Neste momento estão em confronto no Sistema Nacional de Saúde aquilo a que chamamos, até para sistematizar e tornar mais claro o que está em jogo, quatro sistemas de gestão diferentes que reflectem também interesses diferentes, e que são: (1) O sistema de gestão público administrativo da saúde; (2) A empresarialização, ou sistema de gestão economicista da saúde;(3) O sistema de gestão privado explorando equipamentos adquiridos com fundos públicos e um mercado financiado pelo Orçamento do Estado; (4) O sistema de gestão publica da saúde orientada pelos critérios da eficiência, eficácia e de responsabilização. A posição do futuro governo em relação a cada um deles mostrará que interesses defende.
O primeiro sistema - a gestão pública administrativa da saúde - que permitiu ao país obter importantes ganhos na saúde, está esgotado. Defendê-lo de uma forma cega, como por vezes acontece, é facilitar a destruição do SNS. E isto porque ele determina elevadas perdas de eficiência e de eficácia causadas pela falta de planeamento, pela ausência de objectivos claros aos vários níveis e de uma responsabilização efectiva pelo cumprimento desses objectivos, pela subutilização dos meios humanos e materiais e pela promiscuidade que se continua a verificar entre o público e o privado.
O segundo sistema - a empresarialização, ou a gestão economicista da saúde - é já possível também saber o que significa na prática pois já existem dois exemplos concretos da sua aplicação nos chamados Hospitais SA. E esses dois exemplos são os contratos programas assinados entre os Hospitais SA e o Ministério da Saúde e a proposta de ACT para os Hospitais SA apresentado pelo mesmo ministério aos sindicatos.
Os contratos programa que todos os Hospitais SA foram obrigados a assinar, são contratos em relação aos quais os profissionais dessas unidades de saúde foram totalmente marginalizados, pois os contratos assinados são secretos até para eles (não foram dados a conhecer a eles), não existindo qualquer contratualização com os diversos serviços daqueles hospitais que garantisse que os objectivos estabelecidos fossem cumpridos (é um contrato imposto de cima em que os profissionais da saúde envolvidos na sua execução não conhecem o seu conteúdo, em que se chega ao ponto de pagar mais por não realizar uma prestação de saúde do que por fazer acima da meta).
Por outro lado, a proposta de ACT para os Hospitais SA apresentada pelo Ministério da Saúde pretende aumentar o horário de trabalho de 35 horas semanais para 45 horas; baixar o actual valor da remuneração hora dos profissionais de saúde entre 10% e 30%; precarizar ainda mais o trabalho no sector de saúde através da aplicação do regime de comissão de serviço a todos os profissionais de saúde o que permitiria à entidade patronal despedir os trabalhadores quando quisesse; tornar obrigatória a transferência do trabalhador para outra unidade de saúde quando a entidade patronal o quiser, etc.
Em resumo, objectivos claramente economicistas, visando reduzir a despesas à custa da degradação da qualidade dos serviços prestados á população e também dos profissionais de saúde. É preocupante que conste no programa do PS para a saúde que o processo de empresarialização será prosseguido.
O terceiro sistema - o sistema de gestão privado da saúde pública explorando equipamentos adquiridos com dinheiros públicos e um mercado financiado pelo OE - tem como base um conjunto de leis publicadas pelo governo PSD/PP. Essas leis são o Lei 27/2002, que alterou cirurgicamente a Lei de Bases da Saúde que estava em vigor de forma a permitir, por um lado, a aplicação do contrato individual de trabalho e o Código do Trabalho aos trabalhadores da saúde e, por outro lado, a transformação dos hospitais públicos em sociedades anónimas (os chamados hospitais SA) de forma a criar as condições que facilitassem a sua privatização futura; o Decreto Lei 272/2002 , o Decreto-Lei 185/2002 e o Decreto-Lei 60/2003, todos eles contendo disposições que permitem a entrega à exploração privada ou de serviços dos hospitais públicos actualmente em funcionamento, ou da totalidade dos novos hospitais que se venham a construir, ou dos próprios centros de saúde.
Para tornar o negócio seguro e lucrativo o Estado obriga-se também (todas as leis referidas anteriormente contêm disposições nesse sentido) a criar um mercado para os privados financiado pelo Orçamento do Estado, através de acordos a serem assinados pelo SNS e a pagar aos privados os serviços que prestem à população com base numa tabela de preços negociada com eles.
Nesse campo, o programa do PS apenas contém o compromisso de transformar os Hospitais SA em Entidades Empresarias Públicas (as chamadas EPE) , o que significa, por um lado, que o seu capital terá de ser detido pelo Estado e por outras entidades públicas (artº 26 do DL 558/99), o que é positivo; e, por outro lado, a aplicação às EPE o contrato individual de trabalho e do Código do Trabalho, bem como dos princípios de gestão empresarial ou economicista, o que é bastante negativo.
Para além disto, o programa do PS apenas promete revogar o DL 60/2003 e rever (não acabar) o modelo de parcerias público privados, que significa, na praticam a entrega dos novos hospitais à exploração privada. Parece ser também intenção do PS manter as alterações que o PSD e o CDS introduziram na Lei de Bases da Saúde assim como a nova Lei de gestão hospitalar.
Finalmente, o último sistema, uma gestão publica da saúde orientada pelos princípios da eficiência, eficácia e responsabilização que é, sob o ponto de vista técnico, a que melhor se adequa a um sistema público de saúde implica profundas mudanças no Serviço Nacional de Saúde, incluindo a cultura do desperdício e da não responsabilização pelo cumprimento de objectivos ainda dominante em muitas unidades de saúde.
E essas mudanças são, nomeadamente, as seguintes:
(a) Acabar com a promiscuidade existente entre o publico e privado, separando os dois sistemas (por ex., um director ou um especialista do serviço de hemodiálise -nefrologia- de um hospital publico não deve poder trabalhar simultaneamente numa das principais multinacionais de hemodiálise instaladas em Portugal, como são a FRESSENIUS e a GAMPRO ou possuir uma empresa para fazer o mesmo);
(b) Criar carreiras motivadoras e compensadoras para os profissionais de saúde que optem integralmente pelo sistema público;
(c) Apostar fortemente na promoção da saúde investindo uma parcela muito maior dos recursos disponibilizados pelo Estado para saúde nos centros de saúde apetrechando-os com os meios materiais e humanos que necessitam;
(d) Investir mais no ensino da saúde de forma a formar os profissionais que o país precisa;
(e) Implementar nas unidades de saúde uma gestão baseada nos princípios da eficiência, eficácia e responsabilidade, o que pressupõe a contratualização com base em orçamentos e planos elaborados com a participação dos respectivos profissionais, de forma a garantir a plena e eficiente utilização dos meios existentes e sua responsabilização pelo cumprimento dos objectivos assim definidos (não é admissível a subutililização de meios materiais e humanos, incluindo de serviços inteiros, que continua a verificar-se em muitas unidades de saúde devido à ausência de um planeamento e de uma responsabilização eficaz , e até de interesses instalados);
(f) Criação de redes de aprendizagem com as boas praticas verificadas na área da saúde acessível aos respectivos profissionais e de um cartão de utente com os dados clínicos do seu possuidor, instrumentos importantes para aumentar a eficiência e a eficácia dos meios utilizados; etc.
É evidente, que não é "prosseguindo o processo de empresarialização" como defende o PS na pág. 80 do seu programa eleitoral, nem entregar a gestão da saúde pública à exploração privada como defendem Correia Campos, ex-ministro da saúde do PS , e o PSD e o CDS que se resolverão os problemas que enfrenta actualmente o Serviço nacional de Saúde