Gestão Democrática das Escolas

Licínio Lima: “À ponta da baioneta, as escolas são transformadas em repartições”

10 de julho, 2010

Na sequência da sua participação no recente encontro nacional promovido pela FENPROF sob o lema “Democracia na Escola”,  colocámos ao Professor Licínio Lima, prestigiado investigador e docente da Universidade do Minho (Departamento de Ciências Sociais da Educação) , algumas das questões que marcam o governo das escolas e os seus desafios, num contexto marcado, entre outros factores, pelos mega-agrupamentos e pelo reforço do poder centralizador a partir do Ministério 5 de Outubro.


Há vários anos que o Professor tem chamado a atenção para a contínua afirmação centralizadora da administração educativa sobre as escolas. Houve alguma evolução?

Licínio Lima (L.L.) – Como já tive oportunidade de referir em textos e em conferências e outras iniciativas um pouco por todo o País, continua a existir, na verdade, uma contradição insanável entre a centralidade educativa e pedagógica das escolas e o seu carácter periférico em termos de governo e autonomia. Ao invés, a política e a administração da educação revelam-se, na tradição portuguesa, altamente centralizadas, embora fatalmente periféricas no que concerne à acção educativa e pedagógica concreta, que ocorre necessariamente em contexto escolar e não nos departamentos centrais ou nas instâncias pericentrais desconcentradas do ministério respectivo.

Esse centralismo, além de não criar soluções, envolve também uma faceta autoritária?
L.L.
– Sem dúvida. Como os problemas mais típicos e complexos da "escola de massas" exigem soluções políticas e organizacionais diversas e contextualizadas, única forma de responder positivamente à crescente diversidade das escolas públicas e dos seus alunos, o centralismo revela-se inconsequente em termos educativos e pedagógicos, assumindo dimensões autoritárias, próprias de uma oligarquia que, por definição, é incapaz de corrigir os seus erros e de se descentrar das suas lógicas de controlo. À ponta da baioneta, as escolas são transformadas em repartições.

A recentralização avança. A política dos mega-agrupamentos também aponta nesse sentido?
L.L - Os agrupamentos representam um novo nível no reforço de centralização. A lógica dos agrupamentos poderia ter sido interessante, conduzida de outra forma; a que temos é uma visão tecnocrática, centralizadora. Criaram, na verdade, um novo nível de centralização…
É interessante ver como os profissionais se referem ao Agrupamento. Quando vão à sede, dizem ”vamos ao Agrupamento”…Eles estão na escola e, quando precisam, vão ao agrupamento, quer dizer: vão à sede do agrupamento…
Agora, é possível acabar com as direcções regionais!... O poder central controla tudo através das plataformas de controlo informático. O Director está na sede do agrupamento e é o rosto estampado do Ministério da Educação, não é o rosto da escola.

Ainda voltaremos à figura do Director. Para já, a questão da centralização é mesmo um grave problema para a escola pública?...
L.L.
– Certamente. A forte centralização da administração educativa é o principal problema que atinge hoje a Escola Pública em Portugal e ou damos passos importantes na democratização do governo das escolas ou não resolveremos nenhum dos outros problemas.
Em Portugal descobrimos uma teoria nova, um contributo que damos para a Humanidade: nas escolas pequenas os alunos não aprendem. E assim, enquanto na Finlândia uma escola secundária tem uma média de 400 a 500 alunos, no nosso país a administração quer fundir escolas e criar super-estruturas organizativas com centenas de professores e milhares de alunos…

E a autonomia? Continua na gaveta… É a tal “terra prometida”, eternamente adiada?
L. L. -
Apesar da recente retórica em torno da "autonomia da escola", uma promessa insistentemente repetida mas eternamente adiada em termos minimamente substantivos, tem-se assistido a fenómenos de recentralização que asseguram o protagonismo insular das equipas governativas e respectivos aparelhos administrativos. São exemplos disso mesmo a lei orgânica do ME e o reduzido número de contratos de autonomia assinados, independentemente das críticas que vêm sendo apresentadas a esta figura, normativamente estabelecida há mais de uma década. Ao mesmo tempo que os discursos autonómicos se generalizam, sem consequências visíveis, emerge, pelo contrário, um maior protagonismo do governo, seja através da tradicional produção normativa e hiper-regulamentadora, seja por intermédio de novos dispositivos de governamentalização da administração central, das direcções regionais e, sobretudo, das escolas. A este propósito, a criação do conselho das escolas tem-se revelado, até agora, mais um elo de ligação entre o governo e as escolas, garantindo a centralidade do primeiro, do que um fórum de expressão das segundas e um locus de concertação e produção de políticas participadas.

Isso tem consequências…
L.L. -
Entre outros, dois fenómenos emergem daquela situação. Em primeiro lugar uma disputa sem precedentes pelo protagonismo e pela visibilidade pública entre governo, e administração, e as escolas, com o resultado que é do conhecimento de todos; os protagonistas centrais do ministério da educação reafirmaram-se como os mais importantes actores político-educativos, tornaram-se notícia incontornável, concentraram sobre si todas as atenções, frequentemente em termos personalizados. O anunciado, e relevante, projecto de defesa e dignificação da escola pública aparece, hoje, secundarizado por uma acção política contraditória. Medidas de alcance potencialmente elevado foram contrariadas, ou pelo menos diminuídas, por lógicas antagonistas, pela intransigência, pela incapacidade negocial, configurando uma estratégia que se assemelha várias vezes a um certo vanguardismo e dirigismo de feição leninista: a conquista, o slogan, a campanha, o marketing, revelam-se instrumentos centrais de uma lógica modernizadora em que, como há muito criticou Paulo Freire, a estrutura que se pretende transformar é entendida como um mero objecto, e não como sujeito da sua própria transformação.
Em segundo lugar, assiste-se a um processo de reificação das escolas, inscritas no discurso governamental como entidades mais ou menos abstractas e homogéneas, como se não fossem habitadas por actores concretos e atravessadas por múltiplas racionalidades. Daquele modo, contudo, mais manejáveis pela acção governamental e, no limite, apresentadas de forma atomizada e em oposição à expressão, considerada minoritária ou sem legitimidade institucional, de todas as posições divergentes face aos projectos governamentais. Não por acaso, em todos os conflitos que opõem ministério e professores, o que nos é assegurado é que, independentemente das agendas sindicais ou da expressão das associações ou movimentos de professores, "as escolas" já estão as aplicar a legislação, já estão a resolver os problemas, a encontrar soluções...porque são a favor, e não contra, porque, no limite, seriam mais independentes e representariam melhor o interesse público. De há muito, porém, a legislação escolar vem fazendo referência à "administração educativa", por um lado, e às "escolas", ou "subunidades de gestão", por outro, como se a administração escolar fosse uma prerrogativa do centro.
Na verdade, tenho chamado a atenção para a natureza estranhamente atópica da direcção de cada escola concreta; fora do seu lugar, antes se localizando para além de cada organização escolar, ou seja, no centro político-administrativo, concentrado e desconcentrado.


O Professor tem abordado a figura do Director como o representante do Ministério no terreno…
L. L. - A recente criação da figura do "director", enquanto primeiro responsável perante o governo, e "rosto" de cada escola, não devolve minimamente a direcção escolar às escolas, ao contrário do que seria de supor. Não é o governo das escolas que se pretende partilhar com os órgãos próprios das escolas, mas sobretudo a gestão corrente, procurando garantir uma mais fiel operacionalização local das políticas educativas centrais, embora sempre subordinada a um extenso corpus de regras supra-organizacionalmente produzidas. E por isso a autonomia de que se fala tende a coincidir com o elogio da diversidade da execução periférica das decisões centrais, limitada a uma autonomia operacional, mesmo assim fortemente vigiada. Nestes termos, mesmo a eleição do director e a existência de um "conselho geral", de resto quesitos constitucionais mínimos, não deixam de ser inscritos numa organização política e administrativa mais global que garante a sua função de legitimação democrática e, simultaneamente, a sua subordinação, e eventual cooptação, perante o poder central.
O director será, muito provavelmente e de acordo com a nossa tradição, o primeiro representante do poder central junto de cada escola, o "rosto" do Ministério, ainda que localmente escolhido, uma contradição que a seu tempo poderá ser resolvida.

A escola não é uma ilha. As políticas da administração dirigidas à escola fazem parte de opções políticas muito concretas…
L . L. -
  É verdade. Mas deixe-me, para já, sublinhar uma das mais interessantes conexões entre a tradição centralista e o novo cânone gerencialista, este último uma das expressões mais conhecidas da "Nova Gestão Pública" no campo da educação. Em princípio, a burocracia estatal e respectiva centralização são fortemente criticadas pelas correntes reformistas, que adoptam os quadros de racionalidade mais típicos das organizações económicas e empresarias.
A reforma do Estado é considerada central, atribuindo maior protagonismo ao mercado, à iniciativa privada, ao conceito de rede nacional, e não já ao de rede pública de estabelecimentos de educação e ensino, conforme estabelece a nossa Constituição.
Novas formas de regulação da educação emergem, com destaque para os conceitos de supervisão estatal e de meta-regulação, no quadro dos quais a "gestão democrática" e a colegialidade nas escolas tendem a ser vistas como utopias políticas herdadas da revolução e como irracionalidades de gestão; neste quadro, o gerencialismo significa mais gestão para menos democracia. A avaliação, das escolas dos professores e dos alunos, é transformada num instrumento de controlo, garantindo a mensuração, comparação e hierarquização, a partir das quais se legitimam orçamentos competitivos, contratos de performance, mercados internos, lideranças fortes de tipo unipessoal, concorrência entre distintos fornecedores de educação e formação. A autonomia das escolas é, consequentemente, entendida como um instrumento ao serviço de distintos projectos educativos em concorrência, uma autonomia sistematicamente aferida em termos de padrões estabelecidos centralmente, uma autonomia merecida e conquistada em ambiente de competitividade, uma vez que "competir para progredir" é um dos lemas de referência.
Entre muitas outras, as dimensões que referi encontram-se em processo de introdução nas políticas educativas portuguesas ao longo das duas últimas décadas, conforme várias investigações têm chamado à atenção. Contudo, com variações acentuadas de governo para governo, de formas por vezes contraditórias, com distintas características consoante os níveis de ensino, e, especialmente, em tensão permanente com a tradição centralizada do nosso sistema educativo.
Vivemos, portanto, uma complexa fase de transição, na qual a introdução do cânone gerencialista suscita diversas resistências e oposições, não apenas em termos estritamente pedagógicos e profissionais, mas também no que concerne à própria administração central, aos municípios e às comunidades locais, às associações de pais, aos interesses económicos, etc. Basta lembrar temas como a racionalização da rede escolar e os agrupamentos de escolas, a avaliação dos professores, o ensino privado, a gestão das escolas, a intervenção dos municípios, as parcerias com as IPSS, entre outros.

E entramos, então, no campo das contradições…
L. L. -
As contradições entre a burocracia estatal centralizada e o gerencialismo de feição competitiva e descentralizada, este apresentado como tipicamente pós-burocrático, vêm-se traduzindo, entre nós, num hibridismo complexo e sem precedentes. Não é tanto o problema das contradições entre soluções centralizadas e descentralizadas, matéria em que criativamente se têm engendrado soluções mistas e movimentos simultâneos de descentralização e de recentralização, dando lugar a novas formas de regulação e meta-regulação da educação, seja accionando formas de regulação pelo mercado, seja instituindo novas agências de regulação privadas ou supra-nacionais. O mais curioso, e perturbante, é o retorno a concepções instrumentais e técnico-burocráticas de organização escolar, entendida como um instrumento (organum), reactualizando concepções organizacionais mecanicistas. A crítica ideológica à burocracia pública estatal, ignorando os fenómenos de burocratização empresarial e das organizações privadas, e a tentativa da sua superação através de modelos de governação pós-burocrática, considerados inovadores e flexíveis, mas à margem de soluções governativas mais democráticas e participadas, tem resultado, contraditoriamente, na emergência de uma hiper-burocracia.

O controlo aperta cada vez mais a vida das escolas…
L. L. -
O controlo central que se abate sobre as escolas, a radical mudança dos quotidianos escolares e da acção dos professores, o taylorismo informático, os procedimentos de todos os tipos de avaliação, são apenas alguns exemplos notáveis do regresso ao positivismo, às pedagógicas científicas e racionalizadoras, ao protagonismo dos objectivos em educação, à mensuração para a competitividade e o produtivismo.

A burocracia está aí em grande força…
L.L.
- Isso também não é novidade. As alternativas à governação burocrática das organizações escolares, que têm evacuado e deslegitimado várias formas de gestão democrática e colegial, a favor de soluções de tipo gerencial, anunciadas como pós-burocráticas, não só não têm assegurado uma governação mais democrática das escolas nem combatido a burocratização das escolas e da educação, como, paradoxalmente, têm radicalizado o seu burocratismo tradicional e contribuído para a emergência de uma hiper-burocracia incompatível com uma educação democrática.

O que é que o sistema educativo precisa realmente?
L. L. – A forte centralização da administração educativa é o principal problema que atinge hoje a Escola Pública em Portugal e ou damos passos importantes na democratização do governo das escolas ou não resolveremos nenhum dos outros problemas.
As escolas precisam de mais autonomia, de mais responsabilidade. É ineficaz uma política que pretende impor soluções a régua e esquadro – do poder central sobre os professores.
Para ser rápido, posso dizer-lhe que precisamos de um Ministério da Educação mais humilde, mais moderado, com mais consciência dos problemas, mais próximo das escolas, mais solidário. O poder central atrapalha muito…
Já agora: precisamos de um órgão de verdadeira direcção, que não é o actual Conselho Geral.

José Paulo Oliveira
Jornalista