JF Online, março 2024 Financiamento
OE 2024 - Ensino Superior e Ciência

Um orçamento desfasado das necessidades de desenvolvimento do Ensino Superior e da Ciência e que o futuro governo deve melhorar

07 de março, 2024

O Orçamento do Estado (OE) de 2024 para a área governativa da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (CTES) ficou, mais uma vez, aquém das necessidades do país e das Instituições de Ensino Superior (IES) e de Ciência. Este governo, à semelhança do que aconteceu em anos anteriores com os governos de António Costa, teima em querer fazer passar para a opinião pública que se vive um novo ciclo de prosperidade no Ensino Superior e na Ciência, o que está longe de ser realista. Vejamos, pois, o impacto de algumas das principais medidas anunciadas para o Ensino Superior e a Ciência.

1. Financiamento da Investigação

O Governo anunciou que o orçamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) teve um aumento de 5% no OE 2024, por via de receitas provenientes de impostos. Contudo, a verdade é que o aumento global, somados os contributos das várias fontes, é somente de 2,5% (17 milhões de euros), o que fica muito abaixo do valor da inflação. Quer isto dizer que os investigadores, dado o diferencial do aumento para a inflação, terão em 2024 ainda menos capacidade para comprar, por exemplo, reagentes ou equipamentos, comprometendo, assim, a possibilidade de execução dos seus projetos de investigação.

Mais alardeou a Ministra Elvira Fortunato que a percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) dedicada à investigação e desenvolvimento atingirá 3% em 2030. Alguém acredita que seja possível dar o salto de 1,71% em 2023 para 3% em 2030 (segmento a vermelho no Gráfico 1) que a Ministra anuncia?

Gráfico 1 - Despesas em atividades de investigação e desenvolvimento (I&D) em % do PIB (PORDATA).

2. Reforço do financiamento às Instituições de Ensino Superior

O OE 2024 consagra uma dotação de 1435,1 milhões de euros para as IES, a distribuir de acordo com um novo modelo de financiamento que, importa denunciar, ainda não foi apresentado nem negociado com os sindicatos. Este valor corresponde a um aumento de 10,7% face ao valor previsto no orçamento do ano anterior, que foi de 1298,8 milhões de euros. No entanto, durante o ano de 2023, as IES viram o seu financiamento reforçado em 60,7 milhões de euros, ao abrigo da compensação das propinas, e com mais 5,8 milhões de euros para fazer face aos encargos resultantes do PREVPAP, cumprindo-se assim uma importante regra do Contrato de Legislatura que o governo firmou com as IES: o aumento das dotações do OE para as IES para compensar o aumento de encargos decorrentes de alterações legislativas com impacto financeiro nas suas tesourarias. Portanto, o aumento do orçamento relativamente a 2023 não é de 138,3 milhões, conforme o Governo informou, mas somente de 69,8, ou seja, 5,1%, bastante abaixo da taxa de inflação[1]. Ou seja, o montante orçamentado, para além de não cobrir a taxa de inflação, continua a situar Portugal muito abaixo da média europeia e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) quanto ao financiamento por estudante do ensino superior em termos de PIB, conforme se mostra no Gráfico 2. O gasto médio por estudante em Portugal é, assim, de cerca de 12000 dólares dos EUA (USD), em Espanha de 14000 USD, enquanto a média dos países da OCDE e da Europa se situa nos 18000 USD. De destacar ainda que o financiamento previsto para 2024 está ao nível de 1990!

Gráfico 2 - Evolução do financiamento médio por estudante do ensino superior (dados de Education at Glance 2023, https://www.oecd.org/education/education-at-a-glance)

O Gráfico 2 também evidencia o continuado subfinanciamento crónico da Ciência e do Ensino Superior, o que comprovadamente tem comprometido a missão pública das IES e de Investigação Científica e, em última análise, o próprio desenvolvimento de Portugal.

3. Ação Social Escolar

A ação social viu, no OE 2024, a sua dotação aumentar de 196,8 milhões para 211,1 milhões de euros, ou seja, um aumento de 7,3%. Contudo, é preocupante o peso dos Fundos Comunitários nesta rubrica, que este ano representam 66,8% das verbas disponibilizadas (141,1 milhões de euros). Esta dependência, a continuar, poderá, num futuro próximo, comprometer a efetiva implementação das muito necessárias medidas de ação social por uma eventual redução dos Fundos Comunitários.

4. Alojamento

O custo do alojamento dos estudantes constitui, cada vez mais, uma grave barreira à frequência do Ensino Superior. Em 2019, o Ministro Manuel Heitor garantia que o Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior (PNAES) tinha por objetivo “duplicar a oferta de alojamento para estudantes do ensino superior na próxima década [...] criando no período 2019-2022 cerca de 12 mil novas camas”. Chegados a 2023, o total de camas disponíveis situa-se nas mesmas 15000 que já existiam em 2019. A Ministra Elvira Fortunato anunciou agora um novo plano que promete cerca de 27000 camas até 2026. Se se tiver em atenção que, no momento atual, o número total de estudantes deslocados é na ordem dos 120000, o número de camas existentes é manifestamente insuficiente, mesmo que o objetivo fosse garantir apenas uma cama a todos os estudantes deslocados do primeiro ciclo (cerca de 74000).

5. Frequência do Ensino Superior

Não se vislumbra como é que o governo pretende garantir que, em 2030, seis em cada dez jovens com 20 anos estarão a frequentar o Ensino Superior. O número de jovens com 20 anos em 2023 em Portugal era 108654 e a projeção do INE para 2030 é de 105807 jovens com essa idade. Ou seja, para garantir uma frequência de 60% desta população, seria necessário que 63484 jovens estivessem inscritos numa das IES. Para conseguir esse objetivo será também necessário que as IES tenham condições para acolher esses jovens, o que não parece ser possível sem maior financiamento. Mais, atendendo ao número de vagas postas no Concurso Nacional de Acesso (CNA) ao Ensino Superior público nos últimos anos (50852 em 2017, 50860 em 2018, 56121 em 2019, 55307 em 2020 e 54641 em 2021), para atingir esse número seria necessário que o número de vagas aumentasse em cada ano em cerca de 1000 lugares.

6. Precariedade

A precariedade no setor do Ensino Superior e Investigação tem duas vertentes dramáticas: o abuso da figura de docente convidado e a generalizada precariedade dos investigadores. O abuso da contratação de docentes convidados para assegurar o funcionamento de unidades curriculares básicas faz com que estes docentes sejam miseravelmente pagos (cerca de 1/3 do salário de um docente de carreira que lecione o mesmo número de horas letivas semanais), podendo-se afirmar que as diversas IES praticam uma forma de exploração inaceitável segundo os mais básicos direitos, nomeadamente, de trabalho igual salário igual[2]. No que concerne aos investigadores, a Ministra Elvira Fortunato criou, com pompa e circunstância, o programa “FCT Tenure” com o objetivo de possibilitar a contratação para a carreira (de investigador ou docente) um total de 1400 investigadores até 2025. Contudo, existem atualmente cerca de 9000 investigadores precários no Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), o que faz com que o programa proposto não seja uma solução para a grande maioria desses investigadores e, por essa razão, é de um grande cinismo afirmar-se que “não queremos estar daqui a mais seis anos a lidar com este problema entre mãos” (Público de 7 de julho de 2023), tanto mais que o programa não terá qualquer sustentabilidade dada a oposição do CRUP[3] e as reservas do Conselho de Laboratórios Associados (CLA). O anúncio de uma verba específica de 20 milhões de euros no OE 2024 para estímulo à contratação para a carreira de investigadores (MCTES – 8 de janeiro de 2024) não elimina as reservas manifestadas por Reitores e CLA, dado que não estão garantidas dotações para o mesmo propósito nos OE dos anos vindouros.

Em resumo, o Orçamento do Estado de 2024 para a área governativa da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, pela sua incapacidade de responder aos principais problemas do Ensino Superior e da Investigação, expõe não só a ausência de uma estratégia de desenvolvimento como também a falta de peso político da Ministra Elvira Fortunato no Governo. Mais, evidencia que a resolução dos principais problemas que afetam docentes e investigadores ficou adiada por dois anos, o tempo de vigência desta legislatura. As expetativas sobre o futuro governo são portanto elevadas, não só quanto à sua estratégia para o setor mas também sobre a sua capacidade para resolver os problemas aqui apresentados.

 

O Departamento do Ensino Superior e Investigação da FENPROF

 


[1] Ver página 22 do documento “Orçamento de Estado 2024 – Nota Explicativa – Ciência, Tecnologia e Ensino Superior” entregue pelo Governo na Assembleia da República, https://shorturl.at/aswxO

[2] Os Estatutos das carreiras, ao criarem a possibilidade da contratação de docentes convidados a tempos reduzidos, visavam, com esta alternativa, possibilitar que os alunos fossem expostos aos conhecimentos e experiência de profissionais de reconhecido mérito. Se bem que este seja o caso em muitas escolas, e.g. escolas de saúde, outros casos há em que as IES recorrem a docentes convidados para assegurarem a lecionação de unidades curriculares básicas. A razão do abuso desta situação decorre do facto de estes docentes convidados serem contratados em percentagens reduzidas, tendo por base um horário letivo semanal de 14, 16 ou mesmo 20 horas, quando o horário semanal máximo de um docente do universitário é de 9 horas e o de um docente do politécnico é de 12 horas. Esta situação, ilegal como reconheceu a Provedoria de Justiça, traduz-se em que, no limite, um docente convidado com um contrato a 50% assegura a mesma carga letiva de um docente de carreira, o que se traduz num salário que ronda apenas um terço do do professor de carreira para o mesmo número de horas letivas (dado que o docente convidado não exerce funções em regime de exclusividade).

[3] O CRUP opôs-se a esta medida afirmando que “se a FCT considera que não pode comprometer o seu orçamento com a contratação de investigadores por tempo indeterminado, apesar de dispor de verbas para isso no seu orçamento, às instituições científicas assistem as mesmas razões, com a diferença de não disporem de verbas para essa finalidade” (Reitores recusam encargo com contratação de 1400 doutorados sem reforço financeiro, Lusa, Público de 26 de julho de 2023).