I. CONSIDERAÇÕES GERAIS
1. Um relatório, duas obsessões: consenso e flexibilização.
No passado dia 31 de Maio, a Comissão do Livro Branco das Relações Laborais ? Comissão da responsabilidade política do Governo - apresentou publicamente um "Relatório de Progresso", dando conta das actividades realizadas, e das conclusões alcançadas, ao longo dos primeiros seis meses do seu mandato. Não obstante o carácter assumidamente provisório das sugestões formuladas neste documento, o certo é que no mesmo se prefiguram já as grandes linhas que irão presidir à revisão do actual Código do Trabalho. Este relatório prefigura uma reforma do nosso direito laboral, não no sentido de corrigir as malfeitorias realizadas pela anterior maioria parlamentar de direita, mas, por incrível que pareça, no sentido de adicionar novas malfeitorias em sede da anunciada revisão do Código do Trabalho.
A CGTP-IN não pode, assim, deixar de manifestar a sua profunda discordância com o teor deste relatório, pelas razões que adiante serão sumariamente elencadas. A CGTP-IN quer acreditar que este relatório não terá passado de um acto falhado da Comissão. Ele não faz jus aos compromissos assumidos pelo PS nem pelo actual Governo.
Numa apreciação geral, dir-se-ia que o presente relatório parece marcado por uma dupla obsessão. Por um lado, a obsessão pelo consenso: tudo parece ter de ser consensualizado (o relatório abunda nesta matéria: "preocupação de encontrar fórmulas susceptíveis de consensualização", "procura de pontos de consenso", "preocupações de viabilidade consensual", etc.). Ora, não parece que reclamar o consenso como uma espécie de condição sine qua non das propostas formuladas seja uma opção metodologicamente acertada e profícua. Em matérias tão sensíveis e tão social e ideologicamente comprometidas como as que, forçosamente, teriam de ser tratadas por esta Comissão, não se vislumbra que a obsessão pelo consenso unanimista possa conduzir a bons resultados. E, se isto é assim em sede de "relatório de progresso", estamos em crer que será ainda mais assim aquando da elaboração do relatório final por parte da Comissão.
A outra obsessão do presente relatório consiste, manifesta e algo estranhamente, no mote da flexibilização do nosso ordenamento jurídico-laboral, parecendo ignorar que a "flexibilização" consistiu, inequivocamente, na pedra-de-toque da profunda reforma laboral empreendida aquando da aprovação do Código do Trabalho, em 2003, pela maioria PSD-CDS. Este relatório, em lugar de corrigir a rota traçada pelo actual Código ? uma rota liberalizadora, flexibilizadora e desregulamentadora ?, vem, afinal, propor mais do mesmo: redução das garantias dos trabalhadores, reforço dos poderes patronais, acentuação da precariedade no emprego, promoção da flexibilidade interna (temporal, salarial, funcional e geográfica), caducidade das convenções colectivas, enfraquecimento da tutela em matéria de despedimento, limitação dos direitos sindicais e, consequentemente, do exercício da actividade sindical.
É, pois, uma agenda ideologicamente conservadora e economicamente neoliberal aquela que parece pautar a actividade desta Comissão. Trata-se de uma abordagem que não tem em conta o facto de as relações laborais terem uma natureza concomitanemente social, económica, política e cultural, procurando subordinar ao objectivo do lucro a dimensão social do trabalho e do próprio direito do trabalho. Todos nos recordamos das posições publicamente assumidas pelo Partido Socialista, no momento em que se pronunciou, sem ambiguidades, sobre o conteúdo do Código do Trabalho então aprovado pela maioria parlamentar de direita.
Para comprovar o que acima se escreve, atente-se, por exemplo, no modo como esta Comissão olha para a Constituição da República (CRP). Para a Comissão, a CRP parece surgir, sobretudo, como um obstáculo, como um escolho, como um limite ("as limitações derivadas das regras constitucionais"). A Comissão assume à partida que, nos seus trabalhos, "não cuidaria de fazer sugestões de revisão constitucional" (p. 8), afirmando que "a CRP constitui um quadro de referência a observar nos trabalhos a desenvolver pela Comissão" (pudera!), mas não deixando de acrescentar que "devem ser exploradas as margens de flexibilização permitidas pela CRP" (p. 14).
Ora, é precisamente esta postura flexibilizadora, que caracteriza todo o documento elaborado pela Comissão. A Constituição da República (e, em particular, o chamado "bloco constitucional do trabalho") é concebida, sobretudo, como um escolho, como um limite negativo, como algo que, hélas, não poderá ser desatendido ou desrespeitado, mas como algo que, tanto quanto possível, deverá ser ladeado ou contornado, em nome da sacrossanta e salvífica flexibilidade.
A Constituição do Trabalho não surge, assim, aos olhos desta Comissão, como um princípio inspirador de política legislativa, o catálogo constitucional de direitos fundamentais dos trabalhadores não emerge como uma tarefa a cargo do legislador ordinário. Ao contrário: a CRP é algo que se tolera, é algo com que, mal ou bem, se terá de contemporizar (por enquanto...), mas a retórica discursiva do relatório cuida, acima de tudo, de explorar "as margens de flexibilização permitidas pela CRP".
Do que se trata, em suma, não é de dinamizar e de efectivar o projecto constitucional
Neste quadro político e parlamentar, chega a ser chocante o desapego emocional da Comissão face ao nosso texto constitucional e ao generoso projecto social que ele corporiza. Como se não se tratasse da Lei Fundamental do País.
II. RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO
3. As diversas formas de contratação laboral.
Um dos aspectos mais decepcionantes deste relatório não propriamente pelo que nele se afirma, mas sim pelo que nele se omite, prende-se, justamente, com as chamadas "formas atípicas" de contratação, em particular com o contrato de trabalho a termo e com o fenómeno do falso trabalho independente ("recibos verdes"). O relatório reconhece que estas figuras "abrangem mais de um milhão e oitocentas e dez mil pessoas" (p. 27), representando uma percentagem da população empregada nitidamente superior à média comunitária (20% para o trabalho a prazo e 24,5% para o "trabalho independente"), mas, a despeito da inegável centralidade destes temas, a Comissão limita-se a remeter a análise dos mesmos para "momento posterior" (p. 28). E todavia é aqui que, em grande medida, se joga a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores, é por aqui que se tem processado o grosso da fuga (lícita ou ilícita) à relação de trabalho típica, é por esta via que o nosso mercado de trabalho tem revelado uma insuspeitada flexibilidade.
Diga-se, aliás, que nesta matéria a Comissão pouco mais propõe do que a substituição da actual noção de contrato de trabalho (vertida no art. 10.º do CT) pelo texto da actual presunção de contrato de trabalho, constante do art. 12.º do CT (p. 26), operação substitutiva esta cujos méritos, aliás, se nos afiguram muito duvidosos. Além de converter a "presunção" em "noção", a Comissão propõe que a nova presunção de contrato de trabalho deverá ser construída "com utilização de três ou quatro índices factuais, de entre os que a jurisprudência estabeleceu" (p. 26). A Comissão não esclarece, contudo, se os aludidos índices factuais serão de verificação cumulativa ou se, para que a presunção opere, bastará que apenas um deles se verifique. Ora, como é sabido, este aspecto mostra-se de crucial importância para aferir da operatividade prática da presunção de existência de contrato de trabalho e para indagar sobre a sua real utilidade em ordem a combater as situações fraudulentas de "falso trabalho independente" que amiúde se registam entre nós.
Em suma, em toda esta matéria subsiste um grande ponto de interrogação em relação às directrizes a observar pelo futuro legislador. O que se lamenta, quer pela inequívoca centralidade destes temas, quer porque noutras matérias, quiçá menos relevantes, a Comissão não deixou de formular propostas bastante concretas e pormenorizadas.
4. Tempo de trabalho e tempo de descanso.
O relatório dedica bastante atenção à disciplina jurídica do tempo de trabalho, formulando diversas propostas a este respeito. Sucede que, a maioria das sugestões avançadas pela Comissão insere-se numa linha de indiscutível debilitação do estatuto dos trabalhadores. Merecem destaque, a este propósito, os seguintes pontos:
(i) Renúncia à fixação, por via de lei, de qualquer limite máximo para o período normal de trabalho diário (p. 30), o que, aliás, não deixa de suscitar dúvidas em relação à sua eventual desconformidade constitucional, tendo em conta o disposto no art. 59.º, n.º 1-d) e n.º 2-b), da CRP (de acordo com estas regras, todos os trabalhadores têm direito a um limite máximo da jornada de trabalho, incumbindo ao Estado a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho);
(ii) Reforço do mecanismo da adaptabilidade do tempo de trabalho, através da proposta de uma nova figura ? a chamada "adaptabilidade grupal", (pp. 30-31) ? para operar ao lado das actuais modalidades de adaptabilidade, previstas nos arts. 164.º e 165.º do CT (adaptabilidade colectiva e adaptabilidade individual), com exigência de acatamento da adaptabilidade por parte dos trabalhadores não aderentes, ainda que aprovada por maioria qualificada, seria susceptível de introduzir constrangimentos inultrapassáveis na vida pessoal e familiar do trabalhador individualmente considerado;
(iii) A Comissão propõe a supressão, "por desnecessário", do art. 168.º do CT (p. 32), norma que se refere à redução dos limites máximos dos períodos normais de trabalho através de instrumento de regulamentação colectiva e que, ademais, salvaguarda a retribuição dos trabalhadores;
(iv) Em matéria de intervalos de descanso, a Comissão recomenda que se reduza o limite mínimo de tais intervalos, passando esse limite de uma hora (actual art. 174.º) para 30 minutos (pp. 32-33);
(v) Em sede de trabalho suplementar, as propostas da Comissão mostram-se particularmente criticáveis, quer porque se recomenda o alargamento dos limites desse trabalho (hoje fixados, já em moldes bastante generosos, no art. 200.º do CT), quer porque se aponta para a eliminação da majoração remuneratória que hoje inere à prestação de trabalho suplementar (art. 258.º), a qual seria substituída por um "regime de descanso integralmente compensador do trabalho suplementar realizado" (p. 33);
(vi) A ânsia flexibilizadora manifesta-se de tal forma que não escapa à Comissão sequer o objectivo de proceder à transposição de alterações à Directiva da Organização do Tempo de Trabalho (designadamente do conceito de período inactivo do tempo de permanência), ainda não aprovadas e que se encontram em discussão há já alguns anos, apesar de terem sido sistematicamente recusadas, para a eventualidade de serem aprovadas no decurso da revisão do Código do Trabalho.
Em síntese, nenhuma dúvida se levanta de que o essencial das alterações sugeridas em sede de tempo de trabalho visa reforçar os poderes patronais de gestão da força de trabalho, com a inerente deterioração e profunda fragilização da posição dos trabalhadores neste domínio e com efeitos demolidores na conciliação da vida profissional e familiar das pessoas.
5. Retribuição e flexibilidade salarial
As propostas avançadas pela Comissão no tocante ao estatuto remuneratório dos trabalhadores e à chamada "flexibilidade salarial" não podem, também elas, deixar de merecer um juízo de forte reprovação por parte da CGTP-IN. Aliás, nesta matéria, todas as alterações sugeridas ? algumas, diga-se de passagem, um tanto mesquinhas, parecendo a Comissão empenhada em, migalha a migalha, retirar direitos àqueles que já pouco têm ? afectam a posição dos trabalhadores. Assim:
i) No que diz respeito às diuturnidades, a proposta da Comissão vai no sentido de as erradicar do disposto no n.º 1 do art. 250.º do CT (p. 34), o que, óbvia e inevitavelmente, terá como efeito o estreitar da base de cálculo de várias prestações complementares e acessórias devidas aos trabalhadores (pense-se, para dar apenas um exemplo, no caso do subsídio de Natal);
ii) A Comissão propõe a introdução de um novo princípio em matéria salarial ? o princípio da redutibilidade da retribuição ?, admitindo que "poderá ser acordada entre o trabalhador e o empregador a redução da retribuição com fundamentos objectivos definidos pela lei e sujeitos ao controlo da Inspecção do Trabalho" (p. 34). Esta é, na opinião da CGTP-IN, uma proposta particularmente criticável e altamente perigosa. Permitir a redução da retribuição por mero acordo individual entre as partes desta relação assimétrica, ainda que "com fundamentos objectivos definidos pela lei" (e quais? os vagos e inevitáveis "motivos estruturais, tecnológicos ou de mercado"?) e "sujeitos ao controlo da Inspecção do Trabalho" (resta saber até quando se manteria esta exigência legal, tendo em conta os dados da experiência recente em casos análogos...), parece-nos um princípio que deverá ser liminarmente rejeitado;
iii) No tocante ao subsídio de férias, a proposta, avançada pela Comissão, de o fazer coincidir com a "retribuição base correspondente à duração mínima legal das férias" (p. 34), sendo, sem dúvida, clarificadora face à actual e controversa redacção do n.º 2 do art. 255.º do CT, não deixa, como é óbvio, de se traduzir numa clarificação feita contra os trabalhadores e que emagrece a base de cálculo do subsídio de férias. Aliás, cabe perguntar por que razão não se pensa em retomar a linha tradicional do nosso ordenamento nesta matéria, estabelecendo que o subsídio de férias será de montante igual à retribuição das férias ? solução esta que, a mais de ser clara, não diminuiria o montante desta prestação retributiva anual devida aos trabalhadores, como lamentavelmente sucede com a proposta formulada pela Comissão;
iv) A Comissão propõe ainda, no que concerne ao subsídio de férias, que seja revogado o n.º 3 do art. 255.º do CT, "por inútil e sem aplicação prática" (p. 34). A CGTP considera, porém, que o princípio vertido neste artigo ? o de que, em regra, o subsídio de férias deve ser pago antes do início do período de férias ? deve continuar a ser consagrado, quiçá até com mais vigor do que hoje, pela nossa lei geral do trabalho, pois é bem sabido que as férias, para desempenharem cabalmente as suas funções, implicam um acréscimo de despesas para o trabalhador, ao qual este apenas poderá dar resposta caso o respectivo subsídio seja pago antes do início daquelas.
6. Mobilidade funcional e geográfica
É sabido que a disciplina da mobilidade funcional e geográfica foi uma daquelas áreas em que a "pulsão flexibilizadora" do actual CT mais se fez sentir, designadamente ao transformar o regime legal destas matérias num regime assumidamente supletivo (cfr., a este propósito, o disposto nos arts. 314.º/2, 315.º/3 e 316.º/2 do CT), assim permitindo que, por mera estipulação contratual entre os sujeitos desta relação desigual, o empregador fique autorizado a modificar unilateralmente os parâmetros funcionais e espaciais da prestação devida pelo trabalhador. Ou seja, a despeito da indiscutível importância dos valores aqui envolvidos (alguns com dignidade constitucional, derivados da garantia da estabilidade no emprego), o certo é que o CT, no seu afã desregulamentador, esvaziou a tutela concedida aos trabalhadores nestas matérias, remetendo a disciplina das mesmas para o contrato individual ? assim permitindo que o mais forte imponha as suas leis, por via das designadas "cláusulas de mobilidade", às quais o candidato a trabalhador se limita a aderir, sob pena de não conseguir o almejado emprego... ? e assim deixando os trabalhadores inteiramente à mercê da vontade, quando não dos caprichos, do empregador.
Neste contexto, seria legítimo esperar que a Comissão propusesse alterações significativas às supramencionadas normas do CT, tendentes a estabelecer, por via legal, um conjunto de garantias mínimas para os trabalhadores em sede de determinação funcional e geográfica da respectiva prestação, colocando-os a coberto do arbítrio patronal. A verdade, porém, é que as propostas apresentadas pela Comissão nesta matéria (enunciadas nas pp. 34-35) mostram-se desconsoladoras. Com efeito, sendo embora certo que a ideia de estabelecer um prazo limite para o exercício temporário de funções não compreendidas na actividade contratada (jus variandi, previsto no art. 314.º do CT) merece a concordância da CGTP-IN, o prazo proposto pela Comissão ? 3 anos ? afigura-se manifestamente excessivo, retirando ao jus variandi as notas de mecanismo anómalo e de emergência que, desde sempre, o têm caracterizado.
Por outro lado, a previsão da caducidade das cláusulas contratuais de mobilidade (geográfica e/ou funcional) após cinco anos de não activação das mesmas pelo empregador mostra-se, não só uma medida claramente insuficiente em ordem a dar resposta aos consideráveis e delicados problemas resultantes da inclusão deste tipo de cláusulas num contrato de adesão como é o contrato de trabalho, mas ainda uma medida susceptível de provocar efeitos perversos, visto que, assim sendo, o empregador poderá ser tentado a activar mesmo as ditas cláusulas apenas para evitar a respectiva caducidade. Com efeito, se a prática empresarial vem demonstrando que estas claúsulas representam uma preciosa alavanca de poder contratual para o empregador ? note-se: um poder de modificação unilateral do conteúdo de um contrato bilateral ?, não é crível que este deixe caducar tais cláusulas pela não utilização prolongada das faculdades conferidas pelas mesmas. O que seria razoável esperar, caso esta proposta da Comissão viesse a ser transformada em lei, seria justamente o contrário: seria que o empregador accionasse aquelas cláusulas de mobilidade (por exemplo, transferindo o trabalhador para outro local de trabalho de cinco em cinco anos) apenas em ordem a preservar o poder que elas lhe conferiam. Uma tal proposta é tanto mais criticável quando os tribunais têm vindo sistematicamente a considerar estas cláusulas ilegais e nulas, com o fundamento de que só face a situações concretas, o trabalhador poderá ajuizar de eventuais prejuízos para a sua vida pessoal e familiar.
Em suma, num domínio
7. Motivação do despedimento e despedimento por "inadaptação"
O princípio da motivação do despedimento não é, obviamente, postergado pela Comissão (quanto mais não seja em virtude dos "condicionalismos" e das "limitações" resultantes das regras constitucionais). Em todo o caso, e no tocante à delimitação dos motivos que podem legitimar o despedimento dos trabalhadores, a Comissão considera que "há conveniência em aligeirar e clarificar alguns dos requisitos que a lei actual impõe" em matéria de despedimento por inadaptação (p. 40).
Ora, a este propósito, sejamos claros: o que a Comissão propõe, a pretexto de "aligeirar" e "clarificar" requisitos, não é senão uma pouco discreta transmutação da figura do despedimento por inadaptação numa espécie, qualitativamente distinta, de despedimento por inaptidão (na p. 41, o relatório alude à "ineptidão" do trabalhador). Vale dizer, de um despedimento por inadaptação, baseado em causas objectivas e radicado na prévia introdução de modificações no posto de trabalho (maxime resultantes de modificações tecnológicas ao nível dos equipamentos utilizados), a Comissão sugere que se transite para um despedimento por inaptidão (ou incompetência, ou desempenho insuficiente do trabalhador...), baseado em causas subjectivas e desligado da referida introdução de modificações no posto de trabalho.
Trata-se, portanto, em rectas contas, de reconfigurar e de alargar as causas legitimadoras do despedimento patronal, numa operação que, a mais das fortes reservas que suscita a nível da sua constitucionalidade ? tendo em conta a expressa proibição dos despedimentos sem justa causa constante do art. 53.º da CRP ?, ameaça fazer resvalar o nosso sistema para algo de muito próximo ao sistema do despedimento livre ou imotivado (despedimento ad nutum). Com efeito, a alegada inaptidão, a invocada incompetência, o eventual desempenho insuficiente ou insatisfatório do trabalhador, tudo isto poderá redundar, na prática, numa virtual insindicabilidade dos motivos aduzidos pelo empregador, em nome do sempre reclamado respeito judicial pelos critérios de gestão empresarial.
Do que aqui se cuida, repete-se, não é de retocar a figura do despedimento por inadaptação. Visa-se muito mais do que isso, visa-se criar novos motivos legitimadores do despedimento, para mais, como se disse, motivos, na prática, dificilmente escrutináveis pelos tribunais. E motivos, aliás, dificilmente compatíveis com o nosso ordenamento constitucional. Também neste plano, pois, o relatório merece um juízo negativo por parte da CGTP-IN.
8. Despedimento ilícito: inválido ou meramente irregular?
"Aligeirar" parece ser, com efeito, a palavra de ordem da Comissão, em sede de despedimento patronal. Não só se propõe, nos termos expostos acima, o aligeirar dos requisitos do despedimento por inadaptação, como se propõe, em sede procedimental, "uma considerável simplificação da carga processual" (p. 36). Ou seja, a Comissão entende que os actuais modelos processuais de despedimento se têm revelado excessivamente pesados para o empregador, pelo que admite uma "simplificação profunda" nesta matéria, designadamente em sede de procedimento disciplinar, com muitas das formalidades hoje impostas ao empregador a deixarem de ser obrigatórias, "cabendo ao empregador decidir se as pretende promover ou não, sendo certo que devia ficar claro na lei que a realização ou a não realização de diligências probatórias em sede de procedimento não teria consequências na avaliação judicial do despedimento" (p. 38).
Sucede, entretanto, que a Comissão não se fica por aqui. Na verdade, uma das mais relevantes propostas de alteração formuladas pela Comissão consiste na "reconfiguração dos efeitos do despedimento ilícito, distinguindo os vícios procedimentais dos materiais, em que os primeiros não conduzam à invalidade do despedimento" (p. 37). Ou seja, e se bem entendemos, não só se propondo a diminuir vícios procedimentais, como a violação, pelo empregador, da maioria dos requisitos processuais que lograsse sobreviver a esta reforma simplificadora conduziria à mera irregularidade do despedimento ilícito (e não já à invalidade deste, com o consequente direito à reintegração do trabalhador alvo do despedimento ilícito).
A este propósito, parece-nos imperioso vincar duas ideias. Em primeiro lugar, a de que a combinação destas duas medidas ? o aligeirar das exigências procedimentais prévias ao despedimento e o minguar da sanção para a inobservância das exigências que subsistam (da invalidade para a mera irregularidade) ? poderá ter um efeito quase explosivo a este nível, sacrificando em demasia a dimensão procedimental que não pode deixar de assistir à garantia constitucional da segurança no emprego.
Em segundo lugar, não deixa de ser sintomático que a Comissão, ao mesmo tempo que "desarma" o trabalhador a nível procedimental, procedendo à "distinção entre vícios formais e materiais, com limitação da invalidade do despedimento aos segundos" (p. 41), não tenha, quanto a estes últimos ? os despedimentos sem justa causa ? feito qualquer proposta no sentido de modificar o actual art. 438.º do CT, o qual, como é sabido, concede ao empregador a faculdade de, em certos casos, se opor à reintegração do trabalhador que haja sido despedido sem razão bastante e que pretenda retomar a sua actividade laboral. Esta foi uma das normas mais emblemáticas (e, acrescente-se, problemáticas) introduzidas pelo CT aprovado pela anterior maioria parlamentar de direita, justamente por recusar ao trabalhador ilicitamente despedido a faculdade de, por sua livre e exclusiva vontade, decidir se pretende ou não ser reintegrado no seu posto de trabalho. E a verdade é que a "Comissão do Livro Branco", tão pressurosa a propor a distinção entre vícios formais e materiais e a limitar a invalidade do despedimento a estes últimos, nem sequer consegue propor que, relativamente a estes, a lógica do despedimento inválido seja integralmente assumida, garantindo a todo e qualquer trabalhador injustamente despedido o direito de, se assim o desejar, ser reintegrado no lugar de onde foi ilicitamente afastado pelo empregador!
A CGTP-IN critica energicamente e, sobretudo, lamenta profundamente esta preocupante falta de equilíbrio revelada pela Comissão ao formular propostas deste jaez. E a CGTP-IN reitera a sua firme convicção de que, no relatório final da Comissão, estes "vícios materiais" do relatório de progresso não poderão deixar de ser sanados.
III. O PRINCÍPIO DO TRATAMENTO MAIS (DES)FAVORÁVEL
9. Afinal tudo na mesma ou ainda pior?
O chamado Relatório de Progresso é uma verdadeira caixa de surpresas. Lê-se mas não é fácil acreditar o que é avançado sobre o princípio do tratamento mais favorável. Afinal não prometeu o PS o retorno do princípio que, para escândalo de toda a oposição e dos trabalhadores, o Governo PSD/CDS acabava de subverter com a aprovação do Código do Trabalho?
Tendo em conta, por um lado, o contexto que rodeou a aprovação do art. 4.º, a posição do PS e as fundadas dúvidas de inconstitucionalidade, e, por outro lado, a história e a memória dos milhões de trabalhadores anónimos que dele fizeram um dos mais sólidos e simbólicos alicerces do moderno Direito do Trabalho, seria impensável que uma Comissão designada pelo actual Ministro não contemplasse sequer a hipótese de reposição do princípio do tratamento mais favorável, tal como ele era entendido, praticamente por unanimidade, pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas.
Certo é, porém, que o impensável aconteceu. Aconteceu, com efeito, que o retorno à regra anterior, ou a regra próxima da anterior, não foi sequer, a ler o texto como relato fiel dos debates, uma das soluções ponderadas pela Comissão (p. 24, n.º 1.1.), não constando, consequentemente, do elenco de sugestões por ela apresentadas (p. 25, n.º 1.2.).
Sucede ainda pior. O Relatório, numa operação objectivamente confusionista, dá a entender que a questão de fundo é, a este propósito, «a de saber se se deve manter a possibilidade das convenções colectivas estabelecerem soluções menos favoráveis aos trabalhadores do que as fixadas na lei» (p. 24, n.º1.1.).
Só que a questão de fundo ? se é que essa é questão ? não é a da possibilidade de uma convenção colectiva estabelecer soluções menos favoráveis do que as previstas na lei; a questão de fundo é, antes, a de saber qual, nesta matéria, haverá de ser a regra ou o princípio: a regra de que a convenção colectiva pode ou a regra de que a convenção colectiva não pode estabelecer condições menos favoráveis aos trabalhadores do que as previstas na lei?
Dito de outro modo: deve consagrar-se a regra segundo a qual as normas da lei fixam condições mínimas de trabalho, insusceptíveis, por isso, salvo nos casos expressamente contemplados, de ser alteradas em sentido menos favorável ou a regra segundo a qual as normas da lei não fixam condições mínimas, podendo, consequentemente, salvo nos casos em que digam o contrário, ser alteradas por convenção colectiva em sentido (mais ou) menos favorável?
É conhecida a posição da CGTP-IN sobre esta questão que, aliás, sempre foi coincidente com a posição assumida pelo PS aquando da discussão e aprovação do CT. A CGTP-IN não vislumbra qualquer argumento novo que recomende a sua reconsideração, fundamentalmente porque toda a mudança que vise a alteração substancial dos quadros em que se desenvolveu e se move o direito do trabalho, enquanto disciplina científica, bem como dos seus princípios e conceitos fundamentais ? onde se situa o princípio do tratamento mais favorável ? não corresponderá a qualquer progresso, como se pretende, mas a um retrocesso, não apenas do ponto de vista social mas também do ponto de vista científico.
As malfeitorias do Relatório não acabam, porém, aqui. Com efeito, o Relatório não só não contempla a hipótese de retorno do princípio do tratamento mais favorável como princípio regulador da relação entre a lei e a convenção colectiva, como, ainda por cima, sugere, por mais estranho que possa parecer, uma espécie de n.º 1 do art. 4.º para regular a relação entre a convenção colectiva e o contrato individual de trabalho.
Na verdade, uma das três sugestões do Relatório apresentadas a propósito da «problemática do art. 4.º» é a de que «seja repensada a manutenção da permissão que o art. 531.º confere à contratação colectiva para impor soluções inderrogáveis aos contratos de trabalho», isto é, o Relatório sugere que o art. 531.º seja repensado em termos de passar a não permitir que as convenções colectivas imponham aos contratos individuais condições mínimas de trabalho, ou seja, a Comissão sugere que as condições previstas em convenção colectiva passem a poder ser alteradas, também em sentido menos favorável, por contrato individual de trabalho.
Quem esperaria uma sugestão tão surpreendente, uma sugestão verdadeiramente subversiva da própria natureza da convenção colectiva e revisora, nesta matéria, da Constituição?
IV. O DIREITO COLECTIVO
11. Estruturas de representação dos trabalhadores, estatuto dos representantes sindicais e direito de reunião
São várias, embora nem todas de igual importância e significado, as «linhas tendenciais de consenso» da Comissão relativas ao direito colectivo. Três das que aqui vão ser brevemente comentadas dizem respeito às estruturas de representação colectiva, ao estatuto dos representantes e ao direito de reunião durante o tempo de trabalho, centrando-se as restantes, em especial, na contratação colectiva, com a novidade da introdução do expediente da representatividade das associações de trabalhadores e de empregadores.
(i) O Relatório propõe a redução do número de estruturas de representação dos trabalhadores com a concentração nas comissões de trabalhadores das atribuições de informação e consulta dos representantes para a higiene, a saúde e a segurança no trabalho. Trata-se, no entendimento da CGTP-IN, de uma medida desadequada, tendo em conta a diferente natureza das matérias e, consequentemente, a singularidade das funções próprias da área da saúde e da segurança, sobretudo se se não esquecer que estas funções se não reduzem, como parece sugerir o Relatório, à mera informação e consulta.
(ii) No que respeita ao estatuto dos representantes dos trabalhadores são dois os aspectos que o Relatório refere expressamente: o do número de membros da direcção das associações sindicais com direito ao crédito e a justificação das ausências para desempenho de funções e o do «estatuto» dos delegados sindicais.
Preconiza a Comissão, quanto ao primeiro dos referidos aspectos, o recurso ao critério da representatividade para limitar o número de membros titulares dos citados direitos.
O problema do «estatuto» dos delegados sindicais reveste, igualmente, uma importância de grande significado, já que as «linhas tendenciais de consenso» da Comissão sobre esta matéria se traduzem numa espécie de subversão da concepção do delegado sindical, aliás com alguma tradição entre nós. Verdadeiramente, o que a Comissão preconiza é o fim da figura em causa e a sua substituição, ainda que sem alteração do nome, pela figura próxima do "representante do pessoal". Com efeito, sendo hoje o delegado sindical eleito e eventualmente destituído por voto directo e secreto dos membros da secção sindical, ou seja, por voto dos trabalhadores da empresa ou estabelecimento filiados no mesmo sindicato (art. 476.º/e do CT), o delegado sindical aparece como representante destes trabalhadores perante o empregador e a própria direcção sindical. Ora, com a proposta de eleição do delegado por voto de todos os trabalhadores, incluindo os não sindicalizados, a Comissão propõe e defende que o delegado sindical deixe de pertencer às estruturas sindicais para se tornar uma estrutura dos trabalhadores da empresa seus representados, o que é absolutamente inaceitável;
(iii) Considera também a Comissão que deverá existir um único direito de reunião dos trabalhadores durante o tempo de trabalho com redução de 30 para 20 do número de horas de reunião, ainda que com a possibilidade de um adicional de 10 horas para reuniões de trabalhadores sindicalizados. Como se vê, também aqui a Comissão se inclinou para a redução dos direitos dos trabalhadores, neste caso para a redução dos direitos de participação democrática dos trabalhadores na empresa, posição que é de registar, quando se sabe que, nesta matéria, em Portugal o que é necessário é melhorar as condições que permitam o aumento da participação.
Em conclusão: o que o relatório vem sugerir, nesta matéria, com argumentos retirados dos manuais do neo-liberalismo económico e ainda que de forma não claramente assumida, é, afinal, a redução dos direitos dos trabalhadores em geral, e dos direitos de participação e dos direitos sindicais em particular, posições que têm de ser afastadas.
12. O sistema de contratação colectiva
As "linhas tendenciais de consenso" de maior significado, pelas suas inevitáveis implicações no sistema português de relações laborais, dizem respeito à contratação colectiva.
O eixo da mudança residiria ? essa seria a novidade ? na introdução do critério da representatividade para vários efeitos no domínio da contratação colectiva. «A Comissão ponderou (lê-se na página 46), que o desenvolvimento da contratação colectiva depende em boa medida da representatividade das organizações».
A Comissão associa o recurso a este expediente à viabilização da aplicabilidade das convenções colectivas ao conjunto dos trabalhadores, incluindo os não sindicalizados (?) e à viabilização da «unidade de regulamentação colectiva aplicável em cada empresa».
A CGTP-IN entende que esta é uma questão de grande importância e, por isso, deixa claro que, pela complexidade e sensibilidade de que se reveste, a instância adequada à sua análise, desenvolvimento e orientação propositiva, jamais poderá ser uma instituição com a natureza, composição e mandato da Comissão.
13. Denúncia e caducidade das convenções colectivas
O Relatório refere-se ainda à denúncia e à caducidade das convenções colectivas. As medidas preconizadas quanto à primeira introduzem um pouco mais de flexibilidade na utilização deste expediente, mas também, por isso mesmo, reduzem a estabilidade das convenções, podendo provocar nos interessados alguma indesejável insegurança jurídica.
Já a questão da caducidade das convenções colectivas suscita outro tipo de comentários.
Lamenta-se, antes de mais, que a Comissão não tenha debatido, ou do debate não tenha dado notícia, a hipótese de substituição do actual regime por outro que mantivesse a sobrevigência (pelo menos da parte normativa das convenções cujo prazo de vigência chegue ao seu termo). Na parte sobre caducidade das convenções colectivas de trabalho pode ler-se o seguinte passo relativo aos pressupostos: «A Comissão considera que se deve manter a possibilidade de a convenção colectiva não revista cessar por caducidade e que esse regime deve ser em grande medida supletivo». Será esta uma questão assim tão óbvia que leve a Comissão a abster-se de qualquer fundamentação? O que leva a Comissão a não considerar sequer a possibilidade de a convenção colectiva não cessar por caducidade, salientando, porém, o carácter supletivo de tal regime?
Lamenta-se ainda a falta de informação sobre os resultados do regime que em breve completa quatro anos. Não deveria o Relatório fundar a sua pacífica (?) opinião no juízo sobre esta experiência?
Lamenta-se também que as novas propostas se limitem, praticamente, à substituição dos prazos de sobrevigência previstos no Código por um único prazo «de duração adequada ao desenvolvimento normal da negociação», ou seja, a um prazo (será abusiva tal conclusão?) mais reduzido do que o actual.
Lamenta-se, finalmente, que, a propósito de "conferir segurança jurídica aos efeitos da convenção em caso de caducidade" a imaginação da Comissão se fique pela proposta da celebração de acordos supervenientes, cuja viabilidade seria concerteza inexistente, não analisando criticamente os efeitos negativos da caducidade, que a Lei n.º 9/2006, de 20 de Março (lei da actual maioria), escandalosa e inconstitucionalmente veio introduzir.
V. CONCLUSÃO
Atendendo ao que, sinteticamente, se deixa escrito nas páginas anteriores, a CGTP-IN considera que o presente "relatório de progresso" elaborado pela Comissão do Livro Branco merece um juízo global fortemente negativo. Trata-se, pois, de um relatório incoerente com as posições assumidas pelo Partido Socialista aquando da aprovação, em 2003, do actual Código do Trabalho e que, a não ser corrigido, conduzirá a um resultado quase impensável: o de proceder a uma revisão "flexibilizante" (leia-se: redutora dos direitos dos trabalhadores e atributiva de poderes acrescidos ao patronato) do Código do Trabalho, aprovado pela defunta maioria PSD/CDS! Este seria, para além de um desfecho decepcionante, quando não trágico, para os milhares e milhares de trabalhadores que, com o seu voto, contribuiram para derrotar a direita nas últimas eleições legislativas e deram vida a uma nova maioria, uma opção injusta e violenta para todos os trabalhadores, um entrave ao desenvolvimento do país e um enfraquecimento da democracia.
A CGTP-IN não pode deixar de registar que esta "falsa partida" da Comissão constituiu já um abrir de caminho às pretensões retrogadas e anti-constitucionais do patronato, aliás já expressas em documento entregue ao Governo. Em coerência com os compromissos assumidos pelo PS, o Governo tem obrigação de se demarcar das opções da Comissão não permitindo que este cenário se desenvolva.
A CGTP-IN espera que a avaliação global dos resultados, a realizar pela Comissão no final dos seus trabalhos, possa inverter o sentido regressivo do presente "relatório de progresso", tendo até em atenção a provisoriedade dos consensos obtidos e, aliás, assumida no texto do próprio relatório (p. 9). Caso contrário, a CGTP-IN não deixará de se opor energicamente a mais uma alteração das leis do trabalho que, afinal, se traduzirá em lesar os direitos e em frustrar as expectativas de todos os trabalhadores.
Lisboa, 7 de Setembro de 2007
A Comissão Executiva do
Conselho Nacional da CGTP-IN