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Público, 23/10/03

A coragem dos reitores ou a desagregação da autoridade do Estado

22 de setembro, 2004

Tenho para mim que a propina é não só socialmente admissível como taxa moderadora de acesso a um bem que é posto à disposição dos cidadãos, como até aconselhável, como forma de valorizar esse bem. Mas a fixação do seu montante deve ser fortemente condicionada pela necessidade de aumentar o nível de habilitações médias da população - Portugal tem um dos mais baixos da Europa - e pelo preceito constitucional de um ensino tendencialmente gratuito. A fixação do valor das propinas deve ter em conta estes pressupostos e não pode também deixar de considerar o historial recente do financiamento das universidades.

Atendendo a tudo o que se disse e escreveu a este respeito desde a publicação da anterior lei de financiamento (Lei 113/1997), pode afirmar-se, sem risco de desmentido, o seguinte:

- Nunca o Estado conseguiu cumprir o compromisso orçamental que assumiu no âmbito da anterior lei, o que se traduziu num percurso de divergência continuada dos orçamentos das universidades em relação ao chamado orçamento-padrão.

- Nunca o aumento das propinas significou aumento de receitas globais das universidades, antes serviu de pretexto para diminuir de iguais montantes, até ao último cêntimo, os orçamentos transferidos.

- Com a nova lei, o aumento das propinas é acompanhado, uma vez mais, de uma diminuição do orçamento transferido para 2004.

- Interrogado directamente sobre este ponto, o ministério não quis (ou não pôde) assumir qualquer compromisso para o futuro, nem sequer o de manter em 2005 um orçamento transferido que represente a mesma percentagem do orçamento-padrão a transferir em 2004.

Apesar da insistência da Universidade de Coimbra e do CRUP, não foi possível consagrar na nova lei (Lei 37/2003) um compromisso de financiamento numa base objectiva, de estabilidade plurianual, que seria a chave de uma gestão estável das instituições e de uma relação de confiança com a tutela. Nestas circunstâncias, num contexto de apertos orçamentais do Estado e de dificuldades em cumprir o Pacto de Estabilidade, a única conclusão realista parece ser a de que o aumento das propinas será, como no passado, progressivamente erodido pela redução das transferências orçamentais. E já nem argumento, pelo menos aqui, que nos mantemos abaixo do investimento médio europeu no ensino superior - por isso continuamos na cauda da Europa. Direi apenas de uma forma prosaica, que, se é o Estado que beneficia dos aumentos de propinas, que seja ele a definir os respectivos montantes. De outra maneira, a universidade ficará com o odioso e sem o dinheiro.

Ou se considera que o ensino superior é um bem social, de acesso mediado através de uma taxa moderadora a definir pelo Estado, igual para todo o território nacional, ou então que é um bem de mercado, como tal aberto à concorrência, com custos de acesso a definir em função das regras da oferta e da procura. O actual enquadramento constitucional e jurídico não deixa margem para dúvidas: as universidades públicas cumprem uma missão do Estado prestando um serviço público de superior relevância nacional, ao preparar as elites culturais, intelectuais, científicas e técnicas necessárias ao desenvolvimento do país. Ao deixar a cada universidade pública (e até mesmo a cada unidade orgânica com autonomia administrativa e financeira) a responsabilidade de fixar as propinas dos seus cursos, a nova lei vem misturar alhos com bugalhos. Vem pôr os reitores, os senados e os conselhos directivos a "brincar ao mercado", dando-lhes a sensação de que podem valer-se da qualidade e de outras vantagens relativas da sua instituição, num contexto em que o primeiro critério de escolha, de uma parte significativa dos alunos, é o da proximidade geográfica. Mas, para que não vá o sapateiro acima da chinela, limita-se-lhes a "brincadeira" a apenas 6,8 por cento do custo total do "produto". Tal é a diferença entre o mínimo e o máximo estabelecidos.

Estando o problema mal equacionado, é, pois, de toda a conveniência camuflá-lo atrás de uma discussão de elevado potencial mediático, para a qual não faltam credenciados editorialistas e fazedores de opinião, sobre a questão de saber se os reitores teriam ou não coragem para impor aos estudantes propinas mais elevadas. O mote foi, aliás, prontamente abandonado, quando se tornou evidente que os reitores estavam, como lhes competia, mesmo se contra vontade, a cumprir a lei.

O que se diz à opinião pública: os reitores, que andam há tantos anos a queixar-se de falta de dinheiro, não têm coragem política para aumentar as propinas.

A realidade: o Estado, que não tem meios para continuar a suportar os encargos orçamentais decorrentes de vinte anos de políticas irresponsáveis de proliferação de estabelecimentos de ensino superior e que não quer assumir o ónus político de encerrar alguns ou de aumentar os impostos (que aliás não consegue fazer pagar), transfere para as instituições a obrigação de aumentar as taxas de frequência entre 30 por cento e 140 por cento, de forma a que elas possam acomodar, nos próximos três ou quatro anos, as reduções de orçamento transferido.

Fica por esclarecer por que não se atribui também aos juízes a responsabilidade de fixar as taxas e os emolumentos de justiça no seu tribunal; ou aos directores dos hospitais a de fixar as taxas moderadoras de saúde para a sua unidade; ou, aos responsáveis da Brisa, a responsabilidade de decidir o valor das portagens de pontes e auto-estradas, talvez até diferenciadas entre vias, consoante, por exemplo, a qualidade do alcatrão. Ou ainda aos directores de Finanças a possibilidade de acrescentar aos impostos uma taxa autónoma, local, para comprar mais computadores, ou para melhorar a qualidade dos serviços prestados.

Não é da coragem dos reitores que nós estamos a falar, mas sim da desagregação da autoridade do Estado. Que este conquista quando enfrenta as consequências de decisões difíceis e impopulares. E que degrada quando endossa para outros responsabilidades que só podem ser suas.

Fernando Seabra Santos,

Reitor da Universidade de Coimbra