Nacional
Intervenção de MÁRIO Nogueira no colóquio de "A Página"

“Os Professores e a República: desafios de autoridade profissional e cívica”

04 de outubro, 2010

Mário Nogueira foi um dos intervenientes no colóquio “Educação e Res Publica” que a revista “ A Página da Educação” realizou no passado dia 2 de Outubro (sábado), no auditório do Conservatório de Música do Porto.

Numa Mesa (foto) em que estiveram os três Secretários Gerais da FENPROF (António Teodoro, Paulo Sucena e o actual Mário Nogueira), o debate, moderado por Manuela Mendonça, Coordenadora da Direcção do Sindicato dos Professores do Norte (SPN), desenvolveu-se em torno do tema “Professores e República: desafios de autoridade profissional e cívica”.

Da parte da manhã, o colóquio, cuja realização contou com os apoios da ProfeEdições e do SPN, já tinha abordado as “Repúblicas ibéricas: desafios de Educação, Formação e Cidadania”, a partir das intervenções de José Hernández Diaz, catedrático de História da Educação, docente da Universidade de Salamanca; e de Manuel Loff, professor auxiliar de História e Estudos Políticos Internacionais (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Este debate foi moderado por Isabel Baptista, Directora da Página, docente universitária e investigadora, que, articulando as lições do passado com os desafios do presente e do futuro, realçou a importância estratégica da Educação e da Escola Pública de qualidade na construção das sociedades democráticas. 

Coincidindo o Dia Mundial dos Professores com a data da alvorada republicana de 1910, a (feliz) iniciativa da Página da Educação transformou-se num interessante debate público em torno de questões centrais que, como sublinhou a organização, “desafiam hoje a nossa República, designadamente nos âmbitos da cidadania, da educação e da profissionalidade docente”.

Duas palavras finais para sublinhar os momentos de abertura e encerramento do colóquio: a aplaudida actuação do coro de pais e encarregados de educação dos alunos do Conservatório de Música do Porto, sob a direcção do maestro António Diogo - a abrir; e o comentário-síntese de Ana Brito Jorge, da Página, a fechar a iniciativa.

O debate de 2 de Outubro vai continuar nas páginas da Página. / JPO 

 Intervenção de Mário Nogueira

Ser professor é viver uma vida dedicada a uma missão quase impossível, escreveu Eggleston (1992:1). Talvez seja, mas, como afirmou a FENPROF, na sua primeira campanha de promoção da imagem social dos professores, a profissão de professor continua a ser uma profissão de futuro, ainda que uma das marcas mais dramáticas do nosso presente seja, precisamente, uma enorme falta de confiança no futuro.

É consensual a afirmação de que o papel do professor é extremamente complexo e difícil de assumir e desenvolver, dados os constrangimentos que se lhe colocam – de ordem social, política, laboral, pessoal, entre muitos outros –, assim como o conjunto de ambiguidades e contradições com que se depara. Ambiguidades que se acentuam no paradoxo de, a um elevado estatuto social corresponder um nível bem menos elevado do seu estatuto remuneratório, da sua carreira e das suas condições de trabalho; contradições que resultam de uma cada vez maior transformação dos docentes em meros agentes de execução de políticas e aplicação de medidas de que, muitas vezes, discordam, destinando-se a sua acção a garantir, com ligeiras nuances, a reprodução do sistema social.

É neste quadro que se desenvolve a acção dos professores, sujeita às mais variadas pressões e a responsabilidades acrescidas. Exige-se-lhes que estimulem os alunos mais rápidos, sigam aqueles que trabalham lentamente, velem pela atmosfera da aula, programem as suas actividades, avaliem, aconselhem, recebam os pais e conversem com eles sobre a evolução dos seus filhos, organizem actividades extra-escolares, participem nos conselhos de professores e de turma, nas reuniões, se ocupem por vezes de problemas administrativos e até vigiem os recreios, os refeitórios ou os transportes escolares (Esteve e Franchia, 1988).

Hoje ainda é assim e no futuro a situação não tende a simplificar-se, pelo contrário é expectável a sua complexificação e, com distâncias que não se limitam às temporais, foram exigentes, embora diferentes, os desafios que se colocaram aos professores durante a Primeira República, desafios a que, em tempos tão conturbados, procuraram responder adequadamente.

Nos meios mais progressistas, a Educação era aspecto central por se considerar que só uma população culta e instruída poderia aderir ao programa revolucionário republicano e por considerarem que a instrução era a forma adequada de criar uma verdadeira consciência cívica. Também por entenderem que “O Homem vale sobretudo pela educação que possui” decidiram, em consonância com o seu pensamento, investir na Educação, tomando medidas concretas, de onde avultam a criação do ensino infantil, a obrigatoriedade e gratuitidade do ensino primário elementar e a criação dos níveis complementar e superior deste sector de ensino.

Construíram-se novas escolas, quer primárias, quer técnicas, obteve-se um aumento da frequência do ensino secundário, com um significativo reflexo no acesso de raparigas. Aumentaram as bolsas de estudo para apoio às famílias, criaram-se novas Universidades e o investimento no factor humano e, em particular, nos professores e na sua formação também não foi esquecido, sendo, nesse sentido, fundadas as escolas normais para formar professores para o ensino primário, e escolas normais superiores destinadas à promoção da “alta cultura pedagógica” e que habilitavam para o magistério dos liceus, das escolas normais e das escolas primárias superiores.

Desafio maior para os republicanos era o combate ao analfabetismo que atingia uma taxa de 75,1% em 1911, segundo Carvalho (1986: 710) referindo dados do “Anuário Estatístico de Portugal”, citado por Maria Helena Cunha em “O Ensino Secundário Liceal na 1.ª República”. A distribuição do analfabetismo, contudo, era desigual, crescendo fora das áreas urbanas, em especial de Lisboa e Porto, assim como nos sentidos sul/norte e litoral/interior.

Era, então, tempo de massificar, num contexto que era sinónimo de democratizar. O debate chegou a dividir-se entre o encerramento das escolas para além das primárias, centrando todo o esforço na alfabetização, e os que entendiam que esse combate não impedia a promoção de níveis mais elevados de escolarização.

A democratização que tinha lugar não desvalorizava questões importantes como o da disciplina, aspecto importante para o reforço da autoridade pedagógica e também cívica dos professores. Eram emitidas recomendações aos professores, por decreto, que visavam a manutenção da disciplina nas aulas através da utilização de métodos como o desenvolvimento de relações paternais e convivência assídua com os alunos, participação nas suas associações e iniciativas, entre outros (Rocha, 1984:294/295, cit. por Cunha). Recomendações que, no entanto, segundo autores como Valente (1983::463), igualmente citado por Cunha, corresponde a uma intervenção do poder central reveladora do grau de dependência em que os estabelecimentos pedagógicos se encontravam relativamente às autoridades políticas, bem como, atrevo-me a acrescentar, os profissionais docentes.

Num quadro político e social como o que então se vivia, com sucessivas mudanças de elencos governamentais e, por consequência, de ministros no sector educativo – em 13 anos apenas, de 1913 a 1926, foram 47! – com reformas ou medidas que se sucediam e, algumas vezes, se atropelavam, apesar do esforço e da decisão política, muitas das reformas não se concretizaram, não surtiram os efeitos desejados e o próprio combate ao analfabetismo obteve resultados que ficaram muito aquém dos esperados, pois em 1920 a taxa de analfabetismo não havia baixado dos 70%.

Nesse período, no que concerne aos professores, houve, como antes se referiu, uma evolução positiva no plano da sua formação, sendo natural que tal se reflectisse num progressivo reforço da sua competência e autoridade pedagógicas e na melhoria do seu desempenho profissional.

Os tempos que corriam, no entanto, continuavam a ser de grande agitação social e, apesar das suas preocupações no plano da intervenção pedagógica, os professores, por não serem alheios ao que acontecia fora da escola, procuravam assumir as responsabilidades sociais que o processo revolucionário em curso lhes exigia. Exemplo disso deram os professores do ensino primário que se uniram em torno da União do Professorado Primário Oficial Português que representava cerca de 80% dos professores existentes. Estes abraçavam inequivocamente os ideais republicanos acreditando na Educação como factor determinante da mudança e do progresso social, tendo uma elevada consciência da importância do seu papel na sociedade e, até, da sua influência política que exerciam através de uma forte presença na imprensa.

Por outro lado, adoptando uma postura mais elitista, os professores do ensino liceal oficial, apesar de um período em que procuraram a aproximação e unificação com outros docentes – primeiro em 1911, abrindo a sua associação aos não efectivos e aos docentes das escolas de ensino profissional e técnico e, mais tarde, em 1913, tentando criar uma grande associação representativa do professorado –, goraram-se as tentativas de criar um movimento associativo abrangente e, no quadro de elevada instabilidade que se vivia, com grande facilidade despontaram ou aprofundaram-se desconfianças recíprocas entre professores oriundos dos diversos sectores. A desejada unificação acabou por não se concretizar, estendendo-se essa divisão, de novo, às diferentes categorias dentro do próprio ensino liceal. A elitização voltou a marcar o associativismo docente do ensino liceal, apesar de algumas excepções que, aqui e além procuravam afirmar-se, sendo considerado que os interesses dos efectivos do sector eram diferentes e, por vezes, contrários aos dos restantes professores, de outras categorias e outros sectores.

Não obstante este clima de divisão orgânica, o conjunto dos professores procurava defender os seus interesses sociais e profissionais, ao mesmo tempo que pugnava por um quadro de autonomia em que a profissão deveria ser exercida. Isto é, apesar das divergências, divisões e mesmo diferenças no plano da intervenção pedagógica e também cívica, podia encontrar-se já uma procura de referências que contribuíssem para a construção de uma identidade profissional.

Na procura de uma legitimação e dignificação social e profissional da docência, o discurso dos porta-vozes associativos dos professores recorre, por um lado, às novas referências que remetem para o entendimento da actividade como profissão, pondo em destaque a importante missão social de que estaria investida, os fundamentos éticos do exercício, o carácter especializado do mesmo, o rigor e a longa duração da formação e a desejável autonomia dos profissionais que os aproxima, assim, da figura do intelectual, ao mesmo tempo que o afasta da figura do funcionário (Pintassilgo: 2002; 2005).

A forma como os professores procuravam definir traços de identidade profissional estava patente no modo como reconheciam e atribuíam virtudes aos que consideravam os melhores, os seus melhores exemplos. No elogio fúnebre de Urbano de Castro a Agostinho de Carvalho, professor da escola primária superior de Rodrigues Sampaio tais virtudes estavam presentes: “o saber, o método, a bondade e a honestidade”.

Como afirma Pintassilgo em “O associativismo docente do ensino liceal português” publicado na Revista Lusófona de Educação (12, 1988: 88, 89), Esta lista é muito significativa, por articular conhecimento científico, conhecimento pedagógico e qualidade humana, tanto no que diz respeito à interioridade da pessoa, como à sua dimensão mais relacional. No que diz respeito à sua competência profissional, destaca-se, para além da sua vasta erudição, o facto dela incorporar um “saber de experiência feito”, o que dá vasta importância à prática docente e às suas virtualidades formativas. No que se refere ao método, elogiam-se as suas “faculdades de dicção”. Mas, em consonância com as considerações anteriormente feitas sobre a noção de profissão prevalecente na “classe”, a componente mais valorizada da figura do homenageado é a que se refere ao seu perfil pessoal e moral e à sua irradiação, em particular junto dos seus alunos. Para além das já referenciadas, são-lhe apontadas outras virtudes, como o “carinho”, “doçura”, “sinceridade”, “ponderação”, “sensatez”, “justiça” ou “bondade”.

Dir-se-ia, em jeito de síntese, que os professores, durante o período da Primeira República, souberam assumir as suas responsabilidades, sendo exigentes para consigo mesmos, na sua intervenção na escola e na sociedade que, aliás, nunca dissociaram, independentemente da expressão que deram a essa intervenção.

Foi uma procura constante e uma construção permanente, apenas interrompidas após a instauração da ditadura nacional que desmembrou o movimento associativo com a publicação de um decreto em 1933 que dissolveu o Sindicato dos Professores Primários e a Associação do Magistério Secundário; em 1937 foi encerrada a Sociedade de Estudos Pedagógicos e em 1946 são fechadas a Sociedade de Matemática e a Sociedade de Escritores (Pato: Contributo para a História do Sindicalismo Docente; FENPROF, 2010: 4). Este comportamento repressivo, foi acompanhado de uma clara desvalorização da função docente, nomeadamente através de um premeditado abaixamento do nível da formação de professores e a interrupção do caminho de democratização que se percorria. A ditadura fascista promoveu a elitização da escola, sobretudo no que respeita ao acesso ao ensino liceal e ao ensino superior, procurou reduzir os docentes a meros funcionários ao serviço do regime e atribuiu à escola um papel de veículo dos valores, da ética e da moral salazaristas.

Mas os professores resistiram, resistiram sempre, mesmo em alguns dos momentos mais duros da tenebrosa noite fascista, tendo, em 1972/73 surgido um dos mais consistentes movimentos de resistência e exigência. Os Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário (GEPDES) que culminaram anos de iniciativas e acção com expressão mais notória em 1969 e em 1971, através de significativas movimentações regionais.

Com o despacho 9/74, o regime tentou eliminar os Grupos de Estudo, mas, apesar disso, Fevereiro e Março desse ano foram fortíssimos em acção e Abril desfez-se em Liberdade.

Se tivermos em conta, e devemos ter, o que afirma Isabel Batista em “Dar o rosto ao futuro: a educação como compromisso ético” (2005), o passado deverá constituir um património de referência para a construção do futuro. Diz-nos a autora que o docente tem como tarefa fazer uso do passado de modo a nutrir o presente e a “dar rosto ao futuro” de forma pessoal, comunitária e global, como participante e moderador, tendo em conta a liberdade, normas, regras, acção solidária, hospitalidade, civismo e tolerância, como considerações implícitas e imprescindíveis da “vida em comum”.

É precisamente visando reforçar a ideia de a profissão de professor ser uma profissão de futuro que, na declaração que tem por objectivo orientar os professores e outros trabalhadores da educação e seus sindicatos para o respeito pelos padrões éticos requeridos pela profissão, a Internacional de Educação (IE) estabeleceu um conjunto de compromissos que os docentes deverão assumir com a profissão, com os estudantes, com os colegas, com as direcções das suas escolas que, dizemos nós, se exige que seja (re)democratizada, e com os pais.

A tais compromissos, e para que possam ser cumpridos, deverão associar-se boas condições de trabalho, o apoio da comunidade e políticas capazes de proporcionar uma Educação de qualidade. Ao mesmo tempo, afirma-se ainda no documento, só uma crescente consciencialização das normas e da ética da profissão podem contribuir para aumentar a satisfação profissional dos professores e do pessoal de apoio e de potenciar o seu prestígio e auto-estima, aumentando o respeito que a sociedade sente por esses profissionais.

 É também para este papel de consciencialização que o movimento sindical docente representativo, corporizado na FENPROF e seus Sindicatos deverá continuar a contribuir. Contrariamente ao que, por vezes, afirmam os detentores do poder e alguma opinião publicada e a si subserviente, na Educação e nas escolas não há Sindicato a mais. É curioso como alguns dos que, antes, acusavam a FENPROF de se reduzir a intervenções no restrito âmbito sócio-profissional (o que nunca foi verdadeiro), são os que agora afirmam esse excesso de intervenção sindical, tendo mesmo imposto, pela via administrativa e na sequência de decisão política, fortes constrangimentos ao exercício da actividade sindical.

 A sustentar e reforçar a ideia de que é de importância crucial os professores intervirem e fazerem-se ouvir mais, recorro a Nóvoa …se quisermos criar uma melhor credibilidade profissional, temos que aprender a ter uma voz e uma intervenção pública mais forte, mais crítica, mais decisiva em função da educação. Creio que é essa voz que nos permite em parte ganhar esse espaço público na educação. Ganhar essa dimensão do apoio da sociedade ao trabalho da escola. É preciso ganhar a confiança da sociedade para o nosso trabalho, ganhar maior credibilidade pública. É preciso conquistar a sociedade para o nosso trabalho.

Termino, afirmando, que essa voz será sempre a voz organizada dos professores, que a FENPROF continuará a assumir com orgulho, mas terá de ser, igualmente, a voz de cada um de nós, professor e professora, educador e educadora, no nosso dia a dia na escola.

Sem pôr em causa essa insubstituível intervenção individual, o tempo que vivemos, contudo, apela a uma grande unidade entre todos os trabalhadores face ao violentíssimo ataque que está a ser desferido pelo actual Governo do PS, apoiado, embora de forma não explícita, pelos partidos à sua direita, pelo actual Presidente da República e por Durão Barroso. Um ataque dirigido aos trabalhadores, logo, também aos professores; um ataque aos serviços públicos, logo, também à Escola Pública; um violento ataque ao Estado social e à própria democracia, pois não é democrática a sociedade em que, para alguns ganharem muito, outros são excluídos, caem nas teias da pobreza, são violentamente atingidos nos seus direitos e na sua dignidade. Não é democrática uma sociedade em que uns poucos se enchem à custa da miséria de quase todos. Os que tais políticas desenvolvem contarão com a nossa forte oposição e resistência e com uma luta determinada que terá de conhecer uma expressão elevadíssima no próximo dia 24 de Novembro em que os trabalhadores portugueses, estou convencido, farão uma enorme Greve Geral!

Essa luta geral terá de contar com uma grande participação dos professores, ao mesmo tempo que nós, professores e professoras temos de complementar essa luta geral voltando à rua, voltando à luta, para voltarmos a exigir “Deixem-nos ser Professores!” e para continuarmos a defender a Escola Pública que, com as políticas do governo e as ameaças da direita corre realmente sérios riscos. / MN