Nacional
Vasto processo de revisão do edifício legislativo do Ensino Superior. Opinião / Luciano de Almeida*

Revisão ou reforma?

11 de setembro, 2003

Está em curso um vasto processo de revisão da legislação que regula o ensino superior em Portugal. Foram já publicadas a Lei 1/2003, Lei de Desenvolvimento e Qualidade do Ensino Superior e a Lei do Financiamento (Lei 37/2003). Foram já aprovadas na generalidade nesta Assembleia as Propostas de Lei de Bases da Educação e de Lei de Autonomia das Instituições de Ensino Superior. Foi alterado o regime de acesso ao ensino superior.).

Ou seja, é inegável que estamos perante um amplo processo de revisão do edifício legislativo que regula o ensino superior. A que acrescem várias medidas administrativas tomadas pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior das quais se destaca a redução do número de vagas postas a concurso para acesso ao ensino superior público com objectivos pouco claros.

Questão prévia que levanto é a de saber se esse processo de revisão é também um processo de reforma. E, nesta matéria, as dúvidas são muitas.

Uma verdadeira reforma do ensino superior pressupõe um amplo debate nacional que envolva a comunidade académica e a sociedade civil. Para uma verdadeira reforma é necessário que se defina claramente um projecto para o ensino superior e para a investigação que mobilize a comunidade académica e a sociedade civil e que reúna consensos que permitam que ele sobreviva a um ministro, a um governo, a mais do que uma legislatura e à alternância no poder.

O contrário levará a sucessivas alterações legislativas e à degradação do sistema de ensino.

Há um tempo para reflectir e um tempo para decidir! O tempo para reflectir tem que anteceder o de decidir e não o inverso!

E abrir espaço à reflexão, ao debate, não é um sinal de fraqueza, ao contrário do que o governo parece pensar, é criar condições para a decisão acertada. E Portugal, nesta matéria, como noutras, precisa mais que se decida bem do que depressa! Se a revisão da legislação relativa ao ensino não reunir um amplo consenso nacional teremos, a meu ver, revisto a legislação e adiado a reforma!

Esta é uma questão que me parece dever deixar clara.

Começar a casa pelo telhado

Parecendo, aliás, haver, no essencial concordância no diagnóstico da actual situação do ensino superior ? com maior ou menor demagogia na defesa dos pontos de vista, é verdade ? não se perceberia bem que as decisões que vêm sendo tomadas o sejam fazendo passar a mensagem de que as instituições se opõem à mudança. Tenho a plena convicção que tal só sucede porque estamos perante um amplo processo de revisão legislativa que tem como objectivo último não a reforma do ensino superior mas, ao invés, a redução da comparticipação do Estado no orçamento das Instituições.

Só assim se pode entender que se haja começado a casa pelo telhado.

Num processo de revisão legislativa em que o objectivo fosse a reforma do ensino superior ter-se-ia começado pela Lei de Bases da Educação, Lei de Autonomia, Lei de Desenvolvimento e Qualidade e só depois a Lei do Financiamento.

Num processo de revisão legislativa em que o objectivo primeiro seja reduzir o esforço do Estado no financiamento do ensino superior ter-se-ia começado exactamente por onde o Governo começou. E devo dizer que o objectivo é efectivamente o de reduzir o financiamento e não o de reformar a despesa das instituições de ensino superior e numa lógica de pura redução de financiamento percebe-se que assim seja porque a reforma da despesa poderia implicar um acréscimo de custos.

Quadro negro e falta de rigor

Para impor à opinião pública esta lógica economicista do ensino superior, traçou-se do ensino superior e das suas instituições ? a exemplo do que sucedeu com outros áreas governativas ? um quadro negro, em alguns casos suportado por uma falta de rigor de fazer corar. Recordo a este propósito as sucessivas declarações do MCES e da DGESUP de que Portugal tinha quase 2.000 cursos de ensino superior enquanto a Espanha tinha apenas 200.

Confundiam o número de denominações com o número de cursos ministrados. Portugal tem cerca de 525 denominações diferentes (256 se as agruparmos) e Espanha cerca de 230. Os cursos ministrados em Espanha eram em 2002 cerca de 3.700 e em Portugal cerca de 1.750.

Foi perante este quadro que quer a Lei de Desenvolvimento e Qualidade quer a Lei do Financiamento vieram a ser aprovadas.

O tema deste colóquio é ?A Ciência e o Ensino Superior não podem esperar?. Não podem, de facto, se não quisermos comprometer ainda mais o desenvolvimento do país.

Receio bem que o tempo actual não seja apenas um tempo de espera mas seja também um tempo de retrocesso.

O principal objectivo do Governo

É seguramente um tempo em que para o Governo o bem primeiro, o principal objectivo, é reduzir o financiamento às instituições por parte do Estado. A tal objectivo último se têm reconduzido, no essencial, as medidas governamentais para o sector.

Vou recordar algumas delas:

a)     A introdução da nota mínima de 95 nas provas de ingresso a entrar em vigor em 2005/2006;

b)     A redução do número de vagas em todas as instituições e áreas excepto nas ciências da saúde, nas artes e nas tecnologias (neste último caso apenas se não tivessem entrados alunos com nota inferior a 95 nas provas de ingresso);

c)      A fixação do número mínimo de vagas em 35 por curso;

Quanto à introdução da nota mínima de 95 nas provas de ingresso a justificação assentou, se bem se recordam num princípio que parece muito simples e que passou bem para a opinião pública: quem não tem nota positiva não deve ingressar no ensino superior, ou, se quiserem doutra forma, quem não tem aproveitamento não deve ingressar no ensino superior.

Com este raciocínio simplista evitou-se a discussão sobre o real valor das notas das provas de ingresso mas se admitirmos que este reflecte os conhecimentos adquiridos pelos candidatos (todos eles com o 12º ano concluído com aproveitamento) dispensa e mal o estudo a variação média entre as notas obtidas no secundário e nas provas de ingresso ? refiro-me, por exemplo à variação de 5 valores para menos na escala de 0 a 20 entre as classificações obtidas pelos alunos no ensino secundário e as obtidas nas provas de ingresso.

Incluo-me nos que defendem rigor no acesso ao ensino superior, rigor que pressupõe que primeiros se valide os resultados obtidos nas provas de ingresso ? recordo que este ano a necessidade de rever um número significativo destas levou ao adiamento da data prevista para a candidatura ao ensino superior.

No que concerne à redução de vagas. Ao que parece a grande medida deste governo. Já ouvi do responsável do Governo várias justificações. Passo a referir: (a) a exigência de uma maior qualidade, (b) a necessidade de solidariedade com o interior, (c) a necessidade de abrandar a formação em áreas em que o mercado se encontra saturado e (d) por último, que Portugal em relação à OCDE tem uma elevada percentagem de diplomados nas áreas das ciências sociais e, por tal motivo, os critérios fixados para a fixação das vagas tinham por objectivo corrigir tal distorção.

Algumas breves palavras sobre esta questão.

Quanto à primeira das razões invocadas ? a maior exigência de qualidade ? foi prontamente desmentida pelo corte indiscriminado a todas as instituições. Quanto à terceira a necessidade de abrandar a formação em áreas em que o mercado se encontra saturado reflecte a politica de governar pelos jornais. As instituições de ensino não formam para hoje, formam para amanhã. Onde estão os estudos das necessidades de formação a médio prazo, admitindo que a uma visão tão simplista se pudesse reconduzir esta matéria? Quanto à última a da elevada percentagem de diplomados nas áreas das ciências sociais em relação aos países da OCDE tenho que conceder ao MCES o benefício da dúvida na medida em que desconhecendo eu, como desconheço e bem procurei, qualquer estudo credível sobre esta matéria, tenho de admitir que o MCES disponha de algum relatório confidencial quiçá elaborado pelos mesmos serviços secretos que garantiram a existência de armas de destruição maciça no Iraque.

Quando a prática contradiz o discurso

Quanto à segunda ? a solidariedade com o interior ? merece algumas reflexões, até porque é um bom exemplo de que a pratica contradiz o discurso.

É sabido que o número de candidatos ao ensino superior tem vindo a diminuir não tanto por força não do decréscimo demográfico mas mais por força  , do cada vez menor número de alunos que concluem o ensino secundário com aproveitamento.

Neste quadro no ensino superior público só não têm conseguido ingressar os candidatos que não têm a nota mínima de candidatura exigida pelas instituições, em regra 95 na escala de 0 a 200, ou aqueles que pretendem ingressar em cursos onde a oferta de vagas é absolutamente desajustada da procura, de que a medicina é expoente máximo.

Verificou-se, mesmo, nos últimos ano lectivo que um número muito significativo de instituições públicas na primeira fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior ficou com mais de 30 % das vagas por preencher tendência que tudo indica se vai manter.

A medida de redução do número de vagas tudo indicava só atingiria, assim, as instituições que demonstram capacidade para as preencher (Universidade Técnica de Lisboa, Universidade do Porto, Instituto Politécnico de Leiria, Instituto Politécnico de Lisboa, Universidade de Coimbra, Universidade do Minho, Universidade do Algarve (ensino politécnico) Universidade Nova de Lisboa e Universidade de Aveiro (ensino universitário). Em relação às restantes instituições a redução de vagas em determinadas áreas seria irrelevante (engenharias).

Vejamos se assim foi, ou seja, se a redução das vagas gerou um movimento dos candidatos do litoral para o interior.

Por uma questão de rigor vou considerar para este efeito instituições do interior a UBI, o IP Bragança, o IP Guarda, o IP Viseu, o IP Castelo Branco, o IP Tomar, o IP Portalegre e o IP Beja.

Analisadas as colocações na primeira fase o que se conclui três delas (UBI IP Tomar e IP Guarda) ganharam no seu conjunto89 vagas e os restantes perderam 1.132. Permitam-me que diga que este resultado era inevitável porque a redução de vagas atingira estas instituições por igual nas áreas de maior procura.

Reserva de mercado para o privado

A primeira conclusão a retirar é, pois, a de que a redução do número de vagas reduziu, pois, em cerca de 3.500 o número de alunos que ingressaram nos estabelecimentos de ensino superior públicos, universitários e politécnicos.

A quem aproveitou esta redução? Às instituições de ensino superior do interior, como começou por afirmar o MCES, não foi.

Penso que há que dizê-lo com frontalidade. A redução do número de vagas permitiu criar, uma espécie de reserva de mercado para o ensino superior privado e cooperativo, mandando-se às urtigas a tão propalada política de qualidade do ensino!

Esta transferência administrativa do sector público para o privado visa claramente dois objectivos: diminuir o financiamento público do ensino superior público e proteger os interesses do ensino superior privado e cooperativo.

O primeiro objectivo não tardou, aliás, a ser concretizado. Contrariando o que o próprio Pacto de Estabilidade e Crescimento dispunha o Governo reduziu em termos nominais o financiamento do ensino superior público.

Politécnico: orçamento de 2004 com redução de 3,31 por cento

Desconheço, ainda, o que se terá passado no ensino universitário; no ensino superior politécnico a participação do Estado em 2004 no orçamento das instituições foi reduzida em 10, 3 milhões de Euros em relação a 2003, ou seja cerca, em termos globais, de 3,31 % menos que em 2003. Os cortes em algumas instituições atingiram, mesmo, os 5,72 %.

Foi comunicado entre os dias 22 e 23 de Setembro e solicitado que imperativamente, sublinho, os orçamentos fossem entregues na DGESUP até ao dia 25.

As instituições desconhecem a fórmula utilizada para a distribuição do plafond e em matéria de tamanha importância não foram ouvidas, como não foi ouvido o CCISP nem o CRUP.

Percebeu-se agora qual a verdadeira finalidade do actual sistema de propinas e qual a razão porque o Governo sacudiu para as instituições o capote do ónus de as fixar.

É que as instituições na fixação das propinas não poderão deixar de compensar os cortes no financiamento por parte do Estado. O dinheiro resultante do acréscimo das propinas, em primeira linha, não serve para o aumento da qualidade do ensino mas para compensar o desinvestimento do estado no ensino superior.

Desinvestimento cego, feito nas costas das instituições, e sem ter em conta as suas actuais estruturas de custos e efectuado no inicio do ano lectivo e que irá por em causa o normal funcionamento das instituições.

Propostas objectivas

Para terminar gostaria de deixar alguns tópicos:

1º. Parece-me necessária uma moratória de três a cinco anos durante a qual não seria permitida a criação de nenhuma outra instituição universitária ou politécnica, pública ou privada, salvo se a sua criação resultar de um processo de associação, fusão ou extinção de instituições actualmente existentes. Durante o período da moratória deveria definir-se uma rede nacional de estabelecimentos de ensino superior adequadas as necessidades do país quer ao nível da formação quer da promoção do desenvolvimento das regiões.

1º. Parece-me urgente que se proceda a um esforço de harmonização das denominações dos cursos existentes, garantindo que a denominação de cada curso identifica correctamente a formação ministrada, permite entender as competências que ele efectivamente confere e tem a mesma denominação que os demais cursos que conferem idênticas competências.

2º. Parece-me igualmente importante que se reflicta sobre a manutenção das formações que em anos sucessivos não têm procura por parte dos alunos e desequilibram financeiramente as instituições;

3º. No que concerne à formação de professores, ciências agrárias e saúde deveria proceder-se ao estudo das necessidades de formação a dez anos e estabelecer uma rede de formação adequada às necessidades e aos recursos disponíveis.

4º Deveria investir-se no ensino básico e secundário e motivar os jovens para as formações tecnológicas, como condição necessária para a sutentabilidade do ensino superior e para o desenvolvimento do país.

5º A aprovação de novos cursos deverá obedecer a requisitos objectivos referindo a titulo de exemplo os seguintes (a) adequação ao projecto educativo da instituição, (b) fundamentos que justificam a criação do curso e a respectiva designação, (c) explicitação das competências que o curso visa conferir aos alunos e demonstração da adequação do plano curricular do curso para as conferir, (d) perfil do corpo docente, (e) currículo do curso, programas e bibliografia básica, (f) espaços físicos afectos ao funcionamento do curso, (g) caracterização dos espaços laboratoriais, equipamentos a afectar ao funcionamento do curso, (h) acervo bibliográfico disponível para apoio aos alunos, (i) expectativas de procura por parte dos candidatos ao ensino superior, devidamente fundamentada, (j) explicitação dos mecanismos de avaliação da qualidade e (l) previsão da evolução do curso a dez anos.

Para terminar reafirmo que é fundamental para o ensino superior que a reforma que seja levada a cabo seja capaz de sobreviver a um ministro, a um governo e à alternância do poder sob pena de ser uma oportunidade perdida. Isso exige que à volta das soluções a encontrar se estabeleça um consenso mínimo que vá para além da própria maioria.

Luciano de Almeida

* Presidente do Instituto Politécnico de Leiria

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