficou longe dos necessários para resolver os problemas da precariedade, do desterro, da discriminação salarial dos contratados a termo ou da carreira. Quanto a questões como os horários e outras condições de trabalho, o envelhecimento, a proteção na doença e não só, ou nada mudou ou até se agravou a situação que tínhamos.

 

P  Muitas dessas medidas decorrem da lei geral ou de imposições de Bruxelas...

R  Sim, e às vezes parece que cumpri-las é algo excecional e que normal foi deixar andar quase durante duas décadas. Há sempre disponibilidade dos sindicatos para negociar, mas a negociação não pode ser coutada do ministro em que este impõe as suas posições com uma ou outra alteração, mais para dizer que cedeu do que para resolver o problema. Se alterar essa atitude negocial, decerto não continuará a instabilidade no próximo ano letivo. Instabilidade que também decorre de uma espécie de competição negativa entre governantes: um diz que reconhece legitimidade, mas não resolve, outro afirma que não tem disponibilidade financeira e o chefe do governo até ameaça demitir-se se o tempo de serviço dos professores for contado. Não vale a pena fazer de conta que não existe.

 

P  O descontentamento dos professores não extravasa a agenda sindical?

R  O descontentamento existe nos professores, não é provocado pelos sindicatos. Estes procuram organizar o protesto e a luta em torno de objetivos que são os dos professores. O ministro afirma que não poderia resolver em seis meses problemas com vinte anos, o que é verdade, mas então não se compreende por que rejeitou discutir um Protocolo Negocial para a Legislatura que previsse a resolução de alguns problemas, a mitigação de outros e a futura resolução de mais alguns.

 

P  O Presidente da República acha que é possível ir mais longe na devolução do tempo de serviço. Para o Governo este dossiê está ou não fechado?

R  Os governantes poderão afirmar que está, mas enquanto os professores o mantiverem aberto, será assim que ele se irá manter. Em 2018 houve a recuperação de 30% dos últimos 7 anos congelados, enquanto na Administração Pública, com raras exceções onde se encontram os professores, foram justamente recuperados integralmente os períodos de congelamento, mais de 9 anos, através dos pontos. A não recuperação integral do tempo prejudica de imediato os professores e será muito penalizadora na futura aposentação. Os professores no continente estão a ser altamente discriminados. O Presidente da República tem demonstrado que considera ser possível ir mais longe e que deverá ser negociado o necessário faseamento.

 

P  O Governo diz que não é possível ir mais longe, mas depois anuncia um aumento de pensões com um impacto de €1000 milhões, quase o triplo do que custaria a contagem de todo o tempo de serviço dos docentes. Não é desequilibrado?

R  A recuperação do tempo de serviço que continua congelado não tem implicação em outras medidas igualmente justas. Recordo o estudo da ANDE que confirma que uma recuperação imediata provocaria um aumento da massa salarial global nos primeiros 3 anos e um decréscimo de quase o dobro nos 7 seguintes. Os sindicatos não exigem a recuperação de uma só vez, tendo abertura para um faseamento e nesse sentido apresentaram uma proposta que, até agora, foi ignorada pelo ministro. Desequilibrados e desproporcionais têm sido os gastos com a banca, as benesses e os elevadíssimos lucros de algumas empresas.

 

P  Apesar do diploma que acelera as carreiras prever uma progressão mais rápida de 1 ou 2 anos para milhares de professores em funções, deixa outros tantos de fora e a maioria nunca chegará ao topo. Vão reformar-se nos próximos anos com pensões na ordem dos €1400. É justo?

R  E alguns abaixo desse valor. É uma tremenda injustiça. Aliás, o que está em curso, e o governo sabe disso, é a destruição da carreira docente. O próprio ministro afirma que os professores que foram vítimas dos congelamentos poderão aspirar a chegar a um dos três escalões mais altos. Repare-se: aspirar! Isto significa que o topo da carreira deixa de ser o que a lei estabelece e alguns professores apenas aspirarão chegar ao 8.º escalão... é a perversão total da carreira, a sua destruição, e os professores lutam e lutarão contra isso. Há muitos professores nos escalões de topo? Isso deve-se a um problema e não a um privilégio, o envelhecimento da profissão, e pelo tempo de serviço deveriam ser muitos mais nesses escalões. Ademais, os professores são, entre os grandes grupos profissionais da Administração Pública, o de mais elevada formação, para além da sua responsabilidade social. Não acredito que Portugal não tenha condições para ter professores devidamente qualificados.

 

P  Os sindicatos alegam que o impacto dos protestos nos alunos é muito menor do que o causado pelas dificuldades de contratação de professores. Consegue garantir que o próximo ano arrancará sem problemas?

R  Não creio. Embora do ME chegue a notícia de os sindicatos serem chamados ainda em julho, não me parece que haja tempo para resolver os problemas que existem ou vontade política para fechar um Protocolo Negocial que calendarize a resolução. Quanto à falta de professores, é natural que em 31 de agosto estejam colocados professores para a generalidade das necessidades até aí manifestadas pelas escolas, mas em 1 de setembro já se começará a perceber que era ilusão.

 

P  Ainda assim, há turmas que não têm tido aulas a uma disciplina. É admissível?

R  Completamente inadmissível. Tivemos, ao longo do ano,  sempre cerca de 30 000 alunos a quem faltava pelo menos um professor. Os números não foram escandalosos porque foram contratados mais de 2800 diplomados em outras áreas, ou seja, se não fosse isso o número aumentaria para cerca de 300 000, que foram os alunos que tiveram, a pelo menos uma disciplina, um professor não profissionalizado. Além disso, o tempo para substituir um docente continua a ser excessivo, na ordem das três semanas. Em relação à abertura de vagas nos mestrados de Ensino, o que se espera é que a pressa não leve ao aligeiramento e consequente quebra de qualidade.

 

P  Vai continuar a ser necessário recrutar professores sem formação pedagógica para dar aulas?

R  Penso que, nos próximos anos, não haverá alternativa. Seria necessário saber quem pretende seguir a profissão e, a esses, proporcionar o acesso a uma profissionalização adequada. Contudo, não me parece que seja por aí que o problema da falta de professores se vai resolver. Esperar o regresso de quem abandonou, a profissionalização de quem só tem habilitação própria ou a chegada de docentes do ensino privado, é o mesmo que esperar sentado...

 

P  A que se deve essa “fuga”?

R  Os salários e as condições de trabalho, nomeadamente os horários, são ainda mais negativos no privado. Aliás, foi por isso que a FENPROF, durante anos, recusou assinar um contrato coletivo de trabalho para o setor e propôs ao ministério que impusesse ao privado, desde logo a quem recebe dinheiros públicos, normas semelhantes às do público. Só que as equipas ministeriais, incluindo as que já integravam o atual ministro, pactuaram sempre com os donos dos colégios e não com os seus trabalhadores.

 

P  E entre os alunos, há mais idas para o privado, tendo em conta a situação vivida na escola pública?

R  Isso é o que dizem os colégios, a par da narrativa sobre os rankings. Acho que não é mais do que a tentativa de criar movimento nesse sentido.

 

P  Disse que a alteração ao modelo de colocação dos professores visava acabar com o “casa às costas. Mas no próximo ano todos os professores que vinculem ao abrigo das novas regras vão ser obrigados a concorrer para todo o país. Estamos a falar de pessoas com 40/50 anos, com família e filhos.

R  Por isso os candidatos ao mecanismo dito de vinculação dinâmica foram menos 25% do que as vagas abertas e quando se conhecerem as listas definitivas de colocação, constataremos que o número de vagas por preencher será ainda mais elevado. Os sindicatos alertaram para isso.

 

P  O Governo prometeu a criação de incentivos para quem for dar aulas para zonas onde a  oferta é escassa. Médicos, juízes ou deputados Já têm apoios, através da majoração de salários ou subsídios à deslocação. Porque é que ainda não foi feito nada a esse nível?

R  Nem por este nem por governos anteriores que se comprometeram a tomar medidas. Mas é preciso ter em conta que se Lisboa e Algarve são regiões onde o custo de vida disparou, mesmo noutras regiões há docentes que estão desterrados a centenas de quilómetros das suas residências e com despesas acrescidas. Por vezes são casais com uma habitação-base e duas alugadas em localidades distantes, tanto da base como uma da outra.

 

Ataques com “violência” obrigam a aumentar segurança do ministro

Sobre este tema, o Secretário-geral da FENPROF não se pronunciou, por desconhecimento. Nas manifestações em que participou e que foram convocadas pela FENPROF, por vezes em convergência com outras organizações, não tiveram lugar atos de violência contra ninguém, como não se ouviram insultos nem discursos de ódio.

É claro que a insatisfação dos professores levou a que se ouvissem palavras de ordem como “Ó Costa, escuta, professores estão em luta” e mesmo alguns professores a reclamarem “Está na hora, está na hora, do ministro ir embora”, mas isso é da vida... política.

Quanto aos cartazes do lápis no olho, em reuniões com os sindicatos, o ministro chegou a chamar a atenção para a mensagem negativa que passavam, mas, como lhe foi dito, eles só comprometiam quem os exibia e não eram os sindicatos. Nas iniciativas de rua só compromete os sindicatos o que tiver a sua assinatura, isto é, o logótipo. De resto, não poderão os sindicatos passar os desenhos e os escritos em revista censurando alguns. Cada vez mais as pessoas estão nas manifestações com os seus próprios cartazes e quem se sentir ofendido sabe o que pode fazer.

Mário Nogueira aproveitou para afirmar ser extraordinário andar na rua, ir às compras ou ao café, falar com desconhecidos sem necessitar de segurança ou cuidado acrescido. É o que acontece consigo. Como diz o povo, quem não deve, não teme.

 

Alunos dos cursos de Ensino vão dar 11 horas de aulas a ganhar €800

Sobre os chamados estágios remunerados, aguarda-se uma proposta do ME e o desenvolvimento do indispensável processo negocial, uma vez que terá de haver lugar a contratação. Veremos o que pretende o governo, quais as condições de trabalho destes estagiários e que implicação terá na vida das escolas e dos outros professores.

 

Nota final: Agradecemos as perguntas das jornalistas Isabel Leiria e Joana Bastos, do semanário Expresso.