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ENTREVISTA A MÁRIO NOGUEIRA

"Este processo de municipalização não resolve os problemas, agrava-os e cria novos problemas"

17 de novembro, 2014

A intenção do Governo de avançar com a municipalização do ensino está inscrita no guião da reforma do Estado. No país, serão duas dezenas de municípios os que, em enorme secretismo, estarão a negociar com o governo e próximos de assinar um contrato aceitando novas competências que vão do pré-escolar ao secundário e incluem, pela primeira vez, responsabilidades em matéria de ordem pedagógica e também na gestão de docentes. A FENPROF já manifestou publicamente o seu desacordo e Mário Nogueira exorta os professores a lutarem contra mais este atentado à Escola Pública e aos seus profissionais.

O governo pretende mesmo levar por diante um processo de municipalização da educação, ou estamos apenas perante mais uma experiência que não tem pernas para andar?

MN: Espero que não tenha, mas a intenção do governo é transferir para as câmaras municipais o maior número de competências, desde o pré-escolar ao ensino secundário. Essa intenção está expressa no guião sobre a reforma do Estado que foi apresentado pelo governo e se encontra em fase de concretização.

 Pouco se tem falado desse processo de municipalização. Estará assim tão adiantado?

MN: O governo e também as autarquias envolvidas têm tentado manter grande segredo em torno desta questão, só assim se compreendendo que ainda nem se conheçam os municípios todos que estão envolvidos. Costuma dizer-se que quem não deve não teme. Ora, neste processo, dá para perceber que o temor é imenso.

Quando a FENPROF, em conferência de imprensa, denunciou o que estava a acontecer, o ministro Poiares Maduro negou o que fora denunciado e acusou a Federação de impedir a realização de um debate sério. Que comentário merece esta acusação?

MN: Nenhum em particular. Em momentos anteriores, o ministro já demonstrara não ter qualquer pudor em negar o que para todos era evidente. A FENPROF não falou de cor. Fundamentou-se em documentos que obteve e depois de reunir com autarcas, dirigentes escolares e muitos professores, fez a denúncia. Basta ler os projetos de contrato e respetivos anexos para se compreender tudo o que está em causa.

E há algumas cláusulas dos contratos que sejam particularmente claras no que se pretende em relação, por exemplo aos docentes?

MN: Entre outras, acho que os professores deverão ler com muita atenção a cláusula 6, ponto 2. e) e f), a cláusula 7, número 4, e também a 17, números 2 e 3. Para uma leitura dirigida, que não dispensa a total, também são importantes a cláusula 10 (que estabelece que o contrato é para 5 anos, portanto a câmara estará a assinar um contrato que já compromete o futuro executivo) e ainda a 45, ponto 3 que dá para perceber o pouco peso que as escolas terão na comissão de acompanhamento quando chegar o momento de uma votação.

O Governo fala em descentralização. Isso é negativo?

MN: De forma alguma, só que isto é outra coisa. Trata-se de um processo de desresponsabilização do poder central que sacode a água para o capote do local. Como sabemos, tais processos nunca são acompanhados dos indispensáveis recursos, designadamente financeiros. Quanto mais se tem exigido das câmaras municipais, maiores têm sido os cortes orçamentais a que se têm sujeitado. Mas neste caso, não se trata apenas desse problema. Há competências que não deverão ser transferidas para as autarquias, designadamente as que se relacionam com questões de ordem pedagógica ou com a gestão de docentes, seja em que domínio for.

Alguns autarcas têm declarado não aceitar essas responsabilidades…

MN: É verdade, mas então devem passar das palavras aos atos e recusar liminarmente qualquer referência a essas matérias no texto de contrato que o governo pretende assinar com as câmaras municipais. É que, estando no contrato, o mesmo refere que se as câmaras não cumprirem, o MEC poderá substituí-las.

E são muitas, por exemplo, as competências que se pretendem atribuir às câmaras municipais?

MN: Várias. Desde logo a possibilidade de as câmaras poderem contratar docentes para os chamados projetos locais ou para a componente local do currículo, podendo atingir ¼ do total de professores; também se prevê a possibilidade de gestão da colocação dos docentes dentro da área do município, como se os docentes pertencessem a quadros concelhios, o que não é verdade; e, tão ou mais grave do que os aspetos antes referidos, o MEC pretende pagar às câmaras a redução de docentes, atribuindo-lhes uma verba da ordem dos 13.600 euros “por cabeça”. É repugnante esta proposta através da qual o MEC pretende que as câmaras reduzam o número de professores relativamente aos que o próprio MEC, usando critérios já muito redutores, considera adequados. Nunca se viu coisa assim.

Podes concretizar?

MN: Sim, vejamos o exemplo de Oeiras. Para este, como para os outros concelhos em que pretende avançar com o processo, o MEC – o governo, bem vistas as coisas –, através do número 2 da cláusula 41.º do contrato, estabelece as normas para atingir o número estimado ou expectável de docentes para o concelho. Os fatores que considera são: horas impostas pelo currículo, média de horas usadas para apoios, média de horas necessárias para tarefas de gestão e aplicação do artigo 79.º do ECD (reduções por antiguidade)…

Mas aplica a mesma fórmula de cálculo para todos os agrupamentos e escolas do concelho?

MN: Sim, aplica-a a todos os agrupamentos ou escolas não agrupadas do concelho, o que significa que o cálculo é feito de igual forma para uma escola situada numa zona residencial de classe média, como para outra num bairro que apresente problemas de elevada complexidade social.

E há grandes diferenças entre escolas, após a aplicação dessa fórmula?

MN: É evidente, os desvios, de escola para escola ou agrupamento para agrupamento, são grandes. Por exemplo, no caso de Oeiras temos um diferencial de 0,2% para um agrupamento, mas há uma escola que se desvia 52,3%. Pelo meio, ficam diferenciais entre os 6 e os 14%, como se pode confirmar pelo anexo VII ao contrato.

Pelo que se conhece, qual a situação global desse concelho?

MN: Deveria, segundo os critérios restritivos do MEC, ter 1.435,5 docentes, mas tem 1.563,5. O diferencial é de 8,9%. Por sair do chamado “intervalo de tolerância”, que é de 5%, uma comissão de acompanhamento deverá proceder a uma análise detalhada da situação e emitir um parecer…

E como pode a Câmara Municipal ganhar dinheiro com a situação? Cortando os professores a mais, tendo em conta os estimados?

MN: Não. Já era mau se fosse assim, pois os professores existentes correspondem às necessidades atuais das escolas e agrupamentos. Mas o MEC paga é a quem, alcançado o número considerado “estimado” ou “expectável”, conseguir reduzir ainda mais o número de professores.

Mas isso dará uma fortíssima redução que poderá ser bem superior a 5%?

MN: Pois pode. O MEC retira do número de docentes existentes os que correspondem a EFI (colocados por crédito de horas, que são apenas 1,8 horários), e conclui que o concelho tem 126,1 docentes a mais do que o expectável ou estimado. Essa é a primeira redução a fazer, mas esta não é paga.

E a partir daí…

MN: A partir daí é que a Câmara Municipal começará a ganhar dinheiro, tendo de, para isso, cortar até 5% dos que passaram a existir. Neste caso, tendo em conta os 1.435,5, seria um corte de 71,7 docentes…

Uma redução bem superior a 5%?

MN: Sim. 5% são os tais 71,7 (5%), mas tendo em conta que para aí chegar houve que cortar os 126,1 iniciais, estamos a falar num verdadeiro “abate” de 197,8 horários que correspondem a outros tantos docentes. Ou seja, tendo em conta o ponto de partida, é uma redução de 12,65%!

 Neste caso concreto de Oeiras, quanto poderia ganhar a Câmara se entrasse nesse “negócio” do “abate” de horários de trabalho?

MN: Perto de um milhão de euros. O governo paga 13.594,71 euros por docente (50% de 27.189,42 euros, valor correspondente a salário anual de docente do índice 167, como refere o número 3, alínea a), da cláusula 42.º do contrato). Se fosse atingido o limite dos 5%, a Câmara receberia 974.740,70 euros!

 E como conseguiriam as Câmaras Municipais obter esta redução?

MN: Da pior forma. Levando as escolas a tomar medidas que interfiram na organização dos horários dos docentes e também na constituição de turmas, desrespeitando número de alunos por turma, designadamente quando há alunos com NEE, mas não só, gerindo os professores dos vários agrupamentos e escolas, fazendo-os circular como se fossem professores de quadros municipais e não de escola ou agrupamento, e considerando, quando der jeito, os colégios privados em pé de igualdade com as escolas públicas, constituindo uma alegada rede concelhia de serviço público. Em passado recente, já houve quem tentasse fazer isso. Lembro-me de Leiria.

Sabe-se exatamente em que concelhos este processo está a ser organizado para arrancar?

MN: As coisas têm sido feitas em grande segredo e só aos poucos se vai conhecendo alguma coisa. Tanto quanto se sabe, serão vinte os municípios envolvidos, embora não se conheçam todos os que serão. Segundo se tem falado, andarão em reuniões e negociações as câmaras municipais de Famalicão, Matosinhos, Oliveira de Azeméis, Águeda, Óbidos, Oeiras, Maia, Oliveira do Bairro, Batalha, Abrantes e Cascais… Faltam nove, já se falando de algumas delas, mas não temos confirmado.

Por último, que pode ser feito para contrariar tudo isto?

MN: Tomar posição e lutar. É importante que as escolas, através dos seus conselhos gerais e outros órgãos contestem o processo, exigindo informação precisa sobre o que está a ser negociado, exigindo conhecer o projeto de contrato e seus anexos e aprovando posições que contrariem tudo o que, em sua opinião, for negativo. É necessário também assinar a petição que a FENPROF está a promover para que seja entregue na Assembleia da República, ao governo e às câmaras envolvidas. Neste caso, é obrigação de todos os professores entrarem na contestação e não apenas os que trabalham naqueles vinte concelhos, pois a intenção do MEC é generalizar. É preciso, por fim, que o protesto se torne bem audível e se mediatize. Com reuniões, concentrações, cordões humanos ou vigílias, para já nos concelhos que estão em vias de entrar na experiência, mas este é um problema de todos os professores. Como tal, há que começar a pensar em algo mais que trave o que estão a querer impor à Educação. É que este processo de municipalização não resolve os problemas. Agrava-os e cria novos problemas.