Nacional
Opinião / Teresa Sá e Melo*

A última geração

13 de novembro, 2003

Não sei quais são os objectivos, ou os vários propósitos, dos recentes manifestos sobre Ciência e Investigação Científica. Gostaria apenas de relembrar que, infelizmente, a Ciência não é uma actividade cultural, tal como as Artes.

As razões deste facto inultrapassável advêm da própria fundação do saber científico, tal como foi instituído como Ciência ?moderna?, nos finais do século XVIII, na Europa. É convicção de muitos de nós que a Ciência ?moderna?, ao instituir-se contra os saberes tradicionais e seculares pelos descendentes dos Filósofos da Natureza, veio quebrar a cadeia de formação de saberes, sedimento sobre sedimento, da ?rocha? racional edificada ao longo de 2500 anos de sabedoria.

Ao estabelecer-se contra si-própria, a Ciência ?moderna? anulou a possibilidade de um outro olhar (uma função crítica) no reino das suas novas regras, ditas ?universais?, de aquisição e transmissão do saber.

Ao longo dos séculos, desde a Antiguidade Clássica até ao final da Idade Média, os diferentes saberes dos gregos foram-nos sempre transmitidos pelos não-filósofos, fossem eles autores/tradutores esclarecidos ou simples escribas ou compiladores. Mas eram sempre os outros: tradutores latinos da Roma Imperial, autores árabes esclarecidos, e escribas monásticos latinos.

A partir do Renascimento e até ao século XVIII os saberes clássicos eram-nos não só transmitidos pelos monges mas também pelas mulheres eruditas versadas no grego e no latim.

O século das Luzes veio estancar este fluxo de erudição e transmissão dos diferentes saberes de uma humanidade culta.

A representação institucional da competência científica foi considerada necessária naquela época (séc. XVIII), como o único caminho para que o pensamento científico ?inteligente? pudesse rebater velhos conceitos teológicos baseados na eterna ordem divina.

A instituição de um poder único de validação do saber, reconhecido então como o único e ?universalmente? válido foi, e é até hoje, um logro que condiciona o pensamento livre.

A meu ver, são fundamentalmente três as razões segundo as quais a Ciência não é (infelizmente) uma actividade cultural.

A primeira razão, como acima se disse, advém do facto de que a Ciência não tem uma função crítica externa, como muito bem descreveu o físico francês Jean Marc Levy Leblond.

A segunda razão advém do facto de a Ciência, contrariamente às artes, não ser intemporal. Apesar dos ditos ?paradigmas? científicos (mais correctamente paradogmas a meu ver) serem apenas refutados de 300 em 300 anos, como no caso de Galileo, a verdade científica de um tempo acaba sempre por cair num próximo tempo, considerado mais ?inteligente?.

A terceira razão advém do facto de, contrariamente à actividade artística, a actividade científica ter objectivos precisos, os da procura das causas dos fenómenos da Natureza e da sua ?modelagem? teórica. Não é exactamente uma arte pela arte.

Esta pequena reflexão serve apenas para lembrar a alguns colegas que, conectar a actividade científica a uma função cultural é, infelizmente, um ideal há muito inexistente. Daí que a actividade científica possa ser vista como um produto transaccionável e sujeito às regras do mercado, como foi recentemente proposto nos USA. Também está na base do raciocínio implicíto na proposta de Bolonha para a uniformização dos graus académicos do ensino superior na Europa.

É minha intuição que os actos criativos e as mensagens originais, tanto no domínio das Artes como na Ciência, provêm exactamente daqueles ?inadaptados?, os outros do sistema, intelectualmente afastados das instituições de poder e das instituições auto-reguladas do saber. Há muitos saberes válidos mas institucionalmente não representados no funil dos curricula académicos.

Se é assim, o tipo de pensamento em círculo, cultura/ciência ou sabedoria/saber universal, talvez fosse então humanamente de rejeitar.

Até lá, muita coisa haverá ainda a dizer sobre a Ciência, e a fazer com a actividade científica de um país, ou da humanitas Europa.

Esta reflexão (espero não ser a única) é tanto mais importante quanto sabemos ou temos a intuição que somos talvez a última geração daqueles outros, os inadaptados, os ?independent scholars? com alguma capacidade de crítica às instituições de saber e com conhecimento de causa.

* Investigadora