JF Online julho 2023
CONFERÊNCIA INTERNACIONAL

Valorizar a Docência, Dar Rosto ao Futuro

30 de junho, 2023

No último número do JF, foram sintetizadas algumas das intervenções apresentadas na conferência internacional promovida pela FENPROF no âmbito do seu 40.º aniversário. Por limitação de espaço, não foi possível nessa ocasião integrar a reflexão de três dos seis convidados internacionais. Atendendo à circunstância de este número da revista ser virtual, optou-se pela divulgação conjunta dos seis testemunhos, permitindo uma visão integradora dos diferentes contributos.

De cruzamento de olhares sobre diferentes realidades, é fácil constatar que a falta de atratividade da docência nos vários países decorre de fatores comuns: subfinanciamento do setor; baixa remuneração; horários sobrecarregados; turmas demasiado grandes; contratos temporários; controlo sobre a profissão; burn out. Contudo, cada país tem as suas especificidades. É disso exemplo o processo de municipalização na Suécia, cujo impacto na profissão docente e no sistema escolar merece um tratamento mais aprofundado, no quadro do processo em curso em Portugal de transferência de competências para as autarquias. Por esse motivo, o testemunho de Sara Svanlund é apresentado de forma mais detalhada no final das sínteses das restantes intervenções (gravações em vídeo disponíveis na página da FENPROF).

Haldis Holst, Secretária-Geral Adjunta da Internacional da Educação (IE), considerando que a crescente escassez global de professores está a ameaçar o direito à educação (segundo a UNESCO, são necessários 69 milhões de docentes a nível mundial), sublinhou que as causas do problema são conhecidas e a solução também é clara: aumentar o financiamento da educação pública e investir nos professores. Isso implica “garantir direitos laborais e condições de trabalho decentes; confiar e respeitar os professores e os seus saberes pedagógicos; investir na sua formação e desenvolvimento profissional; envolver os sindicatos dos professores na decisão política, através do diálogo social”.

Refletindo sobre a natureza da profissão docente e os desafios que enfrenta, HH apontou 6 imperativos para a docência à escala mundial: qualidade; equidade, diversidade e inclusão; humanidade; sustentabilidade; dignidade; inovação e liderança.

Referindo-se às razões da luta dos professores portugueses, HH sublinhou que elas se enquadram na mensagem central da campanha da IE Pela Escola Pública, Investir na Educação – os educadores de todo o mundo exigem um financiamento adequado da educação pública e juntam-se para: i) criar o futuro que os alunos merecem; ii) garantir o salário, as condições de trabalho e o respeito que os professores e restantes trabalhadores da educação merecem.

Mary Bousted, secretária geral do NEU, referiu a elevada taxa de abandono da profissão em Inglaterra (1 em cada 3 professores abandona a profissão nos primeiros 5 anos), insurgindo-se contra as más condições de exercício da profissão, nomeadamente o facto de o número de alunos por turma ser o mais elevado da OCDE (só comparável com o México e a Colômbia). “E é suposto sermos um país desenvolvido, e o 6.º mais rico do mundo!”.

Deu ainda nota do processo de luta que o NEU está a travar, num contexto de fortes restrições ao exercício do direito à greve – no Reino Unido, a convocação de uma greve tem de ser precedida de consulta aos sócios, via correio postal, sendo necessário que respondam pelo menos metade dos sócios e destes 80% votem Sim. Acresce que a consulta é válida apenas por seis meses. Apesar deste contexto adverso, o NEU conseguiu avançar com a greve, com uma estratégia de organização e comunicação centrada numa ligação permanente aos delegados sindicais e tirando partido das tecnologias digitais. E apesar de uma comunicação social hostil, conseguiu fazer passar a mensagem de que os professores não estão apenas a lutar pela sua profissão, mas também pela qualidade da educação dos seus alunos. 

Trudy Kerperien, membro do Conselho Nacional do AOb, referiu que nos Países Baixos 1 em cada 3 professores do ensino secundário abandona a profissão nos primeiros 5 anos e que em 2022, a percentagem de professores em falta nas escolas das grandes cidades com mais alunos vulneráveis era de 18%. Entre as causas do problema contam-se uma elevada diferença salarial em relação a outras profissões com formação de alto nível (15-30%), mesmo no sector público, um horário letivo superior em 17% ao da média da OCDE, um maior número de alunos por turma e a introdução forçada da educação inclusiva (sem formação adequada, tempo e apoio extra ou edifícios adaptados). A isto junta-se um sistema educativo demasiado descentralizado, com implicações ao nível do subfinanciamento (o que leva os empregadores a gastar o menos possível nos salários para ficarem com dinheiro para manutenção e outras despesas) e da falta de autonomia dos professores, sujeitos a todo o tipo de mecanismos de controlo e a burn-out.

Depois de longos anos de luta sindical, em 2022 foi possível um acordo com o governo que equiparou os salários dos docentes do ensino primário aos do ensino secundário. “Aprendemos que vale a pena ser persistente e nunca desistir”.

Para Susan Flocken, Diretora do Comité Sindical Europeu da Educação (CSEE), a profissão docente é a mais importante na sociedade, tendo de ser valorizada e as condições do seu exercício melhoradas. Afirmado que nenhum país se pode dar ao luxo de perder os seus professores, destacou o exemplo da Finlândia, onde a profissão é valorizada e reconhecida e existe um diálogo social construtivo. Em sentido inverso, referiu o caso da Hungria, que não tem sequer ministério da educação, apontando a ampla mobilização social conseguida pelos sindicatos húngaros como um exemplo de que as alianças são uma mais valia para a luta dos professores.

Apelando à ação conjunta dos sindicatos europeus, apresentou a campanha do CSEE em torno da atratividade da profissão docente, com 10 exigências chave: autonomia profissional; salários competitivos e decentes; apoios no início da carreira para garantir estabilidade; desenvolvimentos profissionais de qualidade; incorporar igualdade e diversidade; condições de trabalho seguras e protegidas; equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada; uma cultura de escola democrática; diálogo social; valorizar, respeitar e capacitar a profissão docente.

Howard Stevenson, professor na Universidade de Nottingham, começou por referir que vivemos numa era de crises – crise económica, crise de saúde pública, crise geopolítica, crise ambiental, crise democrática –, e que cada uma delas entra nas salas de aula, de alguma forma, todos os dias, tornando o ensino um trabalho ainda mais difícil.

Acrescentou que uma outra crise global – a da contratação de professores – corre o risco de se tornar numa crise duradoura, a menos que uma ação radical e ambiciosa responda a três fatores importantes: i) remuneração; ii) trabalho; iii) condições de trabalho.

Se a remuneração sempre foi um problema, houve alterações quer na natureza do trabalho (mais burocrático e menos gratificante), quer nas condições de trabalho (com a sobrecarga de trabalho a prejudicar o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal). Isso faz com que o ensino tenha perdido atratividade face a outras ocupações noutros setores de atividade, que hoje oferecem melhores condições e formas mais flexíveis de trabalho, nomeadamente a possibilidade de trabalhar a partir de casa.

A situação só será ultrapassada se houver vontade política para aumentar os salários, elevar o nível de confiança na profissão, recriando espaços de criatividade e autonomia profissional, e melhorar as condições de trabalho, tornando-as compensadoras quando comparadas com outras profissões.

Nenhuma destas mudanças é possível sem a ação determinada dos sindicatos. Isso implica (re)construirmos as nossas organizações. O livro ‘Lessons in organising’, de que é co-autor, aponta três caminhos: i) organizar no local de trabalho; ii) organizar em torno de ideias; iii) organizar os organizadores.

Lembrando uma expressão usada pelos sindicatos britânicos -– “O passado que herdamos, o futuro que construímos” -–, HS reafirmou que vivemos tempos difíceis e por isso precisamos de sindicatos fortes e unidos – para bem dos professores, dos alunos e da democracia.

 

MUNICIPALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NA SUÉCIA – UM EXEMPLO A NÃO SEGUIR

Sara Svanlund, Vice-Presidente do Sindicato dos Professores da Suécia, falou da perda de atratividade da profissão docente no seu país, um problema que, à semelhança do que aconteceu noutros países, está associado a uma ”baixa evolução salarial e a condições de trabalho menos boas”, mas que, no caso da Suécia, decorre também da reforma de descentralização/municipalização levada a cabo no início da década de 1990 – uma reforma que manteve no Estado central apenas a responsabilidade pela universidade e pelos institutos universitários, transferindo para os municípios e para as escolas independentes (”free schools”) a responsabilidade pelos estabelecimentos da educação pré-escolar, ensino obrigatório e ensino secundário. Os municípios são também responsáveis pela educação de adultos, mas recorrem frequentemente a prestadores de ensino privados (empresas) para esse fim.

A introdução do sistema de livre escolha da escola e a reforma das escolas independentes levou ao aparecimento de um ”mercado escolar", com uma concorrência crescente entre as escolas municipais e as escolas independentes, especialmente nas grandes cidades. Atualmente, existem mais de 1500 escolas diferentes. A maior escola independente tem mais de 180 000 crianças e alunos. 

”O resultado foi um sistema escolar enfraquecido e fragmentado e a perda de autonomia dos professores”. Após 1991, a maior parte da regulamentação estatal do trabalho, dos salários e do desenvolvimento profissional dos professores terminou. 290 municípios assumiram a responsabilidade. A evolução salarial dos professores diminuiu em comparação com profissões de nível de qualificação semelhante. A autonomia dos professores foi limitada e as condições de trabalho pioraram devido ao modelo de governação da Nova Gestão Pública e às deficiências na afectação de recursos. Verificou-se ainda inadequação das capacidades e da responsabilização de muitos prestadores de ensino. Tudo isto fez aumentar a escassez de professores qualificados, a segregação escolar e a concorrência no mercado escolar com consequências ao nível da diminuição dos resultados da Suécia nos testes internacionais (Pisa, TIMMS).

 

O ESTADO TENTA RECUPERAR O CONTROLO

Face à constatação da falência da reforma, nos ultimos 15-20 anos, o Estado iniciou uma série de reformas para recuperar o controlo e reforçar a profissão docente. Da lista de algumas das mais importantes implementadas nos últimos 15-20 anos, detacam-se: novos programas de formação inicial de professores (2011); certificação de professores e educadores de infância (2011); novas carreiras para os professores (2013); aumento do salário dos professores (2016); inquérito estatal abrangente sobre uma maior responsabilidade do governo central pelas escolas (2022).

A maioria destas reformas, especialmente a certificação dos professores e dos educadores de infância, foi bem acolhida pelos sindicatos de professores. Mas a reforma ainda não foi totalmente implementada, o que significa que as escolas continuam a empregar professores não qualificados. Em 2021, apenas 72% dos professores das escolas municipais e 64% dos professores das escolas independentes no ensino obrigatório estavam certificados.

Sara Svanlund concluiu que ”As reformas não alteraram os problemas fundamentais de um sistema escolar demasiado descentralizado, com uma cadeia de comando pouco clara, uma concorrência negativa entre escolas e o problema da segregação escolar.”

 

PROPOSTAS DO SINDICATO DOS PROFESSORES SUECOS

- Maior responsabilidade do Estado, tanto no plano financeiro como da regulação do sistema, para garantir a equidade e a qualidade. O objectivo é que o Estado assuma completamente o controlo, ainda que admitindo um processo por etapas.

- Abolição do mercado escolar, incluindo a possibilidade de as escolas gratuitas financiadas pelo sector público obterem lucros.

- Maior autonomia para a profissão docente com o apoio do Estado (incluindo o Desenvolvimento Profissional Contínuo).

- Melhores condições de trabalho e evolução salarial através de uma maior regulamentação nacional e de melhores acordos colectivos.