JF Online, março 2024
Entrevista

"Também hoje precisamos de coragem!"

26 de março, 2024

JOSÉ PAULO OLIVEIRA (Jornalista)

"Alguns desses professores que arrancaram com o trabalho de mobilização e divulgação dos Grupos de Estudo, entre 1970 e 1974, viveram as greves académicas de 1962, 1965 e 1969. Sim, pode-se dizer: eram pessoas determinadas. E corajosas, também. Medo? Claro que havia algum receio, sabíamos que tudo podia acontecer: dum processo disciplinar à exclusão e à prisão... Vivíamos em ditadura!... Mas era preciso reagir e defender a classe". Fomos ao encontro de Maria Manuel Calvet Ricardo, uma das fundadoras dos Grupos de Estudo, lançado nos últimos anos da ditadura e que estão na base da estrutura sindical docente dos nossos dias. "Quando vejo o que se passa hoje, num clima de retrocesso, face ao que obtivemos a partir do 25 de Abril, recordo as nossas preocupações de 1969 e chego à conclusão que também hoje é preciso coragem!"

 

JF - Como nasceram os Grupos de Estudo?

MMCR - A criação dos Grupos de Estudo dos Professores Eventuais e Provisórios, projeto que já vinha a ser pensado desde 1969 (1) , está intimamente relacionada com a necessidade e a vontade de resolver os problemas dos professores provisórios/eventuais do ensino preparatório e do ensino secundário (técnico e liceal). Refira-se que cerca de 80% dos professores portugueses eram provisórios (ou eventuais, na designação usada nos liceus), o que implicava não ganharem nas férias, durante cerca de 3 meses. Recebiam o último ordenado em julho. Em outubro, se as coisas corressem bem, voltavam às escolas e depois o primeiro salário só se recebia em novembro... Os Grupos de Estudo dos Professores Eventuais e Provisórios (GEPEeP), depois, Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário (GEPDES), e, mais tarde, Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário e Preparatório (GEPDESeP), dinamizaram uma expressiva luta por um estatuto profissional, pedagógico e cívico digno.

 

JF - A primeira reunião formal dos Grupos de Estudo ultrapassou as vossas expetativas?

MMCR - Sem dúvida... Pedimos a cedência de instalações ao diretor da Escola Francisco Arruda, em Lisboa, e era a partir dali que realizávamos o nosso trabalho de mobilização, nomeadamente em reuniões noturnas. No dia 27 de maio o ginásio da Francisco Arruda tinha cerca de 500 lugares sentados, mas apareceram muitos mais. A Mesa era constituída por Salvado Sampaio, Calvet Magalhães (diretor da escola), Martinho Madaleno, Elsa Oliveira e eu própria. Foi aprovado um abaixo-assinado pedindo uma audiência ao ministro da época (Veiga Simão) e o pagamento das "férias".

 

JF - Além da reflexão havia uma postura de mobilização, ação e luta...

MMCR - Sem dúvida. Os Grupos de Estudo assumiram a luta pela dignificação da classe e pela liberdade de associação, enfrentando as denúncias, as perseguições, as ameaças de prisão e a perda de direitos. Era uma luta reivindicativa no plano laboral, social e político. Multiplicaram comunicados e circulares, difundiram abaixo-assinados, promoveram colóquios, publicaram uma revista, editaram livros e anunciaram as suas iniciativas na imprensa nacional e local, num regime de censura. Os GEPDES foram uma organização nacional, estruturada em delegações regionais e com representantes em todas as escolas, que levou o Governo a classificá-la, em fevereiro de 1974 (famigerado despacho 9), como uma organização secreta, punível pela lei... A sua influência entre os professores permite a criação de sindicatos democráticos logo após o 25 de Abril de 1974, num modelo organizativo que ainda hoje existe com a FENPROF e os seus Sindicatos regionais. Mas antes, o ambiente estava a complicar-se em termos de repressão: um livro de António Teodoro tinha sido apreendido, o "Notícias da Amadora" saqueado e depois de um acerto "adormecimento" a PIDE/DGS começava a mexer-se... Se não fosse o 25 de Abril, muitos professores teriam ido parar à prisão...

 

(1) Ana Maria Malheiro do Vale, Elsa Oliveira, Ferreira Alves e a nossa entrevistada (Maria Manuel Calvet Ricardo) foram os 4 professores que em 1969 tiveram a ideia de formar os Grupos de Estudo. Não se conformaram com as injustiças que se abatiam sobre os professores eventuais e provisórios. A mobilização ia começar... 


A mobilização dos docentes e as suas conquistas antes do 25 de Abril foram lideradas por um grupo vasto de jovens professores/as que, durante 4 anos, entre a primeira reunião da Francisco de Arruda a 27 de maio de 1970 e o 25 de abril de 1974, acreditaram que a sua ação era fundamental para a valorização da profissão docente e a construção de uma escola democrática, num Portugal pacífico e democrático, respeitador do direitos dos povos à autodeterminação e independência.

Hoje, no 50.º aniversário da Revolução de Abril, quando se verificam evidentes retrocessos na condição docente (precariedade, formação, salários), não é legítimo o esquecimento ou apagamento dessas lutas e conquistas democráticas. São elas que darão seguramente força às jovens gerações de professores para voltarem a conquistar o direito a terem uma profissão valorizada socialmente, capaz de dar ‘rosto ao futuro’ do Portugal democrático dos próximos 50 anos.