Autonomia
Regime de autonomia universitária e dos institutos politécnicos públicos

Parecer do Conselho Nacional de Educação sobre a Proposta de Lei nº 79/IX

03 de novembro, 2004

1. Introdução

A apreciação da proposta de lei sobre autonomia, organização e funcionamento dos estabelecimentos de Ensino Superior não pode desligar-se do pacote legislativo em que se insere. É um elemento, aliás, particularmente importante, desse conjunto, através do qual o Governo pretende alterar profundamente o sistema do Ensino Superior.

Convirá salientar, desde já, que em Portugal, como de resto noutros países, mormente no quadro da União Europeia, nos deparamos com uma ?inflação legislativa?, que o poder político não trava, antes incentiva, quantas vezes mesmo se publicando novas leis sem que as anteriores tenham sido cumpridamente executadas. Sofreremos mais de excesso de leis que de falta delas, excesso esse que se revela não só no número dos diplomas publicados, como também no seu objecto e no seu conteúdo.

Por outro lado, a legislação é, não raras vezes, elaborada sem uma adequada metodologia e sem a conveniente ponderação e debate, não logrando, frequentemente, a mais correcta formulação.

Daí a necessidade, em que se insiste cada vez mais, da simplificação e melhoria da legislação. Carecemos de menos leis e de melhores leis.

A melhoria da qualidade legislativa deve constituir uma preocupação fundamental do Estado Democrático, tanto mais premente quanto mais avançada se pretender a democracia, sobretudo se ela implicar, como entre nós constitucionalmente sucede, uma democracia participativa, a qual acarreta relevantes alterações nos paradigmas do Estado e da Administração e nos modelos de realização do Direito.

Um dos traços mais frisantes dessa renovação do Direito encontra-se na progressiva valorização da sua aplicação ou realização concreta, correlativamente com uma certa relativização da lei. O Direito cada vez menos se entende como um sistema que sai pronto e acabado das mãos do legislador, para cada vez mais aparecer como algo a fazer em concreto. À tarefa do legislador junta-se a tarefa autónoma e decisiva do julgador ou aplicador, ?súbdito? da lei, mas ao mesmo tempo ?senhor? dela, na medida em que ajuda a vitalizá-la, a descobrir o seu profundo sentido, a tirar dela todas as suas virtualidades, contribuindo, por assim dizer, para ?fazer a lei?, para ?fazer o direito?. Esta postura coenvolve, como bem se vê, uma efectiva flexibilização jurídica, a par de um certo recuo do direito estadual em proveito de um ?direito negociado?, em que haverá lugar destacado para um reforço da contratualização e dos seus mecanismos. O que tudo supõe, em último termo, uma sociedade mais consensual ou contratualizada do que autoritária ou impositiva.

Num tal ambiente jurídico e sócio-político, bem se compreende que a feitura das leis seja objecto de crescente atenção, tanto no plano da teoria da legislação como no da chamada ?legística?, quer material quer formal, curando-se especialmente da produção normativa e, nesta, dos valores, órgãos, critérios, procedimentos e técnicas da feitura legislativa.

Seria despropositado aprofundar estas questões aqui. Mas não virá a despropósito, bem pelo contrário, perguntar se na elaboração do pacote legislativo sobre o ensino superior e, no caso que agora especialmente nos ocupa, na preparação e apresentação da proposta de Lei de Autonomia do Ensino Superior, terá havido a percepção e adequada ponderação das questões a que acabamos de aludir, e da importância da legislação na estratégia do desenvolvimento social.

A resposta, a nosso ver, infelizmente não é animadora. Adiante veremos porquê. Mas já se adiantará, no plano estritamente metodológico, que uma vez tornado público o texto da proposta governamental ? cujas formulações se afiguram, algumas vezes, prolixas e excessivamente regulamentadoras ?, houve um défice quanto à amplitude das consultas e dos debates e ao amadurecimento das soluções, apesar das valiosas intervenções e publicações que ocorreram antes dessa data. Isso em boa parte explica as críticas, institucionais e pessoais, entretanto surgidas e que apontam para a necessidade de introduzir profundas alterações na proposta, sem embargo dos méritos que inegavelmente tem.

É de esperar, por isso, que, na Assembleia da República, e mesmo fora dela, se continue o tratamento que uma temática tão relevante e sensível inquestionavelmente requer. O tempo que nisso se gastar ganhar-se-á na aceitabilidade do diploma, com evidente vantagem no plano da sua eficácia e das condições de governabilidade, convindo não esquecer que a pretensa eficácia nem sempre coincide com uma autêntica eficiência.

Neste contexto, o CNE não se furtará às suas responsabilidades, alargando e aprofundando o debate sobre a matéria em causa. O presente Parecer não intenta ser mais do que um passo nesse sentido. Um passo dado numa direcção globalizante e claramente assumida como tal, mas que obviamente não dispensa outras apreciações, como aquelas que já surgiram no CNE, e que se juntam ao Parecer, atendendo à sua relevância.

2. A Autonomia: Independência e Responsabilidade

O desenvolvimento do Ensino Superior no Portugal democrático é, por certo, uma das páginas em que foi possível transformar mais profundamente a realidade do nosso país, das nossas regiões, das nossas gerações, durante o último quartel.

Da imensidade de dados estatísticos sempre invocáveis, bastará aqui referir que a probabilidade do jovem nascido em 1980 aceder ao Ensino Superior foi dupla da daquele que nascera em 1960 e que a própria história recente de cidades e regiões, de Vila Real a Faro e da Guarda ao Funchal, ganhou novas dinâmicas, prosseguindo novos modelos de desenvolvimento, por virtude dos pólos de Ensino Superior aí criados e beneficiários de significativos investimentos, concretizados a partir de 1988.

Esta página foi escrita por aposta dos responsáveis pela Política do Ensino Superior, por empenhamento da Administração, mas, muito especialmente, pela potenciação dos valores da autonomia das instituições do Ensino Superior e consequente libertação de energias e dinamização de vontades e competências.

Ensino Superior que protagonizou - talvez melhor do que quaisquer outras organizações - a evolução, já referida anteriormente, de um Direito impositivo para um Direito contratualizado, fomentando e garantindo novas morfologias e novas dinâmicas societais, mais de acordo com os paradigmas da Democracia contemporânea.

O princípio da autonomia universitária, constitucionalmente consagrado e reafirmado em legislação ordinária na sua pluralidade ou nas suas diversas valências, corrobora a ideia de que ?a autonomia está hoje no centro do projecto democrático? e que dela se deve partir para formular ?uma interpretação nova e sólida da democracia?.

Mas a autonomia, no âmbito do Ensino Superior, surge, talvez antes do mais, como a libertação da esfera da Ciência, do Conhecimento, da Cultura, em relação ao poder político, já que pertencem à memória de muitos de nós os abusos e intromissões deste na vida das instituições do Ensino Superior, conquistando-se verdadeiramente, só a partir de Abril, o respeito devido à sua independência.

E é por este passado que se poderá dizer que a primeira necessidade sentida terá sido precisamente a da independência, que, embora relativa, não postula apenas a exclusão de intromissões indevidas mas também contém exigências importantes quanto às esferas decisórias, quer do Estado, quer das instituições. Ora, o não aprofundamento de tais condicionantes é fonte de equívocos continuados e bem ilustrados pela tentação recorrente do poder político de, ele próprio, não pela verificação de regras objectivas de conformidade, ou pela aplicação de exigências de avaliação externa, mas, muito simplesmente, por juízos casuísticos de apreciação de mérito ou oportunidade, assumir decisões do quotidiano institucional. Referimo-nos, designadamente, à problemática que tem vindo a surgir, desde o final da década passada, quanto à abertura, ao funcionamento ou ao encerramento de cursos.

Outrossim, o conceito de autonomia não implica apenas independência mas também responsabilidade. Responsabilidade do Estado face a todos os cidadãos a fim de dar cumprimento aos deveres constitucionais, responsabilidade das instituições face às populações que devem servir e face aos financiadores dos recursos que utilizam.

A responsabilidade do Estado implicará não apenas criar condições de desenvolvimento sustentável mas orientações globais e estratégias que harmonizem tal desenvolvimento com as exigências do bem comum, dever primeiro de quem exerce poder por força do sufrágio dos cidadãos.

Responsabilidade que também implica a informação e o esclarecimento prospectivo, a  fim de que todos aqueles que podem vir a usufruir dos benefícios do Ensino Superior o façam com opções esclarecidas e coerentes.

Responsabilidade que exige rigor e oportunidade em relação a todos os quadros normativos, de conformidade e de avaliação, e de controlo ex-ante e ex-post, evitando falhas de qualidade que geram prejuízos sociais graves, principalmente suportados pelos grupos sociais mais marginalizados face à própria sociedade, o que significaria estar o próprio Estado a ampliar e agudizar injustiças sociais e económicas.

O princípio da responsabilidade também demanda das Instituições a prossecução da missão de serviço aos seus beneficiários, colocando este valor acima da defesa dos interesses dos grupos sociais ou profissionais que as integram. E os serviços prestados por entidades que utilizam recursos públicos devem ser, cada vez mais, objecto do escrutínio rigoroso e integral da qualidade e do balanço ?custos-benefícios?

Compreende-se, assim, a prioridade que vem sendo dada na maioria dos países europeus à clarificação das relações entre Estado e instituições do Ensino Superior, e para o que, certamente, este projecto de diploma deve contribuir.

É à luz dos princípios apresentados que apreciamos a proposta de lei sobre autonomia das instituições do Ensino Superior.

3. As Políticas Públicas e o Ensino Superior

Os princípios já referidos da independência e da responsabilidade são postulados essenciais ao desenvolvimento das políticas públicas necessárias e apropriadas ao desenvolvimento da rede de instituições do Ensino Superior. Esta rede deve ser coerente, abranger o todo nacional e integrar-se no espaço da União Europeia.

Políticas públicas que devem ser marcadas pelo sentido estratégico, pela assunção da exigência da regulação e pela prática da contratualização.

Na verdade, é interessante observar que, nos países com melhores sistemas de Ensino Superior, são vastas e coerentes as políticas públicas que o orientam, mesmo em contextos políticos mais avessos ao intervencionismo estatal.

Tais políticas devem, em Portugal, adquirir níveis mais elevados de estabilidade e coerência, de integração e participação, a fim de que seja possível alcançar melhores padrões de especialização e coordenação interinstitucional, níveis mais elevados de qualidade e eficiência nos serviços prestados, padrões mais exigentes de excelência e internacionalização.

Mas tais políticas devem também evitar que persistam equívocos sobre a natureza das instituições do Ensino Superior, sobre o seu modelo de gestão e a sua governabilidade, sobre a sua capacidade de mudança e adaptação face aos novos desafios da União Europeia a que pertencemos ou aos novos acordos internacionais subscritos, sempre importantes para o futuro do Ensino Superior em Portugal.

4. A Natureza das Instituições do Ensino Superior

Teria sido desejável que a Lei da Autonomia das Universidades (Lei nº 108/88 de 24 Setembro) e a Lei relativa ao Ensino Politécnico (Lei nº 54/90 de 5 de Setembro) tivessem definido sem ambiguidades a natureza e os objectivos das instituições do Ensino Superior Público, mas infelizmente tal não aconteceu, nem acontece, em boa verdade, na presente Proposta, a qual, porém, só deve ser julgada a este propósito, em correlação com a Lei de Bases da Educação. Dessa indefinição, ao longo dos anos, resulta nomeadamente a dúvida sobre a inclusão daquelas instituições na Administração Indirecta do Estado ou na Administração Autónoma do Estado.

A segunda opção, preferida pelo Anteprojecto da autoria do Conselho de Reitores "Lei de Autonomia das Universidades Públicas" e perfilhada no Parecer n.º 4/99 do Conselho Nacional de Educação (?A autonomia do Ensino Superior?), tem sido defendida com o fundamento de as instituições em causa gozarem de uma especial autonomia e de um amplo autogoverno, ficando apenas sujeitas à fiscalização ou controlo governamental, enquanto a primeira envolverá superintendência, ou seja, o poder de orientação, para além de se considerar que seria "prestigiante" passar a integrar a Administração Autónoma.

Observe-se que, em data próxima da apresentação do Projecto de Diploma sobre a Autonomia das Instituições do Ensino Superior, o Governo divulgou o projecto de Lei-Quadro sobre a Administração Indirecta do Estado, onde se incluem as instituições do Ensino Superior, prevendo-se tratamento especial para o seu regime:

 "Artigo 48º - Institutos de Regime Especial

1.Gozam de regime especial, com derrogação do regime comum na estrita medida necessária à sua especificidade, os seguintes tipos de institutos públicos:

a. As universidades e escolas de ensino politécnico ?"

Estranha-se que o projecto de diploma em apreciação seja omisso em relação a esta matéria, perspectivando dúvidas sempre indesejáveis.

O pretendido esclarecimento não deve deixar de ter em conta o pensamento desenvolvido no âmbito do Conselho de Reitores e do Conselho Coordenador do Ensino Superior Politécnico, o qual aponta para a integração na administração autónoma do Estado.

Ultrapassar dúvidas ainda existentes quanto a consequências da própria gestão administrativa e financeira será, também, por certo, condição essencial ao pleno esclarecimento já referido.

5. A Orientação e o Planeamento Estratégicos

Todo o sistema que inclui vasto número de instituições autónomas mas dedicadas a fins comuns e em boa medida financiadas por recursos públicos, ou seja, também comuns, deve merecer linhas de orientação e planeamento estratégicos, as quais são uma das dimensões mais nobres e importantes das políticas públicas para o Ensino Superior, na generalidade dos países europeus.

Tais orientações devem basear-se em informação objectiva e pública, ter em conta o parecer das próprias instituições e de entidades representativas da vida social, a análise de especialistas independentes (frequentemente apresentados sob a forma de relatórios de autor para debate público, tal como aconteceu recentemente com o conhecido Relatório R. Dearing, 1997) e as necessidades da sociedade, interpretadas pelo poder político democraticamente constituído e centrando a sua atenção mais no futuro do que no passado.

Na verdade, são conhecidos os processos de diagnóstico do sistema de Ensino Superior e de análise prospectiva realizados no final dos anos oitenta e que fundamentaram os investimentos concursados no âmbito do PRODEP, mas são menos conhecidas orientações estratégicas mais recentes, oportunamente expressas por políticas públicas apropriadas.

Algumas evoluções ilustram bem a ausência de coordenação estratégica, tais como:

a) os previsíveis desacertos entre oferta e procura de diplomados;

b) a proliferação de iniciativas com menor relevância e sem avaliação ?ex-ante?, quer por conformidade, quer por juízo de mérito;

c) a quase ausência do desenvolvimento de novos níveis de Ensino Superior essenciais ao futuro do país, em especial o do Diploma de Especialização;

d) as insuficientes dinâmicas de classificação e especialização da rede de instituições.

Convém evitar o equívoco sempre indesejável entre orientações estratégicas globais e a simples proposição de programas de desenvolvimento por instituição, na ausência de orientações globais, já que estes não podem revelar a desejada coerência sistémica para a rede das instituições do Ensino Superior.

Infelizmente, a disponibilização de informação estatística sobre o Ensino Superior é, actualmente, bastante deficitária, tal como se pode ver no respectivo endereço da Internet e o diploma em apreciação é omisso quanto ao desenvolvimento de uma visão estratégica e coordenada para a rede de instituições do Ensino Superior, tendo em conta, designadamente, o compromisso assumido pela Declaração de Bolonha.

Ora esta omissão é especialmente grave no momento actual, porquanto:

a) o projecto de diploma apresenta uma visão integradora das instituições universitárias e politécnicas o que, contendo potencialidades importantes, aumenta a diversidade do sistema, exigindo consequentemente maior esforço de coordenação estratégica;

b) a retracção da procura por formação inicial, resultante das tendências demográficas e da fraca melhoria de alguns indicadores de rendimento do Ensino Secundário, permite aumentar os graus de liberdade da escolha dos alunos, aumentando também a concorrência e eventual cooperação entre instituições;

c) a pretendida busca da qualidade pelas instituições e de racionalidade na afectação de recursos públicos exige, cada vez mais, que se considerem as instituições do Ensino Superior, não como um ?arquipélago?, mas sim como uma rede integrada.

Esta preocupação deve ser tida em conta não só no que respeita ao estabelecimento de orientações para a rede actual, como também quanto a suas eventuais alterações.

Em suma, é condição de concretização material dos princípios autonómicos explicitar os órgãos, níveis, processos e responsáveis pela orientação e pelo planeamento estratégicos da rede das instituições do Ensino Superior.

6. A Contratualização

O conceito de autonomia implica que as relações entre a instituição, a sociedade e o Estado sejam estabelecidas segundo princípios de liberdade, responsabilidade e explicitação dos direitos e deveres a cumprir.

As instituições do Ensino Superior estabelecem anualmente contratos de serviço de formação e ensino com os seus alunos (de graduação, de pós-graduação ou em formação contínua), de investigação e desenvolvimento com entidades financiadoras de IDT, tais como a Fundação de Ciência e Tecnologia ou a Comissão Europeia, e de estudo e projecto com vasto espectro de entidades públicas e privadas interessadas no seu saber e nas suas capacidades tecnológicas.

Muitos dos principais projectos de investimento, desde 1990, passaram também a obedecer a contratos estabelecidos entre cada instituição e o Estado, conjugando-se assim financiamentos nacionais e comunitários com o fim de obter acréscimos bem definidos da dimensão e da qualidade das suas capacidades de ensino e de investigação.

Todavia, e apesar do singular zelo legislativo traduzido pela aprovação de dois Decretos-Lei visando apenas a celebração dos contratos-programa (102/98 e 103/98), não se verificou evolução semelhante quanto aos orçamentos de funcionamento, salvo um ou outro exemplo pouco significativo.

Na verdade, sobre esta matéria, encontra-se apenas uma referência no artigo 14º, a propósito do financiamento: "A repartição pelas diferentes instituições da dotação global que em cada ano o Estado fixar para o ensino superior deve atender ao planeamento global aprovado para o ensino superior e à situação objectiva de cada universidade ou instituto politécnico, aferido por critérios objectivos fixados em legislação especial e que contemplem, designadamente, a qualidade do ensino ministrado e da investigação desenvolvida aferida pelas respectivas avaliações, a qualificação do corpo docente, o tipo de cursos ministrados, o número de alunos, a natureza das actividades de investigação, a fase de desenvolvimento das instituições e os encargos das instalações?, ficando, pois, a dúvida sobre a natureza e o processo inerentes ao citado "planeamento global aprovado para o Ensino Superior".

O texto já citado do n.º 2 do artigo 14º parece estabelecer bases objectivas para a atribuição do funcionamento, mais em função da situação real do que em função de objectivos que as instituições se proponham atingir, o que suscita dúvidas quanto a eventuais formas de contratualização e à eventual manutenção ou revogação dos dois citados Decretos-Lei.

Postulado da contratualização e sua consequência fundamental é, sem dúvida, uma política integrada de acreditação e avaliação, a qual não pode deixar de considerar os ensinamentos das práticas nacionais e dos acordos internacionais assumidos, designadamente de Bolonha.

Saliente-se, por último, que o fenómeno da contratualização no domínio do Ensino Superior se revela em variados e fundamentais aspectos, com apoio ou expressão mesmo em textos legais, e tende a ganhar novos dimensionamentos, em consonância com o que dissemos atrás.

7. O Governo e a Gestão das Instituições

O Governo e a gestão das instituições do Ensino Superior tem sido um dos temas mais debatidos em Portugal nos últimos anos, como é possível concluir das intervenções compiladas em publicações recentes.

A generalidade das críticas ao sistema actual assenta no seguinte:

· multiplicidade de órgãos, incluindo elevado número de membros;

· peso desproporcionado de estudantes e funcionários;

· diluição das responsabilidades decisórias e desincentivo à liderança;

· extensão e prolixidade dos processos visando decisões importantes;

· insuficiente representação e participação da sociedade civil e possível fomento da prevalência dos valores das "corporações" sobre o bem comum.

A década vivida contém, por certo, ilustrações vivas de alguns destes inconvenientes, que todavia foram frequentemente sobreavaliados. Mas não nos podemos surpreender com esta matriz governativa e organizacional, já que foi desenhada em anos de profunda mutação política e social, com aceleradas dinâmicas de massificação e conhecidas tensões académicas, alimentadas, quer pela rejeição de modelos de autoridade do passado, quer pela exigência de maior participação na vida de cada escola.

Os tempos mudaram e os desafios inerentes à expectativa de cada estudante vir ou não a encontrar emprego, as necessidades de mudança para que cada instituição se possa adaptar às novas necessidades da sociedade, as dinâmicas de competição e cooperação entre instituições - no país e no estrangeiro - e as próprias exigências de racionalidade na gestão e valorização de recursos sempre escassos, recomendam, por certo, mudança no sistema do governo e da gestão das instituições.

As mudanças desejáveis devem aproximar os órgãos de governo e de gestão das nossas instituições de modelos fundamentados em boas práticas, equilibrar a potenciação da liderança e da dedicação dos membros mais vocacionados para dirigir com a exigência de participação de todos os interessados, evitar a separação ou o afastamento entre a dinâmica da instituição e as necessidades e opções da sociedade civil e, principalmente, contribuir para desenvolver uma nova cultura de governo e gestão orientada para a melhoria dos serviços prestados e para a racionalização das decisões e dos processos, tendo sempre em conta que os principais beneficiários são os estudantes.

Tais mudanças devem estabelecer-se num quadro de flexibilização, na linha do ?princípio da diferença?, hostil a esquemas rígidos e uniformes, o que está, de resto, na lógica da autonomia, além de corresponder a um cânone fundamental do pensamento jurídico-político actual, como atrás se disse. Nesta linha se situa a Proposta, o que será um dos seus principais méritos. Mas foi longe demais, como se depreende de algumas das explicitações subsequentes.

Quanto ao projecto de diploma, cumpre observar que esta matéria colhe a atenção de muitos dos seus artigos, quer de forma organizada nos capítulos III (Universidades Públicas) e IV (Institutos Politécnicos Públicos), quer de forma dispersa e pouco ordenada, tal como acontece com o artigo 8º ou os preceitos relativos ao financiamento público e à prestação de contas, que surgem no capítulo II (Natureza Jurídica e Autonomia das Universidades e Institutos Politécnicos Públicos).

Importa, pois, comentar o proposto, sem esquecer que a melhoria das condições de governabilidade e da própria gestão exige uma perspectiva global e sistémica da organização, a valia da sua cultura organizacional, o mérito dos seus principais dirigentes.

A.Instituições Públicas

·Não se exige qualquer órgão colegial junto do Reitor ou do Presidente de cada instituição, o que poderia ocasionar formas de governo unipessoal, claramente contrárias ao espírito académico. Pelo contrário, julga-se necessária a constituição desses órgãos, de modo a garantir a definição de orientações estratégicas e a participação de toda a comunidade académica.

·Os órgãos referidos no parágrafo anterior deverão incluir representantes dos docentes e da sociedade civil, sem deixarem obviamente de incluir também representantes dos alunos e dos funcionários não docentes, embora os primeiros devam estar, mas apenas por via de regra, em maioria face a cada um dos restantes. Maioria que se fundamenta no critério da responsabilidade e não em qualquer juízo apressado sobre possíveis deméritos da participação dos estudantes, já que os anos vividos incluem, pelo contrário, e no nosso parecer, ilustrações claras do seu empenho, da sua justeza e da sua oportunidade.

·No que respeita a cada unidade orgânica, exige-se a existência do Director mas não a do Conselho Directivo, o que, aliás, se harmoniza mal com a obrigação de o Director ser coadjuvado por um ou dois subdirectores. Outrossim, julgamos que, para além do Director se deve também exigir a existência do Conselho Directivo, embora com composição a propor pela instituição, envolvendo a participação de alunos e funcionários não docentes.

·Estabelece-se obrigatoriamente a exigência de um Conselho Científico e de um Conselho Pedagógico, mas nada se exige quanto ao governo estratégico de cada instituição ou unidade e quanto à participação de representantes da sociedade civil.

·A escolha do Reitor ou do Presidente de cada instituição deve resultar da eleição por escrutínio secreto por parte dos três corpos da instituição e, eventualmente, de representantes da sociedade civil. Tal eleição deve respeitar a condição de maioria, nos termos já referidos.

·Contrasta com a natureza geral do diploma o estabelecimento de algumas exigências demasiado específicas, e até pouco judiciosas, tal como o caso da duração do mandato do director ou a excessiva pormenorização de atribuições ou competências de diversos órgãos. A prolixidade é, aliás, com alguma frequência, um dos deméritos deste diploma.

·O projecto de diploma também é omisso sobre as exigências de avaliação externa integrada de cada instituição e cada unidade, e bem assim sobre a divulgação dos seus resultados, limitando-se a utilizar a designação insuficiente de "auto-avaliação".

·Prevê-se a figura do Administrador junto do Reitor ou do Presidente do Instituto Politécnico, o que se julga vantajoso, mas tal possibilidade não existe no âmbito de cada unidade, junto do Director, o que não parece lógico.

· Importa também observar que tratar do Governo e da Gestão das instituições sem referir o quadro estatutário dos docentes e funcionários é criticável, já que a dimensão da gestão dos recursos humanos é vital para os objectivos a prosseguir e esta dependerá sempre directamente dos referenciais estatutários existentes, cuja revisão já foi, aliás, prometida para "o início do ano lectivo 97-98?, no importante documento "Autonomia e Qualidade", de 1997.

Com efeito, acreditamos que a efectiva concretização dos princípios autonómicos exigirá novo quadro estatutário para os docentes, optando claramente por uma orientação que dê maior grau de liberdade às instituições para a gestão dos seus recursos humanos.

· Se a gestão dos recursos humanos é atributo essencial à gestão autonómica tal como se defendeu no parágrafo anterior, também se julga que não é menos verdade dever a autonomia das instituições ter expressão na capacidade de seleccionar os seus alunos, segundo quadro geral, respeitando princípios de mérito e equidade, e em termos a consignar na nova lei de Bases da Educação.

·Todavia, uma das principais críticas que o projecto de diploma justifica é a sua omissão quanto ao processo de proposição dos novos estatutos por cada instituição. Julga-se que tal processo deverá:

a)      evitar o desrespeito pelos consensos existentes em cada instituição;

b)      evitar a simples perpetuação dos modelos actuais;

c)      promover a inovação e a melhoria do modelo de governo e gestão.

Como possível solução recomenda-se a atribuição da função de elaboração de novos Estatutos a uma Comissão que:

a) inclua membros que sejam professores e investigadores, alunos e funcionários não docentes e representantes da sociedade civil, devendo os primeiros estar em maioria, definida nos termos anteriormente referidos;

b) a sua composição seja ratificada pelo órgãos competentes de cada instituição ou unidade.

Espera-se que a legislação que vier a ser publicada contenha, sobre a matéria do governo e da gestão das instituições e das suas unidades, disposições que melhorem a qualidade e a racionalidade dos seus processos, permitindo obter melhores resultados quanto ao vasto espectro de serviços por elas prestados, desde o ensino à investigação, desde o desenvolvimento cultural à inovação tecnológica.  E tais melhorias não serão possíveis sem a participação activa de todos, designadamente dos alunos, beneficiários directos do ensino, os quais não devem ser remetidos para uma mera função de ?clientes?, mas antes incentivados a contribuir para a construção do projecto que deve caracterizar cada instituição e que a todos deve interessar.

B. Instituições Privadas

É louvável a pretensão de unificar no mesmo documento o tratamento de instituições com natureza distinta, como é o caso do Ensino Superior Particular e Cooperativo, reafirmando igual tratamento para as dimensões cultural, científica e pedagógica da autonomia. Todavia, as disposições apresentadas são insuficientes em especial no que respeita à relação entre tais dimensões e o próprio estatuto das instituições. Se não for possível desenvolver esta temática neste diploma haverá que tratá-la em sede do Estatuto do Ensino Superior Privado e Cooperativo.

8. Conclusão

O momento actual é marcado por novos desafios para a rede de instituições do Ensino Superior, desafios inerentes quer a flutuações da procura por parte dos jovens e do próprio mercado de emprego, quer à crescente internacionalização no espaço europeu, não se prevendo menor o efeito de aceleração induzido pelo próprio processo de Bolonha.

Ora tudo indica que, por coerência com a Estratégia de Lisboa e a necessidade de relançar o desenvolvimento social e económico da União Europeia, o paradigma da Sociedade do Conhecimento seja aprofundado, atribuindo-se mais vastas e diversificadas responsabilidades à rede europeia de instituições do Ensino Superior, tal como é defendido no importante e recente Relatório do Prof. Sapir.

É neste contexto de evolução que melhor se compreende a importância do diploma sobre Autonomia, cujo projecto foi apreciado nos números anteriores.

E a síntese apresentada permite concluir que, se a legislação actual pecou pela excessiva uniformização, esta proposta, apesar dos seus méritos, cai no erro oposto, carecendo aliás de uma visão estratégica e prospectiva, furtando-se à questão central das mudanças no modelo de governo e de gestão e apresentando deficiências e prolixidades escusadas, além de subestimar alguns dos mais correctos parâmetros da feitura legislativa.

Espera-se, assim, que a Assembleia da República, após a aprovação na generalidade do projecto de diploma, não deixe de introduzir nele profundas melhorias, a bem do nosso Ensino Superior, o mesmo é dizer, a bem do futuro do nosso País, já que as instituições do Ensino Superior são parceiros imprescindíveis no processo de desenvolvimento que todos desejam. Deste modo se buscarão novos rumos no relacionamento entre o poder político e o poder académico, em ordem a definir novos equilíbrios e novos modelos numa sociedade em acelerada mutação.

 

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,

20 de Novembro de 2003

 

O Presidente, Manuel Carlos Lopes Porto