Nacional
Opinião/António Brotas*

A situação do Ensino Superior exige medidas drásticas

13 de novembro, 2003

A situação difícil em que se encontra o nosso Ensino Superior é fundamentalmente devida a erros estratégicos cometidos nos últimos 26 anos e a situações de laxismo que se acumularam e nos conduziram a uma situação única na Europa, que tende a agravar-se e da qual não conseguiremos  sair sem medidas drásticas que , possivelmente, não seremos capazes de tomar nos próximos anos.

Tomemos um exemplo:  o do Ensino Superior privado.  Portugal tem, possivelmente, mais instituições do ensino superior privado do que todo o resto da Europa. Tive ocasião, em tempos, de ler a lei espanhola do Ensino Superior privado. Uma medida drástica seria adoptarmos uma lei  com  exigências mais ou menos semelhantes às da lei espanhola  e obrigarmos  as actuais instituições a cumprirem-na  num prazo razoável. Está algum partido político disposto a debruçar-se seriamente sobre o problema e a apresentar  propostas sobre o assunto?

Um outro exemplo: o Ensino Politécnico. O Presidente da Republica manifestou recentemente interesse pelo seu desenvolvimento e sobrevivência. Mas os Institutos Politécnicos, com o seu estatuto actual de ensino superior não universitário, estão numa situação de instabilidade estando  muitos deles, inevitavelmente, condenados a minguar por falta de alunos e alguns mesmo a desaparecer. Se o  Ministério diminuir as vagas nas Universidades do Estado para canalizar para eles parte dos alunos,  muitos irão para as Universidades privadas, que lhes permitem ter diplomas universitários, em muitos casos com menos esforço.

Uma   medida drástica seria a de  integrar todos os Politécnicos públicos, ou pelo menos dos que o desejem, nas Universidades do Estado. Penso que um grave erro estratégico do Ministério socialista em 1995 foi o de  não ter tomado esta decisão. Agora, é bastante mais dificil, mas continuo a pensar que é uma decisão necessária para  permitir um desenvolvimento   sem tensões  do nosso Ensino Superior.  Nesta matéria, os Reitores das Universidades comportaram-se sempre como se o Ensino Politécnico fosse num outro planeta.   

Agora,   os jovens docentes das melhores escolas Universitárias e em que há melhor investigação  têm as carreiras praticamente bloqueadas. De facto, neste momento, o grupo menos interessado na integração dos Politécnicos nas Universidades é o dos docentes  dos Politécnicos que conseguiram um estatuto e perspectivas de carreira muito  favoráveis em relação aos universitários. Os Politecnicos em vez de tentarem entrar nas Universidades existentes, procuram, assim, manter a sua autonomia e transformar-se  em imitações de Universidades.

Carreira e escolha dos docentes

Um problema central do Ensino Superior é o  da carreira  e  modo de escolha  dos seus docentes. A qualidade do ensino  e da investigação disso depende fundamentalmente. Portugal é um dos poucos países europeus, senão o único, em que os docentes universitários  que fazem o doutoramento ganham automaticamente o estatuto de Professores  (Auxiliares). Esta situação tinha a sua razão de ser  quando havia muito poucos doutoramentos  e, além disso, as provas eram acompanhadas de exigências  didácticas e de conhecimentos   bastante duras. Actualmente, há (felizmente) muito mais doutoramentos,  só que, quase sempre,  em matérias muito especializadas.

Assim, há muitos doutorados inteiramente aptos para ensinar cadeiras avançados de iniciação à investigação, mas muito pouco aptos para ensinar cadeiras de base. Mas há uma outra questão ainda mais grave. É nos domínios onde estamos mais avançados  que a progressão na carreira dos docentes é mais difícil (exactamente porque nesses sectores há muitos doutoramentos).

Paralelamente,  há   escolas muito fechadas  em que  não entra praticamente um docente que não seja escolhido pela própria escola. O convite a professores  do exterior para fazerem parte dos juris é quase simbólico. Acresce, que é muito difícil a um júri avaliar convenientemente candidatos em provas documentais, ou feitas na altura. Assim,  nas  escolas com corpos docentes   fracos entram, com frequência,  candidatos fracos, que, depois, progridem rapidamente na carreira e passam a fazer parte dos juris.

O sistema evolui no mau sentido. A situação é grave nas grandes Universidades e nos Politécnicos,  em muitos casos  por razões opostas: nas Universidades  há, com frequência, excesso de candidatos  de qualidade e nos  Politécnicos e em pequenas Universidades falta deles.  O futuro do Ensino Superior português exige soluções urgentes  neste domínio. 

Uma solução adequada poderá ser a da criação nos grandes sectores - Matemática, Física, Engenharia Civil, Medicina, Veterinária,  Sociologia, História, Literatura,  etc., etc., (não será  necessário começar com todos ao mesmo tempo)  - de comissões com uma  composição definida na Lei, muito amplas e largamente representativas das escolas e de outros sectores (Academias, Ordens, Associações Patronais, etc.), com a missão de estabelecer e actualizar anualmente listas de indivíduos aptos para o Ensino Superior. 

A Comissão da Literatura poderá, por exemplo, incluir o José Saramago na lista das pessoas aptas a ensinar Literatura. Lembremo-nos que um professor como o Professor  Edgar Cardoso não poderia, com a legislação actual,   entrar para o quadro dos docentes de uma Escola Superior. 

Estabelecidas as listas com nomes em excesso, as diferentes escolas do Estado escolheriam obrigatóriamente nelas, pelos métodos que considerassem mais convenientes,   os docentes de que necessitam.  As Universidades privadas fariam o que entendessem, mas o Estado não daria o seu aval a nenhum curso superior cujos docentes não satisfizessem o requisito de serem considerados aptos para o ensino superior.      

Formação de professores

do Básico e Secundário

 

Um domínio em que são necessárias decisões urgentes é o da formação dos professores do Secundário e do  Preparatório . Há um excesso de cursos de formação de professores em escolas públicas e privadas que vai, inevitavelmente, conduzir a gravíssimos problemas de desemprego.

É confrangedor saber que há jovens que se inscrevem nestes cursos  julgando, pelo facto dos cursos terem sido autorizados pelo Ministério, que  ele lhes assegurará depois emprego.  Como pode o Ministério actuar atendendo à autonomia das escolas?  Acontece que, neste domínio, o Ministério é o maior empregador e, como tal, tem o direito e a obrigação de fazer concursos para  escolher os melhores candidatos. É, no entanto, péssimo para todos, quase uma barbaridade,  deixar um número incontrolável de jovens a tirar cursos completos (e muitas vezes de má qualidade) na esperança de depois conseguirem um lugar num concurso com um número muito limitado de vagas. 

Uma solução com menores custos humanos e financeiros  poderá  ser  do seguinte tipo: o   Ministério organizará,  anualmente,  concursos, com um número de vagas convenientemente estudado nas diferentes ramos,   abertos a estudantes com dois anos completos de um qualquer curso superior que tenha as cadeiras consideradas necessárias  a esse ramo. 

O Estado assegurará, depois, em escolas, ou associações de escolas, públicas ou privadas, que também podem ser escolhidas por concurso, o complemento de formação dos candidatos escolhidos, a quem serão dadas bolsas e depois assegurado emprego. Uma solução deste tipo pode assegurar  uma incomparavelmente  melhor qualidade dos futuros professores.  Poderá haver outras melhores, mas o  que não é admissível é, perante um problema como este, continuarmos com  os olhos fechados.

Os actuais projectos  de reforma  que o  Ministério pôs em discussão e parece desejar ver  aprovar rapidamente, têm alguns laivos de qualidade e são  um esforço para ultrapassar a situação existente, mas têm propostas que não me parecem, de modo nenhum,  as mais correctas e que vão, inevitavelmente,  suscitar polémicas à margem do  essencial. Sobretudo não são acompanhados de uma análise crítica  do evoluir do sistema  nas últimas décadas (que hoje já quase ninguém conhece) e não chegam, assim, ao limiar das  mudanças de fundo que me parecem necessárias para o Ensino Superior português.  Desta deficiência não é, no entanto, inteiramente responsável o Ministério.  O debate sobre estas questões de fundo tem sido manifestamente insuficiente, ou mesmo inexistente. E  sem um debate razoável  em que se oiçam  e ponderem  as diferentes  propostas  não conseguiremos fazer  uma reforma válida e consensual, o que pode piorar a situação e ser muito  mau para o País. 

*Secretário de Estado do Ensino Superior e Investigação Científica do VI Governo Provisório (1975-76)  

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