Intervenção de António Nóvoa na Conferência Nacional sobre o Ensino Superior e a Investigação
É com muito prazer que vos recebo na Universidade de Lisboa e que, nessa qualidade, partilho convosco algumas ideias e preocupações sobre o ensino superior e a investigação.
Quando se aceita um convite, quando se toma a palavra, nem que seja por breves instantes, temos o dever, a responsabilidade, de dizer o que pensamos e o que sentimos.
Palavras de circunstância não fazem parte da minha circunstância, da minha maneira de ser e de estar, nem na vida nem na universidade.
Cinco anos é o meu tempo como Reitor. Tempo intenso, difícil, ainda que insubstituível no plano pessoal.
Cinco anos é o tempo de um país que se afastou das suas universidades, através de políticas que procuraram fracturar e enfraquecer as instituições, retirando-lhes vida própria, vitalidade, independência.
» A primeira fractura, cuidadosamente pensada e preparada, foi com a ciência. As universidades, imobilistas, transformadas em “barrigas de aluguer” dos centros de investigação, esses sim dinâmicos e inovadores. Da ciência só vinham luzes. Da universidade só vinham sombras. Uma narrativa dual, de separação, de divisão. Triste narrativa.
» A segunda fractura, legitimada, como sempre, por instâncias internacionais, deu-se no governo das universidades. A participação e a democracia vistas como empecilhos e a ideologia do New Public Management (Nova Gestão Pública) invadindo, de rompante, o espaço universitário. As novas instituições passariam a ser governados por órgãos mais “manejáveis” e o Reitor passaria a ser o CEO da Universidade. Foram estas as palavras utilizadas na apresentação do RJIES no Centro Cultural de Belém. Pobre ideologia, falsamente modernizante.
» A terceira fractura, complicada, mais pelo processo do que pela ideia, promoveu a tendência privatizante das universidades, através de fundações sem fundos, de “falsas fundações”. Fraca história, feita de provincianos oportunismos.
É justo dizer que grande parte destas evoluções (ou, melhor dizendo, destas involuções) se verificou também em muitos outros países por esse mundo fora. A ideologia do valor económico das universidades, inventada, trabalhada e reproduzida pelos economistas da “Terceira Via” tem vindo a dominar o mundo universitário.
O novo nome do Ministério do Ensino Superior no Reino Unido fala por si: Department of Business, Innovation and Skills. Ministério dos Negócios, da Inovação e das Competências com a tutela das Universidades, da Ciência, da Aprendizagem ao Longo da Vida (transformada em avatar da empregabilidade), do Investimento e Comércio e dos Negócios e Empresa.
Estas orientações, que têm como fundamento um discurso sobre a “nova centralidade das universidades nas sociedades do conhecimento”, deram origem, na maioria dos países, a um reforço do financiamento público.
No caso português, estranhamente (ou talvez não), deram origem a um desinvestimento ao longo dos últimos anos. Entre 2006 e 2012, a preços constantes, as transferências do Orçamento de Estado para a Universidade de Lisboa, descontadas as contribuições para a Caixa Geral de Aposentações, diminuíram 50%. Metade representa o empobrecimento da instituição; a outra metade, o empobrecimento dos seus profissionais.
A grande reforma do ensino superior serviu para esconder o desinteresse dos governos pelo destino das universidades, arrastadas para lógicas de sobrevivência e de mercadorização.
As reformas sucedem-se às reformas, consomem-se umas às outras, servindo para justificar a instauração de novos poderes e de novas regulações. Raramente (ou nunca) servem os propósitos de uma transformação, de uma renovação das instituições. São estratégias de controlo. Não são estratégias de mudança.
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Face a este panorama, confesso-vos que o meu principal espanto, direi mesmo a minha maior desilusão, foi a forma resignada como as comunidades universitárias viveram esta situação, sem uma verdadeira discussão de temas centrais para o seu futuro.
Como é frágil a nossa cultura de liberdade, mesmo nas instituições que a deviam cultivar acima de tudo. No Centenário da Universidade de Lisboa, fomos buscar a Coimbra, à oração de sapiência de Bernardino Machado, o nosso lema: “Uma Universidade deve ser escola de tudo, mas sobretudo de liberdade”.
Curiosamente, o silêncio público traduziu-se, muitas vezes, num ruído dentro das instituições. A conflitualidade transferida do espaço político para o espaço institucional. Voz fina para fora. Voz grossa para dentro.
As situações de mal-estar institucional têm um conjunto vastíssimo de razões. Não são apenas consequência das políticas recentes. Há uma longa história de corporativismos e de proteccionismos que marca ainda a vida das universidades. São imensas as mudanças que temos a obrigação de fazer.
Mas é evidente que as evoluções recentes, que alguns, como Hermínio Martins, têm designado por “capitalismo académico”, promovem lógicas de controlo, de produtivismo e de intensificação do trabalho docente que, num quadro de desvalorização salarial, geram um enorme mal-estar.
Como transformar este mal-estar, de conflitualidades internas, de quezílias e litigâncias que tantas vezes bloqueiam as instituições e de nada servem às pessoas, num debate público sobre o futuro das universidades, sobre o futuro que queremos para as universidades?
Não vos quero deixar com um retrato negro. Peço-vos que não confundam a crítica com o pessimismo. Nem tudo são espinhos.
Não tenho quaisquer saudades da Universidade do passado. Nem do passado distante da Ditadura, essa universidade medíocre e elitista, fechada ao mundo da ciência e da cultura. Nem do passado recente dos anos 80 ou 90, quando a universidade se abriu à cultura, é certo, mas não à ciência, e quando manteve “numerus clausus” que impediram o acesso de muitos ao ensino superior. A universidade do passado não merece que dela tenhamos saudades.
Temos, hoje, instituições mais fortes e mais responsáveis, instituições que percebem a importância de acolher mais estudantes, que reconhecem a necessidade de prestar contas à sociedade, que têm uma consciência clara de que não há universidade sem ciência.
Falta-nos, é verdade, uma cultura académica mais crítica e mais independente. Quando tantas instituições falharam, não podem falhar as universidades. Precisamos de universitários que pensem o que os outros não são capazes de pensar, que digam o que os outros não podem dizer, que façam o que os outros não têm conseguido fazer por Portugal.
O futuro não passa por pequenas universidades. Passa por grandes universidades, não necessariamente no tamanho, mas na “massa crítica”, na capacidade de integrarem todos os saberes, de juntarem a melhor ciência ao melhor ensino, de atraírem jovens de todo o mundo, na capacidade de serem, como dissemos ao longo deste ano, UniverCidades, instituições da cidade, da polis, da sociedade.
Nada define melhor uma universidade do que a capacidade de se rejuvenescer, de se abrir às novas gerações, de as acolher, de as formar, de as ver superar as gerações anteriores. A minha maior mágoa (julgo que é esta mesma a palavra certa) é a dificuldade que estamos a ter para dar uma oportunidade a tantos jovens de imenso mérito e talento, permitindo-lhes a entrada na profissão académica.
Massa Crítica, que obriga ao reordenamento da rede do ensino superior, e rejuvenescimento, que obriga a ir além das rotinas habituais e a encontrar, num quadro de autonomia, novas formas de recrutamento dos docentes e investigadores.
As universidades só merecerão este nome se souberem estar à altura das suas responsabilidades, numa época tão exigente como aquela que vivemos. Independência e espírito crítico. Recusa de qualquer lógica de controlo ou de redução da autonomia, a não ser quando resultem de processos legítimos e necessários de avaliação e de garantia da qualidade.
E por último, e sempre, um sentido exacto, preciso, profundo, da nossa dimensão pública, da nossa responsabilidade social, do nosso compromisso com o país.
Disse, e repito, prefiro um mundo imperfeito, com liberdade, do que um plano perfeito, sem ela. Estou disposto a renunciar a tudo, menos à liberdade.
Sei bem que, nos tempos que correm, não podemos perder tempo com pessimismos. Fala-se das universidades como instituições com um grande passado (em Portugal, nascemos há mais de 700 anos) e com um glorioso futuro (dizem-nos que somos as instituições centrais das “sociedades do conhecimento”).
Um grande passado e um glorioso futuro. E o presente? Parece que o presente “desapareceu” no meio de tanto passado e de tanto futuro. A mim, interessa-me o presente, o presente futuro certamente, o presente como futuro.
O futuro? Mas o futuro não existe, exclamou um dia António Sérgio! Existe, sim. Existe o futuro como ideia. O que constitui uma nação não é uma causa eficiente: é sempre sim uma causa final: um projecto, um plano, uma ideia do que há-de ser.
É sobre isto que devemos concentrar as nossas energias: Que universidades queremos para o século XXI português? E quem está disposto a bater-se por elas?