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Abel Macedo, membro do Secretariado Nacional da FENPROF

Debater, agir e derrotar mais uma tentativa de regresso ao passado

09 de agosto, 2003

O actual Governo não podia ser mais claro quanto aos reais motivos que o levam a apresentar uma proposta de lei que pretende subverter profundamente o sistema educativo português, tal como está configurado na actual Lei de Bases do Sistema Educativo, do que o foi na Exposição de Motivos que antecede a referida proposta.

Apesar dos cuidados postos na sua redacção, numa tentativa pouco conseguida de ocultar os traços mais marcantes de um pensamento político que bebe, simultaneamente, nas mais claras e conhecidas fórmulas neoliberais a par de um conservadorismo bem próprio da aliança que sustenta este Governo, em vários momentos dessa Exposição de motivos e, bem assim, no articulado da própria proposta os seus autores não conseguiram esconder os retrógrados ideais que abraçam  bem como os fins que perseguem no desenvolver desta ofensiva contra a Escola Democrática em Portugal.

Por exemplo, no capítulo XI da parte preambular da sua proposta, assumem querer instalar a garantia da liberdade de aprender e ensinar (como se essa garantia hoje não estivesse conseguida), num contexto que garanta a proeminência das liberdades fundamentais de educação perante os direitos fundamentais de educação.

Ora é esta explicitação da forma como querem garantir a liberdade de aprender e ensinar constitucionalmente consagrada que revela um dos conceitos teóricos mais profundos e negativos da proposta governamental. A secundarização do direito fundamental à educação, que o Estado deve garantir a todos os portugueses, face à prioritária liberdade de ensinar, significa que a preocupação com o Deus Mercado é o traço dominante dos desígnios políticos vertidos para esta proposta.

Desenclausurar (1) o ensino privado e colocá-lo em absoluto pé de igualdade com o ensino público é intenção expressa dos nossos governantes, apostados na cooperação da iniciativa e responsabilidade pública, particular e cooperativa na definição daquilo a que eufemisticamente chamam uma rede de ofertas educativas e que mais não significa que a substituição da responsabilidade do Estado perante uma rede pública de educação pela preocupação de apoiar financeiramente o ensino privado na mesma medida em que apoia o ensino público. Esta é uma decorrência directa do conceito de liberdade de aprender e ensinar deste Governo, dirigido a que as famílias escolham livremente a escola onde pretendem colocar os seus filhos, independentemente de se tratar de oferta pública ou privada, pois tudo agora se passaria a resumir à chamada rede de ofertas educativas, numa clara incorporação de conceitos de mercado no nosso sistema educativo.

Para que o mercado funcione regularmente é necessário ainda que haja competição ao nível das respostas que tem para dar, para que as famílias, no âmbito da liberdade de escolha que lhes é oferecida, possam optar pela escola que lhes pareça mais capaz de oferecer melhores resultados aos seus educandos. E é assim que, segundo a mesma Exposição de Motivos, as consequências da liberdade de aprender e ensinar manifestam-se agora também na visão sobre a autonomia das escolas, que passa a constituir um momento essencial  das bases normativas da educação, incluindo no que à escola pública diz respeito. Pretende-se assegurar um modelo de organização e funcionamento das escolas, públicas, particulares e cooperativas, que promova o desenvolvimento de projectos educativos próprios, no respeito pelas orientações curriculares de âmbito nacional, e padrões crescentes de autonomia de funcionamento.

Este enunciado aponta directamente para uma das contradições detectadas por Almerindo Janela Afonso (2) na sua análise sobre as políticas neoliberais e neoconservadoras levadas a cabo nalguns países desde a década de oitenta do século passado, nomeadamente nos Estados Unidos da América e em Inglaterra, e que, com os inevitáveis atrasos, se tentam transplantar para Portugal nos dias que correm. Uma dessas contradições consiste na tentativa de conciliar hierarquia e subordinação com a liberdade de escolha. O autor salienta ainda que é esta combinação específica de regulação do Estado e de elementos de mercado no domínio público que explica o facto de que os governos da nova direita tenham aumentado consideravelmente o controlo sobre as escolas (nomeadamente pela introdução de currículos e exames nacionais) e, simultaneamente, tenham promovido a criação de mecanismos como a publicitação de resultados escolares, abrindo espaço para a realização de pressões competitivas no sistema educativo.

Quando o actual Governo nos anuncia que a contrapartida da autonomia das escolas reside numa maior responsabilização pela prossecução de objectivos pedagógicos e administrativos... (sublinhado nosso), está, mais uma vez, a destapar o véu, e a deixar claro que a prevalência de critérios pedagógicos na gestão das escolas, sobre quaisquer outros, como preconiza a actual Lei de Bases do Sistema Educativo, é para apagar da arquitectura do funcionamento das escolas portuguesas e que a nova lógica a que estas se terão que subordinar tem mais a ver com os sempre reclamados objectivos de eficiência e eficácia, tendo em vista a sua sujeição à avaliação pública dos resultados.

Por isso não surpreende que a referência atrás feita à existência de projectos educativos próprios para as escolas seja, já no articulado da proposta de lei, explicitada pela premissa de que a responsabilidade de formulação desses projectos caiba à direcção executiva, tendencialmente unipessoal e não eleita, pelo contrário, escolhida em processo público, no qual a apresentação do referido projecto educativo é já elemento essencial de selecção.

Aparentemente estaríamos perante uma demonstração inequívoca de ignorância face ao conceito de projecto educativo, nomeadamente no que à sua concepção diz respeito, tão distante está um enunciado destes já não só de toda a teoria publicada neste domínio como também das próprias práticas que professores e restante comunidade educativa vêem desenvolvendo há já vários anos.

Só que esta demonstração de oportunismo semântico, prática também muito frequente deste tipo de governos, é intencional e visa objectivos claros de entregar as escolas a gestores profissionais que tenham por preocupação central a apresentação de resultados, medidos pelos produtos finais conseguidos ao fim de cada ano lectivo e resultantes, em exclusivo, da avaliação final dos alunos, a partir de um número crescente de provas nacionais, que a equipa de David Justino alarga também ao 9º anos de escolaridade e que o partido de Paulo Portas queria arrastar ainda aos 6º e 4º anos de escolaridade.

Nada de novo, pois. Apenas o exercício cego de repetição de velhas fórmulas, só que um exercício ainda mais perigoso, porque a transposição pretendida para o sistema educativo português é feita sem uma avaliação séria e cuidadosa dos resultados obtidos noutros sistemas e noutros lugares, ou seja, sem equacionar os fracassos obtidos por estas soluções nos países onde foram aplicadas.

Não é que possamos dizer que o nosso país tenha estado imune à penetração de ideias neoliberais ou neoconservadoras, de há uns anos para cá traduzidas em medidas políticas com elas condicentes e de que o crescimento em espiral da oferta privada em educação é talvez o mais significativo exemplo. Só que, a chegada ao poder deste Governo e desta maioria permitiu que, como denunciava de forma frontal e contundente Licínio Lima (3),  se passasse a actuar ...já sem inibições ou conveniências discursivas, sem qualquer originalidade e com muitíssimo atraso face a posições idênticas expressas por elites e forças políticas congéneres, na defesa pública das políticas de livre escolha educacional e de mercado na educação, da privatização da escola pública, do sistema de vouchers ou cheques-educação, dos rankings de escolas, da gestão escolar por resultados e performance, do recurso à nomeação de gestores, da promoção de professores ou dos seus salários em função dos resultados obtidos pelos seus alunos em exames nacionais estandardizados e, finalmente, no ataque ideológico sem precedentes aos educadores/professores, ao pensamento pedagógico, às teorias e à investigação em educação.

São estas perspectivas que enformam, de maneira que se pode dizer radical, a proposta de Lei de Bases da Educação apresentada pelo Governo à Assembleia da República e que, confrontada com mais 4 projectos de lei partidários, se encontra agora em fase de debate público.

Por assim ser, e pela importância que sempre reveste a revisão de uma lei estruturante do sistema educativo, como é o caso, torna-se absolutamente indispensável que os professores, os seus sindicatos e particularmente a FENPROF, entrem neste debate com profundidade de análise e sentido crítico, mas também com ideias próprias e propostas concretas. Não partir para este debate derrotado, e muito menos esmagado pela maioria absoluta que a Assembleia da República regista,   é a forma positiva que deve caracterizar a nossa intervenção e servir de ponto de partida  para a  mobilização geral dos professores, na perspectiva de enfrentarem com sucesso uma ofensiva tão violenta contra a escola democrática como esta que agora identificamos.

Que de nenhum de nós, professores, se possa dizer que passou ao lado deste debate decisivo para o futuro do sistema educativo português. Que de nenhum de nós, sindicatos responsáveis e representativos a quem cabe a tarefa de organizar o debate colectivo no seio da classe, se possa dizer que se demitiu do seu papel  e que não conseguiu encontrar as grandes resultantes da discussão colectiva travada no seio da classe docente. Que ninguém possa vir a dizer com razão que, apesar da legitimidade política que detêm os partidos representados na Assembleia da República, o debate em torno de uma nova Lei de Bases para o sistema educativo se resumiu às discussões travadas nas quatro paredes do nosso Parlamento. Setembro será apenas o mês de arranque de todas as discussões.


(1) Na decorrência da liberdade de aprender e ensinar, entende-se que o ensino particular e cooperativo deve deixar de estar enclausurado, como acontece na sistemática da Lei de Bases ainda em vigor, num capítulo dos fundos, para passar a integrar, a par do ensino público, os vários momentos que estruturam a nova Lei. in: Exposição de Motivos da Proposta de Lei de Bases da Educação do Governo
(2) Almerindo Janela Afonso, Políticas Contemporâneas e Avaliação Educacional, in: Reformas da Educação Pública: Democratização, Modernização, Neoliberalismo Edições Afrontamento, 2002

(3) Licínio Lima, Modernização, Racionalização e Optimização: perspectivas neotaylorianas na organização e administração da educação, in: Reformas da Educação Pública  - Democratização, Modernização, Neoliberalismo Edições Afrontamento, 2002