Nacional
Atentado contra as escolas e os professores

Municipalização da Educação

07 de abril, 2003

Com data de 15 de Janeiro, o Governo publicou o Decreto-Lei nº 7/2003 que institui os Conselhos Municipais de Educação (CME), estabelece regras para a elaboração das cartas escolares e transfere novas competências para as câmaras municipais em matéria de educação.
Em primeiro lugar, importa dizer que o conceito de democracia do Governo levou David Justino a não negociar com professores, nem com a generalidade da comunidade educativa. O Governo limitou-se a aprovar o referido decreto-lei com a participação da Associação Nacional de Municípios e dos Governos Regionais da Madeira e Açores.
Numa outra oportunidade faremos uma leitura mais funda das opções ideológicas do Governo que sustentam a aprovação deste decreto-lei, mas, por agora, fazemos alguns registos de aspectos importantes.
De acordo com o ponto 2 do artigo 4º compete ao Conselho Municipal de Educação "analisar o funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, em particular no que respeita às características e adequação das instalações, ao desempenho do pessoal docente e não docente e à assiduidade e sucesso escolar das crianças e alunos, reflectir sobre as causas das situações analisadas e propor as acções adequadas à promoção da eficiência e eficácia do sistema educativo".
Trata-se de uma clara ingerência em matérias da exclusiva responsabilidade das escolas. A avaliação do desempenho do pessoal docente só pode ser competência de quem vive o quotidiano das escolas. E não se diga que esta é uma posição corporativa, porque creio que o comum dos cidadãos não imagina leigos em matéria pedagógica a avaliar o desempenho profissional dos docentes, a não ser que se pense fazê-lo a partir dos resultados escolares dos alunos. Tal caminho é absolutamente inaceitável como dizia recentemente um dirigente de uma associação de estudantes da cidade do Porto, tal padrão de medida poderia até conduzir a distorções graves nas próprias avaliações dos alunos.
Mesmo no que respeita à avaliação das instituições escolares, seria inaceitável que tal função fosse atribuída aos Conselhos Municipais de Educação. Essa é também uma área de trabalho que não pode ser atribuída a leigos. Basta uma busca na internet para encontrar diverso pensamento científico que justifica esta afirmação. Aliás, hoje já existem processos de avaliação das instituições escolares, nomeadamente através de uma instituição independente a Inspecção Geral de Educação.
Ainda no domínio das competências importa também referir outras intromissões na esfera de competências das escolas participação na negociação e execução dos contratos de autonomia, que se encontram previstos no Decreto-Lei 115-A/98 (estabelece o regime de direcção e gestão) e também apreciar os projectos educativos a desenvolver pelas escolas do município.
De igual forma, a composição dos CME é, no mínimo, uma afronta às escolas e aos professores.
As escolas públicas do ensino básico, do ensino secundário e da educação pré-escolar não têm assento nestes conselhos. Ao contrário, as escolas privadas têm lugar reservado neste processo de municipalização da educação.
Os docentes têm consagrado um representante para todo o ensino básico, outro para o ensino secundário e também um para a educação pré-escolar. De forma simples, registe-se que, entre dezoito membros, há lugar para três professores.
Agravando esta situação, em nenhum artigo se refere a forma de escolher dos representantes dos docentes. Esta deliberada omissão já está a servir para que algumas direcções regionais de educação estejam a comunicar às escolas e autarquias que reservam para si a indicação dos representantes dos docentes. Como é óbvio tal orientação é um disparate absoluto.
Mas, para se entender o sentido deste decreto-lei, registe-se que, num processo dito descentralizador, são os serviços administrativos da administração central semeados pelo país que se arrogam os direitos de indicar, nomear e o mais que se verá.
Se dúvidas existissem, a prática do Ministério da Educação e das suas capitanias avançadas deixa tudo claro: o Decreto-Lei 7/2003 tem como objectivos apertar o garrote às escolas e aos professores e (re)centralizar a administração do sistema educativo. Este decreto-lei é um recuo significativo nos tímidos caminhos da autonomia que as escolas iniciaram após Abril de 1974.
Por mais voltas que possamos dar ao assunto, para os professores, não há outra solução que não seja a resistência activa i) impedir que as direcções regionais de educação se substituam à democracia; ii) exigir com firmeza que os representantes dos docentes sejam eleitos democraticamente ; ii) contrariar qualquer tentativa de intromissão nas competências das escolas e nos saberes profissionais dos professores e educadores.
Entretanto, o Governo não deve perder a capacidade de se espantar, porque mais adiante, com o aproximar do final do ano lectivo, os professores e educadores responderão à altura da situação.
Já no final do Decreto-Lei 7/2003, o Governo passa para as autarquias as responsabilidades pelo pessoal não docente das escolas.  A FENPROF recusa qualquer atribuição de competências às autarquias locais no domínio da gestão de pessoal docente e não docente. Esta responsabilidade deve ser exclusiva das escolas e da administração educativa. Outra qualquer solução serviria apenas para criar limitações à construção da autonomia das escolas e suas associações bem como para multiplicar a burocracia existente.
Caminhos deste tipo prefiguram claramente um atentado à autonomia pedagógica, científica e organizativa das escolas e dos professores, quando se sabe que é exactamente na construção desses espaços de autonomia que pode residir um dos caminhos para a melhoria da qualidade das escolas portuguesas e do serviço público de educação.
A via da municipalização foi adoptada em vários países, com consequências pouco positivas, nomeadamente ao nível da acentuação de assimetrias entre escolas de diferentes municípios - em França, por exemplo, a leccionação de uma língua estrangeira no ensino primário passou a depender dos meios da colectividade, o que levou a que só os meninos das comunas ricas tenham acesso a aulas de Inglês ou Alemão. Paralelamente, este percurso conduziu também a um mais apertado controle sobre as escolas, contribuindo decisivamente para erguer obstáculos à construção da sua autonomia.
A realidade vivida noutros países, mas também no contexto específico do nosso país, aponta para a necessidade de repensar a municipalização como via de descentralização. Especificamente na área da educação, importa salientar que não se trata do único caminho possível.
Os professores e a FENPROF há muito que defendem outra solução que, aliás, a Comissão de Reforma do Sistema Educativo também apontou na década de oitenta: a descentralização da administração educativa deve fazer-se por via da criação de conselhos locais de educação enquanto verdadeiras estruturas de administração local do sistema educativo e, portanto, bem longe da solução destes Conselhos Municipais que o Governo quer impor.
Importa, uma vez mais, deixar claro que diferentes governos já transferiram para os municípios um conjunto de atribuições sem que, no entanto, tenham sido transferidos os necessários meios.
Por todo o país existem bons exemplos da intervenção municipal no domínio da educação. O empenhamento, a dedicação e a imaginação de muitos autarcas conseguiu fazer autênticos milages face à exiguidade de meios. Mas, a atribuição de responsabilidades sem a transferência dos meios adequados associada à falta de sensibilidade de alguns executivos municipais para os problemas da educação e das escolas, fez e faz com que: a) o parque escolar do 1º Ciclo do Ensino Básico e da Educação Pré-Escolar se encontre significativamente degradado e a necessitar de um plano de emergência para a sua recuperação e humanização; b) os estabelecimentos destes dois sectores de educação e ensino vivam na mais completa penúria de recursos materiais e financeiros, impossibilitando, muitas vezes, uma acção educativa de qualidade; c) os transportes escolares estejam, em alguns casos, a ser feitos de forma desadequada sem as mínimas condições de segurança e salubridade; d) um elevado número de escolas e jardins de infância não possua auxiliares da acção educativa ou esteja dotado de um número insuficiente; e) a acção social escolar, nomeadamente no 1º Ciclo do Ens. Básico, preste um apoio claramente insuficiente às crianças e famílias de fracos recursos.
Infelizmente, este é o resultado do processo de transferências de competências já efectuado.

Na Primeira República, as tentativas de municipalização da educação provocaram a firme oposição dos professores (leia-se Le temps des professeurs (vol II), de António Nóvoa uma publicação do INIC).
Em 1985, os professores e educadores portugueses souberam contrariar com firmeza processos semelhantes àquele que o Governo agora quer impor.
Foi necessário recorrer à greve e correr com uma secretária de estado.
Voltaremos a fazê-lo agora se for necessário !

F.A.