Covid-19 Nacional
Entrevista Mário Nogueira

“A exceção do tempo que vivemos impede que ela seja ignorada”

27 de março, 2020

Mário Nogueira responde, em entrevista do Departamento de Informação e Comunicação da FENPROF, sobre a situação que se vive no país, nas escolas e na profissão. Ontem mesmo, o Secretariado Nacional da FENPROF aprovou uma Posição (“Este ano letivo tem de ter medidas excecionais”) que coloca ao governo o desafio de ser rápido a decidir o inevitável, perante a aproximação do 3.º período letivo e a conclusão do segundo, já na próxima semana, com a realização de reuniões de avaliação. Uma tomada de posição que serviu de pano de fundo para as respostas do Secretário Geral da FENPROF.


O tempo que vivemos desperta medos e incertezas em todos nós

Qual a estratégia da FENPROF para apoiar o combate à propagação do novo coronavírus, mas, ao mesmo tempo manter uma estratégia de ligação aos professores e de defesa dos seus direitos?

O apoio aos professores e a defesa dos seus direitos não pode, nem irá fragilizar-se. Num momento de isolamento como este, mais importante se torna a presença da FENPROF e dos seus sindicatos. Só muito excecionalmente poderá haver atendimento presencial e por isso foram reforçados os meios de atendimento a distância. Os contactos com decisores políticos estão a ser mantidos – os últimos, a propósito da necessidade de repatriar docentes que estão em Moçambique e Timor-Leste –, o mesmo em relação à atividade reivindicativa, com a denúncia do arrastamento da precariedade face ao escasso de número de vagas para vinculação, ou, ainda, a tomada de posição sobre aspetos do sistema educativo, como as propostas para o que falta do ano letivo.

O atual contexto não é fácil para ninguém. No caso dos docentes, pode estar em causa a capacidade física para dar resposta às exigências que lhes estão a ser impostas? Há relatos de um completo assoberbamento com a dimensão do trabalho que têm em mãos…

A capacidade física e não só. Este está a ser um tempo muito exigente para os professores, que têm de gerir a sua atividade profissional, hoje sujeita a um turbilhão de novidades que lhes impõem aprendizagens, com uma vida familiar que ficou ainda mais intensa, tudo isto embrulhado num conjunto de preocupações e medos que o tempo que vivemos despertam em todos nós.

Há direitos socioprofissionais que possam estar a ser postos em causa neste momento? Ou essa situação é compreensível?

Não seria compreensível, ainda que se admita que tenhamos de encontrar soluções no futuro próximo para resolver problemas que resultam da situação em que vivemos. Houve muitos colegas que viram as ações de formação suspensas ou a observação de aulas cancelada, isto só para dar dois exemplos. Tal não pode na eliminação de direitos socioprofissionais, mas apenas que alguns procedimentos que visavam garanti-los terão de ser substituídos por outros, eventualmente simplificados, a concretizar mais tarde, mas sem prejuízo do objetivo a que se destinavam. Esperamos que o ME não entenda, é hábito recente do atual ministro, decidir sozinho sobre a vida dos outros.

Existe um certo desfasamento entre o empenho que os professores estão a colocar no seu dia a dia e um Ministério da Educação que não orienta, não perspectiva, adia e parece não saber o que fazer?

Nas páginas eletrónicas das direções gerais têm sido prestadas informações e  divulgados materiais de apoio; está a ser realizado um levantamento, pela DGEEC, sobre como decorreu o trabalho nesta quinzena de escolas encerradas; o secretário de estado adjunto e da educação tem reunido com diretores um pouco por todo o país… Porém, comparando estas ações concretas com o discurso redondo do ministro, não se percebe se elas integram uma estratégia por ele coordenada ou são iniciativas que, como acontece com cada escola e com cada professor, procuram dar as respostas que cada entidade considera mais adequadas face ao momento que se vive.

 

O país espera pela ação do governo e do Ministério da Educação

No atual contexto, o que pensa a FENPROF que deverá ser oficialmente transmitido às escolas, aos docentes e às famílias, em relação ao futuro próximo?

Ainda que não fosse já enunciada cada medida concreta, deveria assumir-se desde já que até final do ano não teremos mais aulas e que, por isso, teremos de ter medidas excecionais que as não substituirão, mas procurarão atenuar impactos negativos. Havia que se perceber, já, que existe uma estratégia de trabalho que passa por determinadas opções, conta com determinados recursos e, em relação às provas finais e exames, nada será como previsto, sendo necessário optar entre a anulação de todos ou, a manterem-se alguns, a sua recalendarização, mas não só.

Tem sentido afirmar-se que o ano letivo acabou? Se é assim, como passar a mensagem para as crianças e os jovens de que terão de continuar a trabalhar?

O ano letivo não acabou, o que terão acabado são as aulas, na medida em que uma aula, que é o expoente máximo do ato educativo, terá sempre caráter presencial. Mas há trabalho a desenvolver e essa mensagem tem de passar para todos, incluindo os alunos. Será um resto de ano diferente, afetado por problemas que o torna atípico e que vai ter implicações, no mínimo, no próximo ano letivo. 

Hoje é consensual afirmar-se que a avaliação dos alunos terá de ter um tratamento excecional. Para a FENPROF o que deveria acontecer?

Ao nível da avaliação interna, tendo em conta as condições em que se desenvolve o processo de ensino/aprendizagem, há que deitar mão a novos instrumentos de avaliação, tendo consciência, contudo, que se a capacidade de diferenciar deve estar sempre presente na atitude profissional dos docentes, hoje ela é mais importante do que nunca, tão diversos são os contextos em que cada aluno se integra. quer no que respeita a provas finais, aferição e 9.º ano, e exames nacionais. Os professores saberão como agir, face ao trabalho que irão desenvolver…

E quanto às provas finais e exames?

Em relação às provas de aferição e de 9.º ano, neste estranho contexto, não têm qualquer sentido. Já em aos exames do secundário, urge decidir como será o acesso ao ensino superior: ou criar um regime excecional face a uma situação de exceção, dando às instituições competência para selecionar, decisão que, tomada agora, também apresenta riscos, até pela mudança de regras no final do jogo, ou, havendo exames, recalendarizando a sua realização. Em limite, estes poderão ser realizados em setembro ou outubro, o que, claro, implicaria vários ajustamentos.

Com o 3.º período à porta, sem perspetivas de poder haver, neste ano letivo, um regresso às aulas, é crível ou tem sentido continuar este esforço de trabalho a distância? Isto não será, apenas, procurar organizar os tempos livres dos nossos alunos?

Não podemos encarar como ocupação de tempos livres, desde logo porque os docentes não são monitores dessas atividades. Tudo será diferente do que deveria acontecer, mas é possível reforçar aprendizagens anteriores, trabalhar alguns conteúdos curriculares, ainda que limitadamente, promover investigação, trabalhar, também, aspetos de outra natureza a que a escola não é alheia, desde logo culturais. E depois será também saudável, neste novo contexto, encontrar e explorar novos centro de interesse.

Como avançar por esta linha sem que haja um colapso do sistema em matéria de igualdade de oportunidades?

É possível evitar esse colapso, desde que se compreenda que haverá, necessariamente uma quebra, cabendo a todos definir e desenvolver estratégias que a mitiguem. Essas quebras resultarão de múltiplos fatores: a falta de equipamentos e ligação à net, a dificuldade em garantir apoios diretos necessários a muitos alunos e até, para muitos, também, a falta de acompanhamento familiar, porque integram famílias desestruturadas, os pais trabalham fora de casa ou porque a família não tem capacidade científica, cultural ou outra para os apoiar… Naquilo que se puder atenuar a desigualdade, os professores saberão fazê-lo, pois essa também é uma responsabilidade que assumem. Porém, quando os alunos voltarem às escolas o governo terá de compreender que é preciso reforçar a contratação de docentes para garantir apoio pedagógico extraordinário a todos os alunos. Será a escola, de novo, quando o ato educativo voltar a expressar-se em toda a sua dimensão, que voltará a fazer a diferença, discriminando positivamente aqueles que necessitam.

 

O futuro pertence-nos, mas não pode ser deixado sem orientação

Será que o recurso à televisão, como começa a ser aventado (penso que, principalmente, para criar a ideia de que, dessa forma, voltarão a existir aulas), é solução?

De forma alguma. Será um recurso para difundir informação, reforçar algumas aprendizagens que já tiveram lugar, mas seria um engano julgar que a solução passava por, na reta final do ano, oferecer a todos, ignorando a diversidade, um pacote igual de conteúdos e, ainda por cima, sem o acompanhamento direto de quem possa garantir a diferenciação pedagógica indispensável. Seria um erro que agravaria ainda mais a desigualdade.

Quanto tempo aguenta um sistema educativo transferindo para os pais a responsabilidade de intermediação entre os professores e os alunos, como se não tivessem também eles horas de trabalho no tempo em que têm de se ocupar dos filhos em relação às suas obrigações escolares?

Terá de aguentar o tempo que a autoridade pública de saúde considerar necessário, pois a vida está acima de todo e qualquer outro interesse. A questão será saber qual o estado em que irá sair. Poderá não sair fragilizado, eventualmente até se reforçará com novas competências que os professores tiveram de construir e que os ajudará no regresso às aulas. Os alunos, esses sim, sentirão as consequências como ninguém. Ao nível das suas aprendizagens, tornando-se ainda mais desiguais as oportunidades de sucesso entre si, por razões já antes referidas. E atenção, no final do ano letivo teremos, ainda, um corpo docente ainda mais desgastado do que é normal acontecer quando as férias, finalmente, chegam. Tentações de puxar o final do ano para julho e agosto, a concretizarem-se, seria um erro tremendo, daqueles em que não se morre do mal, mas da cura…

Devia ou não haver coragem para assumir o caráter de excecionalidade deste ano letivo nos seus diversos planos (do ensino, das aprendizagens, da avaliação)?

Acho que aqui não se coloca a questão da coragem ou da vontade, a situação, por si só, impõe a excecionalidade. A exceção do tempo que vivemos impede que ela seja ignorada.

 

FENPROF atenta à situação geral e ativa em relação aos direitos de quem representa

Quais os setores que estão a passar por situações mais preocupantes em matéria de ataque aos seus direitos profissionais?

Os mesmos de sempre: os colegas com vínculo precário, a começar pelos que trabalham nas AEC, mas também todos os que, apesar de terem muitos anos de serviço, não conseguem entrar em quadro; da mesma forma, os colegas que estão e continuarão impedidos de progredir aos 5.º e 7.º escalões; os que, progredindo, continuam a ser roubados em tempo de serviço; e depois os mais velhos, os que já deveriam estar aposentados, pois já descontaram todo o tempo que a lei prevê. Vamos ver como será quando tudo isto acabar. Ensina-nos o passado que quando a crise estala, os primeiros e que mais sofrem com ela são os trabalhadores. Os professores sabem bem o que aconteceu entre 1 de janeiro de 2011 e 31 de dezembro de 2017, com repercussões, ainda, no tempo atual. E também o que já tinha acontecido em 2007 e 2008. Diz-se que a crise, hoje, é ainda mais profunda. Adivinha-se quem terá de estar atento e organizado para não serem os únicos a pagar mais esta crise…

E agora a pergunta que urge fazer: os combates em que a FENPROF se tem envolvido de uma forma tenaz, persistente, estão agora em pausa?

Nem em pausa, nem em causa. Estão vivos só que a sua expressão é, naturalmente outra. Não esquecemos a carreira, os horários de trabalho, a precariedade, a aposentação, a municipalização, a gestão democrática e tantos outros aspetos de enorme importância para a vida das escolas e dos seus profissionais. Isso é visível na denúncia que fizemos sobre o escasso número de vagas abertas para o concurso externo em curso. Agora, claro, este tempo não permite a concentração de professores para entregar postais de protesto ao Ministro ou ao Primeiro-Ministro e por isso criámos um postal eletrónico que, ao ser assinado, vai diretamente para os destinatários. Quando voltarmos à normalidade, como acontecerá com todo o sistema educativo, retomaremos a atividade normal, mas aproveitaremos as aprendizagens digitais deste período para fazer ainda mais e melhor.

Uma última palavra…

Uma última palavra para a Escola Pública. A resposta pública faz realmente a diferença. E se tivéssemos dúvidas é olharmos, agora, para a capacidade de resposta do nosso SNS, mesmo debilitado como está. Imagine-se o que seria se, como alguns propuseram no passado, em nome da tal liberdade de escolha, ele tivesse sido transformado em serviço mínimo em vez de serviço para todos… Quando olhamos para outros países (Itália, Espanha, Estados Unidos…) encontramos a resposta. Com a Educação passa-se o mesmo.