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Posições assumidas pela FENPROF face à revisão da LBSE

Defender e aprofundar a Escola Democrática

21 de outubro, 2003

 O actual Governo não podia ser mais claro quanto aos reais motivos que o levam a apresentar uma proposta de lei que pretende subverter profundamente o sistema educativo português, tal como está configurado na actual Lei de Bases do Sistema Educativo, do que o foi na Exposição de Motivos que antecede a referida proposta.

Apesar dos cuidados postos na sua redacção, numa tentativa pouco conseguida de ocultar os traços mais marcantes de um pensamento político que bebe, simultaneamente, nas mais claras e conhecidas fórmulas neoliberais a par de um conservadorismo bem próprio da aliança que sustenta este Governo, em vários momentos dessa Exposição de motivos ? e, bem assim, no articulado da própria proposta?? os seus autores não conseguiram esconder os retrógrados ideais que abraçam  bem como os fins que perseguem no desenvolver desta ofensiva contra a Escola Democrática em Portugal.

Por exemplo, no capítulo XI da parte preambular da sua proposta, assumem querer instalar a ?garantia da liberdade de aprender e ensinar? (como se essa garantia hoje não estivesse conseguida), num contexto que garanta a ?proeminência das liberdades fundamentais de educação perante os direitos fundamentais de educação?.

Ora é esta explicitação da forma como querem garantir a liberdade de aprender e ensinar constitucionalmente consagrada que revela um dos conceitos teóricos mais profun­dos e negativos da proposta governamental. A secundarização do direito fundamental à educação, que o Estado deve garantir a todos os portugueses, face à prioritária liberdade de ensinar, significa, como mais à frente se pode facilmente comprovar, que a preocupação com o?Deus Mercado é o traço dominante dos desígnios políticos vertidos para esta proposta.

Desenclausurar o ensino privado e colocá-lo em absoluto pé de igualdade com o ensino público é intenção expressa dos nossos gover­nantes, apostados na ?cooperação da iniciativa e responsabilidade pública, particular e coope­rativa? na definição daquilo a que eufemis­ticamente chamam uma ?rede de ofertas educa­tivas? e que mais não significa que a substituição da responsabilidade do Estado perante uma rede pública de educação pela preocupação de apoiar financeiramente o ensino privado na mesma medida em que apoia o ensino público. Esta é uma decorrência directa do conceito de liberdade de aprender e ensinar deste Governo, dirigido a que as famílias escolham livremente a escola onde pretendem colocar os seus filhos, indepen­dentemente de se tratar de oferta pública ou privada, pois tudo agora se passaria a resumir à chamada ?rede de ofertas educativas?, numa clara incorpora­ção de conceitos de mercado no nosso sistema educativo.

Para que o mercado funcione regularmente é necessário ainda que haja competição ao nível das respostas que tem para dar, para que as famílias, no âmbito da liberdade de escolha que lhes é oferecida, possam optar pela escola que lhes pareça mais capaz de oferecer melhores resultados aos seus educandos. E é assim que, segundo a mesma Exposição de Motivos, ?as consequências da liberdade de aprender e ensinar manifestam-se agora também na visão sobre a autonomia das escolas, que passa a constituir um momento essencial  das bases normativas da educação, incluindo no que à escola pública diz respeito. Pretende-se assegurar um modelo de organização e funcionamento das escolas, públicas, particu­lares e cooperativas, que promova o desenvol­vimento de projectos educativos próprios, no respeito pelas orientações curriculares de âmbito nacional, e padrões crescentes de autonomia de funcionamento?.

Este enunciado aponta directamente para uma das contradições detectadas por Almerindo Janela Afonso (1) na sua análise sobre as políticas neoliberais e neoconservadoras levadas a cabo nalguns países desde a década de oitenta do século passado, nomeadamente nos Estados Unidos da América e em Inglaterra, e que, com os inevitáveis atrasos, se tentam transplantar para Portugal nos dias que correm. Uma dessas contradições consiste na tentativa de conciliar hierarquia e subordinação com a liberdade de escolha. O autor salienta ainda que é esta combinação específica de regulação do Estado e de elementos de mercado no domínio público que explica o facto de que ?os governos da nova direita tenham aumentado conside­ravel­mente o controlo sobre as escolas (nomeadamente pela introdução de currículos e exames nacionais) e, simultaneamente, tenham promovido a criação de mecanismos como a publicitação de resultados escolares, abrindo espaço para a realização de pressões competitivas no sistema educativo?.

Quando o actual Governo nos anuncia que ?a contrapartida da autonomia das escolas reside numa maior responsabilização pela prossecução de objectivos pedagógicos e administrativos...? (sublinhado nosso), está, mais uma vez, a destapar o véu, e a deixar claro que a prevalência de critérios pedagógicos na gestão das escolas, sobre quaisquer outros, como preconiza a actual Lei de Bases do Sistema Educativo, é para apagar da arqui­tectura do funcionamento das escolas portu­guesas e que a nova lógica a que estas se terão que subordinar tem mais a ver com os sempre reclamados objectivos de eficiência e eficácia, tendo em vista a sua ?sujeição à avaliação pública dos resultados?.

Por isso não surpreende que a referência atrás feita à existência de projectos educativos próprios para as escolas seja, já no articulado da proposta de lei, explicitada pela premissa de que a responsabilidade de formulação desses projectos caiba à direcção executiva, tenden­cial­mente unipessoal e não eleita, pelo contrário, escolhida em processo público, no qual a apresentação do referido projecto educativo é já elemento essencial de selecção.

Aparentemente estaríamos perante uma demonstração inequívoca de ignorância face ao conceito de projecto educativo, nomeadamente no que à sua concepção diz respeito, tão distante está um enunciado destes já não só de toda a teoria publicada neste domínio como também das próprias práticas que professores e restante comunidade educativa vêem desenvolvendo há já vários anos.

Só que esta demonstração de oportunismo semântico, prática também muito frequente deste tipo de governos, é intencional e visa objectivos claros de entregar as escolas a gestores profissionais que tenham por preocu­pação central a apresentação de resultados, medidos pelos produtos finais conseguidos ao fim de cada ano lectivo e resultantes, em exclusivo, da avaliação final dos alunos, a partir de um número crescente de provas nacionais, que a equipa de David Justino alarga também ao 9º anos de escolaridade e que o partido de Paulo Portas queria arrastar ainda aos 6º e 4º anos de escolaridade.

Nada de novo, pois. Apenas o exercício cego de repetição de velhas fórmulas, só que um exercício ainda mais perigoso, porque a transposição pretendida para o sistema educa­tivo português é feita sem uma avaliação séria e cuidadosa dos resultados obtidos noutros sistemas e noutros lugares, ou seja, sem equacionar os fracassos obtidos por estas soluções nos países onde foram aplicadas.

Não é que possamos dizer que o nosso país tenha estado imune à penetração de ideias neoliberais ou neoconservadoras, de há uns anos para cá traduzidas em medidas políticas com elas condicentes e de que o crescimento em espiral da oferta privada em educação é talvez o mais significativo exemplo. Só que, a chegada ao poder deste Governo e desta maioria permitiu que, como denunciava de forma frontal e contundente Licínio Lima (2),  se passasse a actuar ?...já sem inibições ou conveniências discursivas, sem qualquer originalidade e com muitíssimo atraso face a posições idênticas expressas por elites e forças políticas congé­neres, na defesa pública das políticas de livre escolha educacional e de mercado na educação, da privatização da escola pública, do sistema de vouchers ou cheques-educação, dos ran­kings de escolas, da gestão escolar por resultados e performance, do recurso à nomeação de gestores, da promoção de professores ou dos seus salários em função dos resultados obtidos pelos seus alunos em exames nacionais estandardizados e, finalmente, no ataque ideológico sem precedentes aos educa­dores/professores, ao pensamento pedagógico, às teorias e à investigação em educação?.

São estas perspectivas que enformam, de maneira que se pode dizer radical, a proposta de Lei de Bases da Educação apresentada pelo Governo à Assembleia da República e que, confrontada com mais 4 projectos de lei partidários, se encontra agora em fase de debate público.

Por assim ser, e pela importância que sempre reveste a revisão de uma lei estruturante do sistema educativo, como é o caso, torna-se absolutamente indispensável que os profes­sores, os seus sindicatos e particularmente a Federação Nacional dos Professores, entrem neste debate com profundidade de análise e sentido crítico, mas também com ideias próprias e propostas concretas. Não partir para este debate derrotado, e muito menos esmagado pela maioria absoluta que a Assembleia da República regista,   é a forma positiva que deve caracterizar a nossa intervenção e servir de ponto de partida  para a  mobilização geral dos professores, na perspectiva de enfrentarem com sucesso uma ofensiva tão violenta contra a escola democrática como esta que agora identificamos.

 

Alguns aspectos mais salientes

da proposta do Governo

I

Como já ficou dito atrás, talvez o primeiro traço característico da proposta em apreço seja o da despudorada protecção do ensino privado, colocado agora em absoluto pé de igualdade com o ensino público, igualmente financiado pelo erário público, concorrendo em absoluta igualdade de condições naquilo que passa a ser designado por ?rede de ofertas educativas?.

Para além dos enunciados já citados constantes da Exposição de Motivos da proposta, também, e naturalmente, o seu articulado clarifica este princípio. Vejamos alguns desses artigos:

Ponto 2. do artigo 4º - ?O sistema edu­cativo organiza-se e desenvolve-se por inter­médio de estruturas e acções diversificadas, da iniciativa e responsabilidade pública, particular e cooperativa, que entre si cooperam na manutenção de uma rede equilibrada e actualizada de ofertas  educativas, capaz de proporcionar os conhecimentos, as aptidões e os valores necessários à plena realização individual na sociedade contemporânea e à concretização das opções estratégicas de desenvolvimento para Portugal.?

Ponto 4. do artigo 4º - ?O ensino particular e cooperativo organiza-se e funciona nos termos de estatuto próprio, apoiando-o o Estado, nas vertentes pedagógica, técnica e financeira, e tendo o direito e o dever de avaliar e fiscalizar o seu funcionamento e a aplicação dos financiamentos concedidos.?

Alínea g) do artigo 5º - (O sistema educativo organiza-se de forma a prosseguir, em especial, os seguintes objectivos funda­mentais) ?Assegurar o serviço público de educação e de ensino, através de uma rede de ofertas da administração central, das autar­quias locais, bem como de entidades parti­culares e cooperativas, que cubra as necessi­dades de toda a população.?

Alínea i) do artigo 5º - (O sistema educativo organiza-se ...)??Assegurar a liberdade dos pais e dos jovens de escolherem as escolas a frequentar pelos seus filhos e por si próprios.?

Ponto 1. do artigo 48º -

?Compete ao Estado organizar uma rede de ofertas de educação e de ensino, ordenada, em termos qualitativos e quantitativos, e actualizada, que, no desempenho de um serviço público, cubra as necessidades de toda a população, assegurando a existência de projectos educativos próprios, desenvolvidos no âmbito da autonomia das escolas públicas, particulares e cooperativas, e, do mesmo modo, uma efectiva liberdade de opção educativa das famílias.?

Ponto 2. do artigo 48º -??Integram a rede de ofertas educativas os estabelecimentos de educação e ensino particular e cooperativo que respeitem os princípios, os objectivos, a organização e as regras de funcionamento do sistema educativo, incluindo de qualificação académica e formação exigidas para a docência.?

Ponto 3. do artigo 48º -

?No reconhecimento do valor do ensino particular e cooperativo, o Estado tem em consideração, no ordenamento da rede de ofertas de educação e de ensino de serviço público, e numa perspectiva de racionalização de recursos e de promoção da qualidade das ofertas educativas, os estabelecimentos de educação e de ensino particular e cooperativo existentes ou a criar.?

Ponto 4. do artigo 48º - ?O Estado apoia financeiramente, mediante contrato, nos termos da lei, o ensino particular e cooperativo, tendo em consideração a escolha das famílias, quando, integrando-se os respectivos estabele­cimentos na rede de ofertas de educação e de ensino do serviço público, prossigam os objectivos de desenvolvimento da educação.?

 

Como estamos perante uma interpretação enganosa dos preceitos constitucionais relativos às liberdades de aprender e ensinar, e respeitando o espaço próprio e a legiti­midade da iniciativa privada no campo educativo, importa pois situar esta concor­rência entre os dois sectores na perspectiva constitucional de que ao Estado cabe a responsabilidade de assegurar uma rede pública de estabelecimentos de ensino, a todos os níveis de escolaridade, como garante da democratização da oferta educativa, da igualdade de condições no acesso e no sucesso educativo, com preocupações de equidade no tratamento dado a todos os jovens no exercício do seu direito à educação. Ao ensino privado, particular e cooperativo, organizado num quadro de auto financiamento correspondente à lógica da iniciativa privada, dece ser encarado como alternativo ao ensino público, tão-só na sua configuração supletiva, como preceitua a Constituição da República.

II

Uma nova organização dos ensinos básico e secundário é também geradora de grande polémica e entendida por muitos como uma preocupante opção de baixar o tronco comum de ensino considerado básico com uma consequente discriminação de percursos escolares feita precocemente, no caso aos 12 anos de idade em vez dos actuais 15. Vejamos como se apresenta na proposta do Governo esta nova organização.

Na Exposição de Motivos, diz-se, a determinado trecho: ?A formação vocacional é, no novo modelo, parte integrante dos ensinos básico e secundário, com especial enfoque neste, constituindo-se, a partir da organização coerente de um conjunto de ofertas educativas de dimensão profissionalizante, como a via que, a par da via orientada para o prosseguimento de estudos, assegura a disponibilização de competências para a inserção no mercado de trabalho.?

Mais adiante, ao explicitar o papel do ensino básico, referindo que este ?tem por objectivo fundamental assegurar uma forma­ção de base comum a todos, constituída pelos saberes e competências estruturantes ligadas ao ser, ao saber, ao pensar, ao fazer e ao aprender a viver juntos...?, está-se a dizer simultaneamente duas coisas: que a formação de base, comum a todos, que hoje é organizada em 9 anos de escolaridade passará ser de 6, e, por outro lado, que a partir dos 12 anos de idade, naquilo que passa a ser considerado já como ensino secundário, a componente vocacional de ensino passa a estar presente nas opções dos alunos, que deixariam de ter uma formação comum para passar a uma formação diferen­ciada.

Abordemos primeiro a hipótese de abaixa­mento do ensino básico para 6 anos, pensado essencialmente como formação de base comum a todos os portugueses e propiciadora de sólidas opções a realizar futuramente visando a aquisição de conheci-mentos mais vocacionados para a inserção no mercado de trabalho ou para o prosseguimento de estudos, com as neces­sárias garantias de permeabilidade entre estas duas opções.

Se compararmos o conjunto de objectivos do ensino básico apresentado nesta proposta com o mesmo conjunto incluído na actual Lei de Bases do Sistema Educativo, tirando algumas pequenas diferenças de texto e de apresentação, concluímos pela sua equivalente dimensão, ou seja, não estamos perante uma redução dos objectivos que enformam o que é considerado como ensino básico, aquele que deve revestir o tronco comum de formação por onde obrigatoriamente deverão passar todos os jovens que acedem ao sistema educativo. Só que, paradoxalmente, objectivos que pressu­põem uma organização curricular prevista para 9 anos, de 1986 aos nossos dias, aparecem aos olhos deste Governo como cabendo perfeita­mente em apenas 6 anos de escolaridade!

Uma opção destas só pode ser entendida como visando enfraquecer a formação de base que o sistema educativo português deve oferecer a todos os jovens em idade escolar, antes destes realizarem opções de continuidade de estudos diferenciadas, visando diferentes finalidades e respostas também elas diferen­ciadas de acordo com o seu trajecto pessoal. Estamos, isso sim, perante uma antecipação forçada dessas opções, realizadas a um nível etário ainda muito baixo, muito mais próximo dos 10 anos de idade que o fascismo português impunha do que dos 15 que a democracia consagrou.

E não chega a ?cobertura? da organização do primeiro ciclo do ensino secundário ?segundo um plano curricular unificado, que integre coerentemente  áreas vocacionais diversificadas? - texto semelhante ao actual para o 3º ciclo do ensino básico - para a defesa do encurtamento do tempo de duração deste tronco de ensino, pois, logo de seguida, se explicita que ??a articulação entre os dois ciclos do ensino secundário obedece a uma sequencialidade progressiva, competindo ao segundo completar, aprofundar, alargar e especializar a formação, as aprendizagens e as competências do primeiro ciclo, assumindo a unidade funcional global do ensino secun­dário?. Ora, a unidade funcional global do ensino secundário é assumida com diferencia­ção de percursos, como se afirma com clareza no ponto 4. do artigo 16º da proposta do Governo que a seguir se transcreve:

?De acordo com a sua dimensão vocacional de orientação para o prosseguimento de estudos ou para a inserção na vida activa, o ensino secundário, em especial o seu segundo ciclo, organiza-se segundo formas diferenciadas, contemplando a existência de:

- cursos gerais, de natureza humanística e científica, predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos;

- cursos de formação vocacional, de natureza técnica e tecnológica ou profissio­nalizante ou de natureza artística, predominan­temente orientados para a inserção na vida activa.?

O deslize de linguagem com a formu­lação??em especial o seu segundo ciclo? é sintomático das reais intenções de, já ao nível do primeiro destes ciclos, ou seja, entre os 12 e os 15 anos, existir diferenciação curricular e escolhas vocacionais que, apesar das garantias de permeabilidade??entre os cursos gerais e os cursos de formação vocacional?, traduzem a assunção de vias de diferente dignidade para os jovens alunos desse escalão etário.

E mesmo a premissa de alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos, objectivo que, em si mesmo, vem despertando alargado consenso, é concebida num quadro de selecção de alunos por vias de diferente dignidade realizada precocemente e alimentada pelos caminhos diferentes que se desenham para alunos com diferenças significativas de sucesso escolar. Ou seja, a manutenção dos alunos na escola até aos 18 anos de idade será conseguida através da fórmula de empurrar muitos deles, segundo o modelo  da chamada formação vocacional, para percursos eventualmente profissionalizantes (o que alguns considerarão mais positivo que o simples abandono escolar), e que, em última análise, serão resultantes não de opções responsa-velmente assumidas mas antes de discriminações negativas introduzidas pelo próprio sistema.

Senão veja-se a ?naturalidade? com que a proposta lida com o insucesso escolar.

Ponto 4. do artigo 11º -

?A obrigatoriedade de frequência do ensino básico termina no final do ano lectivo em que ao aluno completa quinze anos de idade.?

Ponto 5. do mesmo artigo ???Os jovens que não pretendam concluir o ensino básico após a idade referida no número anterior, são obrigato­riamente encaminhados para as adequadas acções de formação vocacional que desen­volvem programas especiais para os jovens dos quinze aos dezoito anos, em articulação com o sistema de formação profissional.?

Para além de desacreditar qualquer pro­posta séria esta assunção fácil de insucesso continuado numa escolaridade básica que pretendem apenas de seis anos, ressalta com força a  perspectiva de que o primeiro ciclo do novo ensino secundário contém currículos de segundo nível, identificados como adequadas acções de formação vocacional e estabelecidos como caminhos profissionalizantes precoce­mente equacionados.

Uma terminologia idêntica é usada noutro ponto da proposta, agora referida ao ensino secundário. Lê-se, no ponto 4. do artigo 14º: ?Os jovens que, até completarem vinte e um anos de idade, não pretendam concluir o ensino secundário após os dezoito anos devem ser encaminhados para as adequadas acções de formação vocacional ou profissional.?

A chamada formação vocacional aparece assim como a panaceia para todos os males do sistema, como forma essencial de enfrentar o insucesso escolar e reter na escola, ainda que por via de frios e calculistas exercícios de discriminação negativa, os jovens que se querem escolarizar obrigatoriamente por doze anos. Subirão assim as taxas de frequência para valores que deixem de nos envergonhar no contexto europeu, diminui-se o abandono escolar porque se força a escolarização obriga­tória, diminuem as taxas globais de insucesso porque há sempre uma via aberta para enqua­drar aqueles que o sistema identifique como menos dotados de capacidades e aumentam-se as frustrações dos muitos que serão empurrados para percursos que lhes tolhem legítimas aspirações de encontrar na escola respostas adequadas a uma formação integral sólida, de qualidade e socialmente valorizada.

A própria formação vocacional e profissio­nal sai desvalorizada perante este tipo de enquadramento, ao pretender-se que seja em grande parte alimentada por segundas opções e, pior ainda, por opções forçadas.

A FENPROF defende que a duração do considerado ensino básico, dentro do conceito que poderemos designar como escola para todos, ou seja, uma escolaridade dirigida a todos os jovens a que o sistema educativo deve responder, não tenha uma duração inferior aos actuais nove anos. Por outras palavras, não devem aparecer neste tronco de percurso educativo das nossas crianças e jovens vias de diferente dignidade para os grupos etários dos 6 aos 15 anos de idade.

A FENPROF exige que a futura Lei de Bases seja totalmente clara neste ponto e nesta matéria. Recusa em absoluto as escolhas vocacionais precoces e qualquer tipo de vias diferenciadas sob qualquer pretexto. Aceita uma via de banda larga que reconheça formações de interesse para o desenvolvimento regional e local e que acolha e responda  à diversidade e riqueza cultural dos diversos grupos de crianças e adolescentes.

Estes 9 anos de escolaridade devem ser organizados em 3 ciclos, de 4, 2 e 3 anos, respectivamente, como estão consagrados na Lei actual.

 

III

A educação pré-escolar aparece nas inten­ções do Governo como bastante mal tratada, desvalorizada até, ao arrepio dos avanços conseguidos com a Lei Quadro da Educação Pré-Escolar que a considerava, muito justamente, como primeira etapa da educação básica.

Continua a ser considerada, na sua compo­nente formativa, como complementar ou supletiva da acção educativa dos pais, o que não provoca nenhum efeito ascendente no sentido da sua completa generalização e do encontrar de caminhos que conduzam à atenuação das desigualdades sociais e seus reflexos no campo educativo bem como da correcção de assimetrias ao nível do desenvol­vimento de capacidades das crianças até aos seis anos. Pelo contrário, estará até a ser ?puxada para baixo? ao defender-se, no ponto 3. do artigo 8º, que: ?...deve articular-se, progressivamente, com os serviços de creche, num modelo coerente e sequencial de educação infantil.? Não surpreende assim que se tenha ficado, ao nível do acesso, pela piedosa declaração de intenções de promoção da frequência, prioritariamente das crianças de cinco anos de idade, ao invés de se equacionar a obrigatoriedade dessa frequência no ano que antecede o primeiro de escolaridade.

Este objectivo de generalização da oferta não será seguramente atingido perante um Estado que progressivamente vai abdicando das suas responsabilidades face a uma rede pública de jardins de infância capaz de satisfazer as necessidades das famílias e das crianças. Segundo este Governo, ao Estado apenas deve caber a responsa-bilidade de assegurar uma?rede de serviço público de educação pré-escolar, sendo que esta rede será composta por ?jardins de infância das autarquias locais e de outras entidades particulares ou cooperativas, colectivas ou individuais, nomeadamente instituições particulares de solidariedade social, associações de pais, associações de moradores, organizações cívicas ou confessio­nais e associações sindicais ou de empre­gadores.? Coerentes, estes senhores! A fatia de Estado nesta rede fica resumida à intervenção das autarquias locais, para onde serão inevita­velmente ?empurrados? os jardins de infância hoje dependentes do Ministério da Educação. Toda a rede restante será da responsabilidade de quem já tem, queira continuar a ter, ou venha a querer ter no futuro iniciativa neste domínio. Que garantias podem assim ser dadas ao povo português de que a taxa de cobertura de jardins de infância atinge valores ajustados às reais necessidades da população  e nos permita vir a ombrear num futuro próximo com indicadores que já atingem ou rondam os 100% na maioria dos países da União Europeia?

A Lei de Bases deve encarar a educação pré-escolar como a mais eficaz das medidas compensatórias susceptíveis de corrigir as desigualdades nas oportunidades de sucesso escolar, pelo que a sua extensão à totalidade das crianças dos 3 aos 6 anos de idade deve aparecer como prioridade política a consagrar em tão importante documento.

Deve ser encarado com clareza o carácter de gratuitidade deste percurso educativo, com um regime de frequência facultativo, ainda que tendendo para a sua generalização, e garantindo a universalidade da oferta no ano que antecede o ensino básico através da obrigatoriedade de frequência neste escalão etário.

Deve ser clarificado o papel do Estado no crescimento da rede pública, assumindo este a responsabilidade principal pela universalização da oferta de educação pré-escolar

 

IV

No que toca à organização do ensino básico, e concretamente aos regimes de docência previstos para os dois ciclos em que a proposta do Governo se propõe organizá-lo, algumas indefinições e insuficiências se registam, quer pelo conservadorismo de que se reveste a solução para o primeiro ciclo ???no primeiro ciclo o ensino é globalizante e da responsa­bilidade de um professor único, sem prejuízo da coadjuvação deste em áreas especia­lizadas??? quer também por enunciados recalcados de formulações anteriores nunca postas em prática e exigindo contrapartidas ao nível da formação de professores, entre outros aspectos ???no segundo ciclo o ensino organiza-se por áreas disciplinares de forma­ção de base , podendo conter áreas não disciplinares, destinadas à articulação de saberes, ao desenvolvimento de métodos de trabalho e de estudo e à obtenção de formações complementares, e desenvolve-se, predominan­temente, em regime de professor por área.?

Se, no primeiro caso, não houve ainda coragem política de avançar com o trabalho em equipas educativas, ainda que matizado com o regime de professor responsável pela turma, no segundo estamos perante a assunção de novo de algo já previsto desde 1986?? o regime de professor por área ? e nunca colocado em prática por nenhum dos governos a quem coube a responsabilidade de instalar as condições para o cumprimento da Lei de Bases do Sistema Educativo em vigor até hoje.

Mesmo aquilo que já seria um passo em frente, a obrigatoriedade de coadjuvação em áreas especializadas do professor responsável pela turma, não é assumido por este Governo para o 1º ciclo, numa manifestação evidente de desajustamento e incompreensão das modernas correntes pedagógicas, sacrificadas uma vez mais ao desinvestimento continuado num sector de ensino que se afirma como prioritário sem nunca para ele se carrearem os recursos  e os meios necessários ao seu crescimento qualitativo.

Da mesma forma, não passará de pura demagogia, inscrever na proposta a preocu­pação com a articulação de saberes, métodos cooperativos de trabalho e estudo, atinentes à transversalidade de conteúdos e programas - e  a correspondente consequência de os alunos no 2º ciclo lidarem com menos professores que agora ? sem acautelar a  necessária adaptação de professores a formações iniciais com outro sentido pedagógico, bem como a previsão de novas realidades organizativas, curriculares e de gestão de espaços e tempos.

A proposta do Governo apresenta-nos a formação vocacional como paradigma logo na escolaridade obrigatória.  Dá força ao precon­ceito de que a formação vocacional e a formação profissional serão a solução para o atraso do país.

Ora, um dos problemas de fundo do atraso português, é a falta de um povo educado e escolarizado. As elites portuguesas, histo­ricamente descomprometidas com a demo­cratização da educação e a escolarização dos seus cidadãos, sempre elitizaram algumas modalidades de educação e de formação.

É a essa herança histórica elitizante que a proposta do Governo dá continuidade, re-elitizando alguns níveis e modalidades de educação e apostando em formações mais funcionais, diversificadas e pragmáticas, excluindo delas os adultos menos escolarizados.

A proposta do Governo aposta em moda­lidades de formação vocacional e profissional, subalternas, a pretexto de formar as novas gerações para o futuro. Não importa que esse futuro exista cada vez menos ou não exista de todo. A elitização e a desadequação às necessi­dades da população portuguesa acentua-se com a peregrina ideia de prever que a partir do 7º ano de escolaridade se podem instituir «áreas vocacionais diversificadas».

Como chamou a atenção Licínio Lima «o princípio vocacionalista imprimirá as suas marcas, diferenciando, hierarquizando e legitimando formas de regulação típicas dos marcados» (jornal a Página, Agosto, 2003).

A FENPROF não aceita a instituciona­lização deste vocacionalismo e profissio­nalismo estrito. Prefere encarar uma via de banda larga que permita aos alunos escolher percursos de igual dignidade educacional e social. Uma coisa é escolher diferentes disciplinas outra diferentes cursos e percursos vocacionais. A todos os alunos cabe o direito de adquirir, ao longo do seu percurso escolar, formação teórica e prática, formação para o prosseguimento de estudos e para a vida activa. Não é necessário aprofundar diferentes modalidades especia­lizadas de formação. A população portuguesa carece de educação e escolarização.  Dispensa-se a promoção de um modelo escolar que promova o «apartheid educacional» e que este seja apresentado como aposta para a formação do futuro. O sistema educativo deve potenciar a formação de cidadãos na sua vertente cívica, política, social e cultural. Da componente social faz parte o direito ao trabalho e deste direito decorre a obrigação, comum a todos os cidadãos, de serem também produtivamente úteis à sociedade. Uma boa educação na cidadania é aquela que consegue articular o exercício responsável e competente no campo da política e da produção. A cidadania respon­sável é um direito de todos e não um privilégio de alguns.

A FENPROF defende, ainda, que, no primeiro destes ciclos, o ensino deve ser globalizante, da responsabilidade de um professor que integra e coordena uma equipa educativa.

No 2º ciclo o ensino deve ser organizado em áreas interdisci-plinares, cabendo a cada uma dessas áreas um professor, para no ciclo terminal do ensino básico, e ainda segundo um plano curricular unificado, o ensino se desenvolver na base de um professor por disciplina , grupo de disciplinas ou equipas multidisciplinares.

A articulação entre os ciclos deve obedecer a uma sequencia-lidade progressiva, cabendo a cada ciclo a função de completar, aprofundar e alargar o ciclo anterior, numa perspectiva de unidade global do ensino básico.

O ensino secundário terá a duração de 3 anos e constituirá o primeiro tronco do sistema de ensino em que se assumirá a diferenciação curricular, acautelando que não se institucio­nalizem vias de diferente dignidade.

Deverá ser organizado segundo formas diferenciadas, com vias perseguindo      dife­rentes objectivos mas intercomunicáveis entre si, assegurando sempre a correcção de trajectos entretanto assumidos pelos alunos.

Deverá conter vias predominantemente orientadas para o prosseguimento de estudos e para a saída para a vida activa, incluindo nestas o ensino profissional a par de cursos de carácter tecnológico, distinguindo-se estes entre si pelo desenho curricular diferenciado que podem assumir.

A este nível de ensino cada professor é responsável, em princípio, por uma  disciplina ou grupo de disciplinas.

A conclusão com aproveitamento deste ciclo de estudos conferirá direito à atribuição de um diploma que certificará a formação adquirida.

Esta certificação será indispensável para o acesso ao ensino superior, cabendo no entanto aos estabelecimentos de ensino deste sector a identificação das condições necessárias para o acesso aos seus cursos.

 

V

Ensino Superior

Quanto ao Ensino Superior, a proposta de Lei do Governo mantém o objectivo de distinguir o ensino universitário do ensino politécnico, mediante definições equívocas e artificiais. A FENPROF discorda de que continue a ser consagrado o sistema binário que tem correspondido a uma diferenciação de meios disponibilizados e uma discriminação social, ambas em desfavor do politécnico.

A posição da FENPROF é a de que o sistema de ensino superior deve ser integrado e diversificado, com um elevado grau de cooperação, em base regional ou temática, entre diferentes instituições actualmente classificado no universitário e no politécnico.

A FENPROF considera que a garantia da existência de uma oferta diversificada de cursos deverá ser associada aos processos de aprovação e financiamento dos Planos de Desenvolvimento das instituições, isoladamente ou com coordenação em rede, de modo a que reflictam as missões essenciais do ensino superior e as necessidades sociais envolventes.

Em particular, a FENPROF entende que a capacidade de atribuição dos graus académicos de mestrado e de doutoramento deve depender das qualificações e da actividade pedagógica e científica do corpo docente de cada instituição e não da sua natureza universitária ou politécnica. Designadamente, é fundamental para a formação e qualificação científica dos docentes a existência de centros em que estes possam desenvolver actividade de investigação e desenvolvimento. No politécnico, esses centros são praticamente inexistentes, o que representa uma discriminação negativa deste sector, que limita de forma inaceitável as condições para a aquisição de mais qualificações e melhores desempenhos e desaproveita as possibilidades do corpo docente contribuir para o desenvolvimento cultural, social e económico das regiões em que se situam as respectivas instituições e do próprio país.

No que se refere à aplicação da Declaração de Bolonha, a FENPROF manifesta-se favoravelmente à abolição do bacharelato, criando um grau único de formação inicial, de há muito reclamado pela FENPROF, e defende que a fixação da duração das licenciaturas depende dos objectivos gerais e específicos de cada curso, tendo designadamente em consideração os perfis profissionais que se pretendem formar.

 

VI

No que à avaliação e administração do sistema educativo e das escolas diz respeito, este projecto de lei propõe alterações profundas em relação à situação existente. De resto, na exposição de motivos é claramente reforçada a ideia de que a consecução dos objectivos de política educativa que este Governo pretende levar à prática depende de novas modalidades de administração e avaliação do sistema e das escolas. ?O XV Governo Constitucional viu-se perante a necessidade de, não apenas ter que conceber alternativas de política educativa, mas de ter que criar os meios de organização administrativa e informação para poder, com sucesso, aplicar aquelas.?

Na área da administração e gestão do sistema educativo e das escolas, o Governo pretende consagrar na nova Lei de Bases princípios que enquadrem legislação já publicada (por exemplo, o DL 7/2003, que assume a municipalização da educação como opção de descentralização, ao nível local) ou em fase de elaboração (como o diploma normativo que o Governo está já a preparar, integrando as matérias de autonomia, gestão e financiamento das escolas).

Embora o ponto 2 do artigo 44º consagre que ?Em cada estabelecimento de educação e ensino, ou respectivos agrupa-mentos, a administração e a gestão orientam-se por princípios de participação democrática de quem integra o processo educativo?, o que os pontos seguintes estabelecem é que os titulares da direcção executiva de cada agrupamento/escola passam a ser ?escolhidos mediante um processo público que releve o mérito curricular e do projecto educativo apresentado e detenham a formação adequada ao desem­penho do cargo? (ponto 4) e que ?A direcção executiva é apoiada por serviços especializados e por órgãos consultivos, de natureza peda­gógica e disciplinar, sendo para estes democra­ticamente eleitos os representantes dos professores, dos alunos, no caso do ensino secundário, dos pais e do pessoal não docente?.

Na prática, o que o Governo pretende instituir é um sistema de ?democracia consul­tiva?: os órgãos eleitos são meramente consultivos e quem dita as regras é uma direcção executiva, que deixa de ser eleita, que responde perante quem a nomeia e de quem se espera que defina o projecto educativo desse agru­pamento/escola. Esta perspectiva repre­senta a negação do direito de participação da comunidade educativa na construção do projecto educativo da sua escola e deixa as escolas totalmente dependentes de orientações definidas centralmente, numa lógica de reforço do controle do centro sobre a periferia, que contraria em absoluto a retórica da autonomia, que demagogicamente, o documento pretende querer incrementar.

Esta situação é agravada pela determinação de que ?A administração e gestão dos estabe­leci­mentos de educação e de ensino deve fazer-se preferencialmente na base do agrupamento de escolas? (artº 44º, ponto 1), orientação que pretende enquadrar o Despacho 13 313/2003, que define como objectivo ?agrupar efectiva­mente todas as escolas localizadas no território português continental, de forma a integrar todas elas em unidades de gestão? (sublinhado nosso) e legitimar o recente processo de (re)cons­tituição de agrupamentos de escolas, através da imposição de agrupamentos verticais de grande dimensão.

Como escreve Licínio Lima num artigo recentemente publicado no jornal Público, ?Os agrupamentos de escolas poderão vir a repre­sentar um novo escalão da administração desconcentrada a partir da escola-sede, embora acima das escolas-outras e entre estas e os ?coordenadores educativos?, e respectivas direcções regionais. Os conselhos municipais de educação completarão o esquema, ou seja, a possível tenaz de maior controlo sobre cada escola, apagada e sitiada por sucessivos níveis administrativos, cada vez mais longe do centro e mais distante de se poder assumir como central.?

As alterações propostas na administração e gestão escolares, ao retirarem a cada escola os seus órgãos de direcção e gestão, ao abrirem a gestão das escolas a não professores e ao acabarem com a eleição dos seus titulares, representam um atentado ao património histórico e socioeducativo da escola portuguesa ? pelo que implicam de retrocesso no funciona­mento democrático das escolas; de não reconhecimento pela importância do trabalho dos professores na gestão das escolas ao longo de quase 30 anos de democracia; de recentra­lização do poder e de reforço do controle sobre as escolas e os professores ??lógica incom­patível com as perspectivas de democratização e de autonomia das escolas mas necessária à transformação dos estabelecimentos de ensino público em instru­mentos de viabilização de uma educação elitista, subordinada às leis do mercado.

O articulado da actual Lei de Bases do Sistema Educativo é garante bastante da democraticidade que se pretende seja a pedra de toque da organização escolar bem como da descentralização da administração educativa de que sempre se fala e nunca foi devidamente concretizada.

A prevalência de critérios pedagógicos sobre critérios administrativos e financeiros terá que estar devidamente salvaguardada nesta lei.

A elegibilidade como processo de consti­tuição democrática dos órgãos de direcção e gestão dos estabelecimentos de ensino, bem como a colegialidade do seu funcionamento, são, na opinião da FENPROF, princípios inatacáveis, constitucionalmente consagrados e devem ter expressão clara no texto final da nova lei.

A participação dos diferentes interessados no processo educativo deve ter consagração legal, adequando-a contudo aos espaços mais apropriados e pertinentes.

A chamada profissionalização da gestão, para além da subversão dos processos demo­cráticos que lhe está associada, é considerada pela FENPROF como desajustada da escola pública democrática que devemos defender e desvalorizadora da própria profissionalidade docente, e como tal, inaceitável numa nova lei de Bases da Educação.

Às escolas e agrupamentos de escolas será conferida autonomia de funcionamento, nos domínios pedagógico, científico, cultural, administrativo e finaceiro, segundo critérios a definir em legislação específica  a criar posteriormente.

VII

A avaliação e inspecção do sistema educativo constituem neste projecto de lei um capítulo próprio, o que ilustra o carácter estruturante que o legislador lhes confere.

Aí se afirma que ?o sistema educativo é sujeito, na sua eficiência, eficácia e qualidade, a avaliação permanente, continuada e pública? (art. 40º, ponto 1), que ?a avaliação do sistema educativo constitui-se como instrumento essencial de definição da política educativa, de promoção da qualidade do ensino e do sucesso das aprendizagens e de gestão responsável e transparente de todos os níveis do sistema de ensino? (ponto 4), devendo ?permitir uma interpretação integrada, contextualizada e comparada de todos os parâmetros em que se baseia? (ponto5). 

A leitura cruzada dos três artigos deste capítulo (avaliação, estatísticas e inspecção) permite perceber que no paradigma de avalia­ção defendido, ?as estatísticas da educação são instrumentos fundamentais para (...) a avalia­ção do sistema educativo? (art. 41º, ponto 1). Se o ME pretendesse uma avaliação ?integrada e contextualizada?, não se teria apressado a acabar com o programa de avaliação integrada das escolas, que estava a ser levado a cabo pela IGE. Ora, uma avaliação deste tipo, por muita informação que possa disponibilizar, não favorece a introdução de uma lógica de mercado na educação ? objectivo que clara­mente se procura atingir. Para isso, é necessária uma avaliação assente na verificação de resultados, essencialmente quantitativos, usados para classificar e ordenar as escolas, pondo-as a competir umas contra as outras. A finalidade da avaliação presente nesta proposta de lei é, assim, a do controlo administrativo e da prestação de contas e não a da melhoria do sistema, que tanto se apregoa. 

Coerentemente com esta perspectiva, este projecto de lei redefine o papel da IGE, à qual são atribuídas ?funções de auditoria e de controlo do funcionamento do sistema educa­tivo? (art. 42º, ponto 2), o que representa um retrocesso quanto ao papel da inspecção, que volta a ser apenas de fiscalização e de verificação da conformidade normativa.

Esta avaliação acaba por constituir um instrumento de controlo político, pedagógico, administrativo e financeiro das escolas e uma condição essencial para a mercantilização da educação e para a elitização do sistema educativo, medidas que este Governo pretende levar à prática introduzindo mais exames no percurso escolar dos alunos; hierarquizando escolas através de ?rankings; avançando com políticas de livre escolha, sustentadas na introdução de vouchers educativos ou cheques escolares; financiando as escolas de acordo com os resultados que apresentem; avaliando e remunerando professores a partir dos resultados dos seus alunos. Naturalmente que a submissão da escola pública a esta política passa muito por um gestor profissional, com preocupações de racionalidade técnica, de cariz empresarial. Passa por pôr à frente da escola alguém que não seja professor (mesmo que o tenha sido), que meta os professores na ordem e que distinga o mérito de alguns, desde que sejam poucos.

A avaliação do sistema educativo e das escolas é um meio pelo qual se recolhe informação para um maior conhecimento e diagnóstico do sistema educativo, possi­bilitando a tomada de decisões, a orientação política dos processos de mudança e a imple­mentação de medidas de discriminação positiva em favor das escolas com mais problemas e mais carenciadas.

Esta avaliação deverá ser uma avaliação global do sistema educativo ? uma avaliação que tenha em conta o desempenho das escolas mas também da administração educativa, aos vários níveis, por forma a comprometer as instâncias responsáveis pelos constrangimentos identificados na sua superação.

A avaliação tem que ter em conta o contexto em que a escola se insere, os recursos de que dispõe, os processos que desenvolve e os resultados que obtém. Uma avaliação centrada exclusivamente nos resultados académicos dos alunos e usada para classificar e ordenar as escolas é redutora, injusta e perversa, e por isso contrária aos interesses do sistema educativo.

O efectivo desenvolvimento da escola passa por modalidades de auto-avaliação ou de avaliação interna, devidamente articuladas com a avaliação externa, que, tendo como motivação principal o acompanhamento dos projectos de escola, constituam processos colectivos, formativos e construtivos, facilitadores da capacidade de auto-regulação das escolas e promotores da sua autonomia. É neste contexto que deve ser enquadrado o processo de avaliação do pessoal docente.

 

VIII

De entre as modalidades especiais de educação escolar, a educação especial merece uma referência destacada por duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque a entrada das crianças e jovens com necessidades educativas especiais (e, de entre estas, as que decorrem da presença de deficiências) representou, no plano dos valores, um inequívoco avanço civilizacional e, no plano das concepções, uma verdadeira mudança de paradigma educativo; em segundo lugar, porque a Escola Inclusiva é uma componente indissociável da Escola Democrática, Pública e de Qualidade, que defendemos.

As grandes mexidas que a proposta de lei do Governo introduz nesta modalidade representam inequívocas regressões, no plano das concepções, no mesmo sentido, aliás, dos fétidos ventos de conservadorismo que atravessam toda esta proposta: Em primeiro lugar, porque uma escola que secundariza o direito fundamental à educação em nome da propalada ?liberdade de aprender e ensinar?, na sua inexorável caminhada para níveis cada vez mais altos de elitização e competitividade (sempre dirigida pelos omnipresentes objectivos de eficiência e eficácia), exclui, necessariamente, os cidadãos que mais precisariam de medidas de discriminação positiva no processo educativo, como forma de compensação da desigualdade de oportunidades, de que são vítimas.

O encurtamento da formação de base (de 9 para 6 anos), a precocidade da formação vocacional e das saídas profissionais, a desvalorização da educação pré-escolar (como principal factor de combate à desigualdade de oportunidades), o próprio facto de se retirar do ensino básico o objectivo que a actual LBSE contempla direccionado para a população escolar com necessidades educativas especiais, a desresponsabilização do Estado pela educação de todos os portugueses, a sobreposição do ensino privado ao ensino público, a concepção da escola como empresa (com uma formação mais técnica do que humanística) o primado do conceito de ensino sobre o conceito de educação, a insuficiência dos recursos, são factores que encaminham para a exclusão e não para a inclusão. E nem seriam precisos outros mecanismos para condenar à morte a Escola Inclusiva, que, apesar de todos os atropelos e vicissitudes, hoje temos.

Mas, é tal a vontade de afastar da Escola estes alunos, que o Governo não se fica por aqui. Em paralelo, avança uma verdadeira certidão de óbito à matriz democrática e inclusiva da Escola que a actual LBSE preconiza. No art. 26º da sua proposta de lei, o Governo clarifica (quer dizer, certifica): ?os indivíduos com necessidades educativas especiais, de carácter mais ou menos prolongado, decorrentes da interacção entre factores ambientais e limitações próprias acentuadas, nos domínios da audição, da visão, motor, cognitivo, da fala, da linguagem e da comunicação, emocional e da saúde física, têm direito a respostas educativas adequadas.?

Note-se que só as ?necessidades educativas especiais de carácter mais ou menos prolongado? (o sublinhado é nosso) têm direito a estas respostas educativas, o que, só por si, e sem contar com o campo que fica aberto à subjectividade na compreensão dessas necessidades (que bitola é esta ?do mais ou menos prolongado??), afastará milhares de alunos com nee do acesso a estas respostas educativas.

E que ?respostas educativas adequadas ? são estas? o que é previsível, à luz da lógica de privatização da educação que percorre toda a sua proposta, é que o Governo considere como mais adequadas ?as iniciativas de educação especial? pertencentes  ?? a outras entidades particulares ou cooperativas, colectivas ou individuais, nomeadamente instituições particulares de solidariedade social, associações de pais, associações de moradores, organizações cívicas ou confessionais e associações sindicais ou de empregadores.? (art. 26º.5)

Para o Estado (Administração Central, Regiões Autónomas e Autarquias) ficará, consequentemente, a parte mais pequena deste bolo. Apenas o quanto baste para garantir uma imagem exterior democrática e inclusiva à nossa Escola. Imagem de conveniência, aliás, para um Estado que subscreveu a Declaração de Salamanca, cuja Constituição (ainda) garante que ?O Estado se obriga a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos deficientes?? (art. 71º.2) e que se integra numa União Europeia onde os processos de integração/inclusão avançaram, decididamente, em muitos Estados.

Mas, mesmo assim, dentro do espaço desta Escola, a escassa inclusão permitida é uma inclusão mitigada, dispersa por espaços segregados, quiçá o velho modelo das ?classes especiais? (?turmas e grupos especiais e unidades especializadas?).

Finalmente, anote-se a regressão que representa, no plano sócio-educativo, o abandono de uma das grandes finalidades da educação especial ? a ?recuperação dos indivíduos com necessidades educativas específicas devidas a deficiências? (LBSE) ?, a exclusão do objectivo de??desenvolvimento das possibilidades de comunicação? (LBSE) e a completa tábua rasa  que esta proposta de lei faz das funções sociais complementares ao acto educativo, que a actual Lei de Bases atribuiu ao Estado ao responsabilizá-lo por apoios complementares à acção educativa, designadamente, ?as acções que visem o esclarecimento, a prevenção e o tratamento precoce da deficiência.? (art. 18º.8)

 A FENPROF defende que a Educação Especial deve processar-se no respeito pelos princípios enunciados por reconhecidas instituições internacionais (UNESCO, ONU, Reabilitação Internacional, etc.), pelas Declarações de Salamanca e de Madrid, e pelos direitos consagrados no texto da Constituição da República Portuguesa.

A FENPROF defende que a Escola Democrática, Pública, Inclusiva e de Qualidade é a que melhores condições reúne para garantir ao direito fundamental à educação de todos os portugueses, incluindo os que têm necessidades educativas especiais (independentemente do seu carácter mais ou menos acentuado, mais ou menos prolongado).

A FENPROF defende que uma Escola Democrática é, por essência, uma Escola Inclusiva, com os necessários recursos (humanos, físicos, técnico-pedagógicos e financeiros), com a garantia de formação inicial, especializada e contínua adequada e o reconhecimento do direito à estabilidade profissional e a um estatuto valorizado para os seus docentes, com acessibilidades garantidas,  turmas reduzidas e currículos adaptados.

 

IX

Educação e formação

ao longo da vida

Quer na Lei 46/86 quer nas novas propostas em todas se afirma que todos os cidadãos não só têm o direito mas também o dever à «educação e formação ao longo da vida». Trata-se hoje de um conceito aceite por todos que ninguém se atreve a por em causa sob pena de parecer herético. Mas o princípio, assim cruamente exposto, é dolorosamente discutível, já que a possibilidade de encontrar uma definição unívoca para os significados impli­cados em semelhante afirmação, dificilmente pode ser alcançada de forma consensual. Mas esse é o problema de muitas outras afirmações consensuais contidas nas propostas.

Que as pessoas, não só no presente e no futuro, mas também no passado, aprendem e aprenderam sempre ao longo da vida é uma evidência que ninguém põe em dúvida. Que todos temos o direito e o dever de aprender é outra evidência. O problema é o de saber de que aprendizagem e de que formação fala cada um e do modo como propõe que as aprendi­zagens se realizem. Afirmar o direito e o dever de aprender ? ao longo da vida ?  quer dizer tantas coisas que, no fim, pode não querer dizer nada.

Para alguns aprender ao longo da vida é capaz de querer dizer qualquer coisa como aprender a ser, aprender a pensar, a entender, a criticar ou seja, formar indivíduos que conheçam os seus direitos, os seus deveres e as suas obrigações, particularmente capacitá-los para o exercício consciente da participação política.  Para outros aprender ao longo da vida significa tão somente adquirir destrezas que permitam desempenhar um trabalho que o mercado precisa e propõe ou seja, dotar os indivíduos das competências necessárias para se adaptarem com rapidez às modificações que sofre o mundo produtivo, permitindo que eles contribuam para o crescimento económico do país.

As figuras do eleitor responsável, do consumidor inteligente e do trabalhador competente e, por isso, competitivo, podem ser usadas para sintetizar o modelo de indivíduo que melhor sintetiza os atributos desejáveis do cidadão que a educação [democrática] ao longo da vida deve ? ou deveria ? contribuir para formar.

Ainda assim múltiplos problemas se levantam: o que se entende por «exercício consciente da participação política»? Como se aprende e se ensina a participação política? O que é um «eleitor responsável»? E um «consu­midor inteligente»? Ou um «trabalhador competente e competitivo»? Cada respostas implicaria um novo conjunto de perguntas como se estivéssemos num labirinto de espelhos.

Importa, portanto, ter em conta que muitas das afirmações contidas nas propostas, são tão ambíguas que significando tudo, nada signi­ficam. De todas elas sobreleva-se a ideia de «ensino de qualidade» que partilhado por todos é vazia de conteúdo.

No debate destas propostas é portanto fundamental que ou se fuja às palavras e frases de múltiplos significados ou se precise a acção ou acções concretas que se visam.

No caso da formação ao longo da vida, importa decidir se falamos da formação global do cidadão ? nas componentes moral, ética, política, cultural e produtiva ? se nos ficamos pelas questões cívicas e políticas ou se nos atemos apenas aos conhecimentos voltados para a esfera produtiva. Importa precisar que formações desejamos, como as obtemos, a que instâncias recorremos que práticas promo­vemos. É necessário precisar como se igualizam os direitos de aprender e como se respeitam as diferenças dos indivíduos-cidadãos.

O sociólogo inglês T.H. Marshall, na sua conferência de 1949 «Cidadania e classe social» distinguia três dimensões na construção histórica da cidadania: a civil, a política e a social. Na sua concepção, no século XVIII criaram-se as condições para o desenvol­vimento da cidadania civil. Nesta época ganharam reconhecimento o direito à liberdade de expressão, de pensamento e de religião. A doutrina dos direitos naturais e dos direitos humanos ganharam a dimensão civil e apon­taram o futuro. No século XIX desenvol­veram-se os direitos políticos, sobretudo o direito à participação, criando a cidadania política. No século XX vimos a cidadania estender-se para a esfera social promovendo o desenvolvimento dos direitos sociais e económicos como o direito à educação, ao bem-estar, à saúde, ao trabalho, etc., dando origem à cidadania social.

Esta concepção de Marshall pode ajudar-nos a precisar o que entendemos como desejável para a educação e formação ao longo da vida. Na verdade a «educação e formação ao longo da vida» deve permitir a cada um aprender, desenvolver e praticar as capacidades de cidadania civil, política e social. Nelas estão implícitas as dimensões políticas, sociais, culturais e produtivas. Trata-se de uma aprendizagem que concilia o saber, o lazer, o trabalho e o prazer.

A «educação e formação ao longo da vida» encontrará na escola um dos apoios, mas poderá ser uma realidade mais rica se ela se desenvol­ver em comunidades social e educacional­mente bem povoadas. É a riqueza educacional das comunidades, o sentido de responsabilidade e o nível educacional dos diferentes protago­nistas sociais, económicos, políticos e culturais que determinará os resultados de tal educação-formação.

A concepção que transparece da proposta do Governo sobre aprendizagem ao longo da vida, responsabilizando apenas o indivíduo pelas suas boas ou más escolhas no mercado educacional quer transformar a educação numa vantagem competitiva e num instrumento de gestão de recursos humanos. O Estado demite-se da sua função de promotor das ofertas educativas e formativas e de responsável por promover a correcção  das desigualdades de acesso e de sucesso educativo.

Cabe ao Estado, nas vertentes Central e Local, a responsabilidade de criar uma rede de oferta de educação e formação informal que de substância prática ao conceito de educação e formação ao longo da vida. Cabe ao Estado a responsabilidade de  revitalizar social, cultural e educacionalmente as comunidades de modo a que estas sejam comunidades educativas por excelência.

O sistema educativo deve ser tecido por duas redes fundamentais: uma rede de educação escolar que ofereça educação e formação de natureza estruturante, e uma rede de educação e formação informal, flexível, dinâmica e adaptada às especificidades do desenvolvi­mento e cultura regionais e locais.

O Estado não pode demitir-se da responsa­bilidade de uma efectiva oferta de educação de adultos.

 

X

Outras valências

ou funções da escola

As várias proposta centram-se nos jovens. O período escolar ? agora oficialmente alargado ? é visto como uma etapa e não como parte do processo que constitui a vida de cada um. A escola é vista como uma instituição ou estrutura, dirigida aos jovens e não ao conjunto da população. A legalização do tempo de frequência escolar obrigatória ? assumida por todas as propostas ? reforça ainda mais esta separação entre o tempo de aprender, o tempo de trabalhar e o tempo de esperar a partida.

A proposta de escolarização obrigatória ? entre os 6 e os 18 anos de idade ? é apresentada como uma proposta de futuro, no entanto, não creio que as gerações futuras se conformem ou possam conformar-se, com esta visão tripartida da vida. Porventura nem a sociedade ? a do conhecimento, da segurança social, do trabalho valorizado ? se acomodarão a esta divisão tripartida da vida dos cidadãos. É mais provável que no futuro se estabeleça uma maior permea­bilidade entre o trabalho e a aprendi­zagem.

No passado começava-se por trabalhar-aprendendo. Essa iniciação não era exclusiva dos trabalhadores pior remunerados. Era comum que os futuros dirigentes das empresas ? mesmo quando eram o filho do patrão ? começassem «por baixo». A escolarização sobretudo a partir da «explosão escolar» veio alterar esta prática e instituir «a aprendizagem separada da vida».

O Futuro poderá ser configurado de outra maneira. Já hoje se reconhece a necessidade absoluta de aprendizagem ao longo de toda a vida. Decorre desse reconhecimento a necessi­dade de quebrar a visão tripartida atrás referida. Trabalhar sempre e aprender sempre parece ser um principio que se vai impor.

Não existindo ainda um consenso majori­tário desta realidade a escola pode ir abrindo caminho às novas respostas e funções que, possivelmente, lhe virão a ser atribuídas.

O sistema educativo pode ir sendo pensado como tendo duas componentes fundamentais que se completam e se cruzam: uma compo­nente de educação escolar e outra de educação informal.

A educação escolar é ainda a componente fundamental das actuais escolas. O sistema de educação-formação informal praticamente ainda não existe mas deve ser tecido com a participação e por iniciativa dos diversos actores sociais, económicos, cultuais e sobre­tudo políticos em todas as comunidades. É indispensável que se teça uma rede de educa­ção-formação informal que se cruze com a actual rede escolar.

A escola pode e deve fazer parte da rede informal de educação-formação. As escolas podem responder a pedidos de formação que completem formações abertas a toda a popu­lação ? independen-temente da idade e da frequência escolar de cada um ? que partam da iniciativa de vários actores sociais. As escolas podem ser, elas mesmas, proponentes de ofertas de formação desejada pelas popula­ções locais.

As ofertas ou respostas de formação para as populações, a serem concretizadas pelas escolas, são uma das melhores formas de a escola se ligar ao meio de que faz parte. São uma forma de a escola se ir transformando em instituição aberta a todas as idades e aos mais diversos campos do saber.

Estas outras valências da escola não se circunscrevem aos aspectos relacionados com o sector produtivo ? essa é uma dimensão importante. Fomentar a iniciação, a aprendiza­gem e a prática de uma vida saudável são responsabilidades da escola para com a sua comunidade. O entendimento da música, do cinema, da literatura, do teatro, da leitura. A prática do desporto, do Ecoturismo. A aprendi­za­gem de uma língua estrangeira. A filosofia, a história, a física, a astronomia, a mecânica ou a carpintaria, são exemplos de apren-dizagens possíveis na escola. Estar atento às necessidades de vida e de enriquecimento profissional dos membros da comunidade é, certamente, uma forma de encontrar respos-tas úteis para a formação dos cidadãos.

Pensar a escola como uma estrutura aberta a todas as idades e formações é um dos grandes desafios que o nosso tempo nos coloca. Restabelecer ? agora em novos moldes ? a relação estreita entre trabalho, educação e aprendizagem, ao longo de toda a vida é dar à escola um outro sentido. É levar o discurso pedagógico a não ter medo de trazer para o seu corpo os saberes não-escolares. É levar a escola a perder o medo de ser apenas mais um nó da rede de saberes comunitários.

O facto de atribuir-mos outras valências à escola não significa lançar sobre ela ainda mais responsabilidades do que aquelas que lhe têm vindo a ser atribuídas. O sistema escolar, e com ele os professores, têm vindo a ser sucessiva­mente rentabilizados pelo poder político. Sempre que a sociedade se mostra incapaz de cumprir obrigações sociais ou de outra natureza, incluindo as económicas, atribui-se a responsabilidade à escola e pede-se-lhe que resolva mais um problema. Se há demasiados acidentes nas estradas culpa-se a escola por não ensinar para a prevenção rodoviária. Se arde a floresta a culpa é da escola que não educa para a prevenção dos fogos. Se há demasiada obesidade a culpa é da escola que não educa para a saúde. Se a produtividade é baixa a culpa é da escola que não forma para o trabalho produtivo? A escola é a passa-culpas de todas as incapacidades. É a estrutura desculpabi­lizadora de todos os agentes no poder. É o modo fácil de adiar soluções e de não assumir responsabilidades. Tanto mais que se lhe pode atribuir o predicado de só dar frutos no futuro.

Atribuir outras valências à escola não significa sobrecarregá-la ainda mais com aquilo que não pode fazer. Significa avaliar as suas potenciali­dades materiais e humanas e assumir um papel útil na rede de conhecimentos da comunidade. Significa pedir à comunidade que se estruture como local de aprendizagens. Significa deixar à comunidade um sem número de funções que ela, criando organizações adequadas, pode responder melhor do que a escola.

De nada vale o que eventualmente se possa aprender ? ainda por cima em termos só teóricos ? se a comunidade não der continui­dade e aplicabilidade ao que nela se aprendeu. Não faz sentido aprender a nadar na escola se depois de sair dela o cidadão não tem onde dar um mergulho. É por isso que como exemplo extremo, se assume que a piscina é da compe­tência da autarquia e não da escola. Como são da responsabilidade da autarquia os clubes de música, de teatro, de cinema, os centros de planeamento familiar ou de apoio aos toxico­dependentes, a prática desportiva, as tabelas de basquete e os campos de futsal nos jardins. Como é da competência das igrejas o ensino das religiões. Muitas organizações sociais têm vindo a definhar e até a morrer deixando de cumprir funções que lhe estavam cometidas. A escola não pode continuar a ser a herdeira das tarefas de todos os cadáveres sociais. Nem a única responsável por dar resposta aos proble­mas emergentes na nossa socie-dade.

É imprescindível delimitar o campo de intervenção da escola e a função profissional de educadores e professores. As actuais propostas de Lei de Bases não o fazem. Neste debate, caberá aos sindicatos abrir esse caminho. À escola pede-se que desempenhe um papel competente e activo nas chamadas aprendizagens estruturantes. Sejam elas dirigidas aos jovens ou aos adultos. Sejam na educação-escolar ou na educação-informal. Não lhe peçam tudo, se o fizerem, correm o risco, de ela não fazer nada.

A função principal da escola é a educa-ção escolar. Como elemento fundamental da educação na comunidade a escola pode e deve assumir outros papeis para além da educação escolar dirigida às crianças e jovens. Cabe à escola assumir a respon-sabilidade pela escola­riza­ção de toda a população portuguesa. Neste sentido, deve organizar-se tendo em vista responder à necessidade de escolarizar todos os adultos. Para além desta educação formal de adultos a escola pode e deve participar em activi-dades de formação informal lançadas e levadas a cabo por outras organizações e instituições da comunidade. No processo de educação extra-escolar e mesmo de forma-ção profissional a escola deve assumir um papel determinante na oferta de formações para as quais está apetrechada quer do ponto de vista material quer do ponto de vista humano. Assumindo um papel formador na sociedade pode e deve a escola tomar iniciativas de oferta de educação e formação informar tendo em visto participar na formação continuada dos adultos e em processos de reciclagem e actualização informativa e formativa.

A escola não tem de se abrir ao meio social, onde está inserida, deve fazer parte dele. Não deve ser uma ilha que permite à comuni­dade que a ela aporte, deve ter uma prática educativa e formativa que faça com que seja parte integrante do tecido social e da rede de educação nacional e comunitária.

 

1) Almerindo Janela Afonso, ?Políticas Contem­porâneas e Avaliação Educacional, in  ?Reformas da Educação Pública: Democratização, Moderni­zação, Neoliberalismo??? Edições Afrontamento, 2002

(2) Licínio Lima, ?Modernização, Racionaliza-ção e Optimização: perspectivas neotaylorianas na organização e administração da educação? in ?Reformas da Educação Pública  - Democra­-tização, Modernização,?Neoliberalismo?? ? Edições Afron­tamento, 2002