Autonomia
Intervenção de João Cunha Serra no colóquio organizado pela FENPROF e pelo grupo CRISES, em Lisboa, no dia 11 de Novembro

Autonomia, Missão e Participação

26 de janeiro, 2004

A autonomia e a gestão dos estabelecimentos de ensino superior público não é assunto simples como todos aqueles que prezam os valores, humanista e social, das respectivas missões, facilmente reconhecerão.

Só é matéria simples para os que pretendem transformar o ensino superior numa mercadoria como outra qualquer, sujeita às leis do mercado. Para estes, não existem dúvidas: o que seria necessário era implantar uma gestão empresarial.

E quem melhor seria capaz de pôr em prática uma gestão empresarial senão os próprios empresários, integrados nos chamados ?boards of trusties??

Quanto à questão fulcral do financiamento, o problema seria igualmente simples: os estudantes pagariam o custo real do ensino ou até mais (já acontece na Austrália em cursos de direito) e os contratos com as empresas permitiriam custear outras actividades como a investigação. Os dirigentes seriam nomeados de alto a baixo, tal como numa empresa qualquer.

Ficaria assim aberto o caminho para a feroz competição (em detrimento da cooperação) entre instituições; para a elitização de muitas delas, às quais apenas acederiam os mais ricos; para o alargamento dramático das actuais desigualdades na qualidade do ensino e da investigação. As instituições perderiam a sua independência face ao poder económico e ficariam sujeitas ao imediatismo do mercado. Os estudantes seriam encarados como meros clientes.

Mas entre este modelo de pesadelo e o modelo herdado de 1976 existem vários possíveis que garantam a prevalência dos valores e das missões fundamentais do ensino superior: a atitude humanista, a visão de longo prazo, as liberdades académicas, a liberdade de expressão e de criação, a independência face a grupos de interesses sejam eles de carácter económico ou outro.

Um mesmo modelo pode conduzir a resultados bem diferentes consoante os contextos da sua aplicação, isto é, as tradições, a cultura institucional, o grau de dedicação dos docentes e não-docentes, a dimensão e até o carácter individual dos intervenientes e, em casos extremos, o de um só indivíduo. Tivemos exemplos disto em escolas regidas pelo mesmo estatuto de uma mesma universidade.

Existe a tendência ou tentação para atribuirmos todos os problemas e dificuldades às imperfeições do modelo de gestão em vigor.

Esquece-se de que existe todo um enquadramento legislativo (acesso, carreira docente, financiamento, etc.) e todo um historial de cortes orçamentais, que fortemente condicionaram e condicionam o exercício da autonomia e da gestão, e esquece-se de que sucessivos governos, por acção ou por omissão, têm fortes responsabilidades nos problemas e ineficiências existentes.

Isto não significa que eu ache que todas as dificuldades se explicam devido a condicionalismos que nos são impostos do exterior. Considero que teria sido possível fazer melhor com a autonomia e com os meios de que as instituições do ensino superior têm usufruído. Basta analisar questões como o insucesso e abandono escolares e como a projecção do ensino superior público na opinião pública.

Mas esta tendência por vezes doentia que muitos académicos têm para atribuir todos os males ao modelo de gestão, quando não se trata de uma atitude destinada apenas a encobrir responsabilidades das políticas seguidas pelos governos ou pela tutela, mostra, em muitos casos, o quanto muitos vestem a camisola e se desesperam por não conseguirem melhor do que aquilo que vão sendo capazes de alcançar, a muito esforço, com os instrumentos de que dispõem.

E, paradoxalmente, é a insatisfação e até a frustração, assim demonstradas pela gestão que temos, que melhor justificam a necessidade de manter os valores em que ela assenta, isto é, os valores da participação, da construção de projectos partilhados e do empenho individual e colectivo na sua consecução que nenhum modelo autocrático ou autoritário, que despreze este valor da participação, alguma vez alcançará.

E, no entanto, é também esta atitude de auto-flagelação que nos retrai de responsabilizarmos as políticas que não têm conferido ao ensino superior o papel estratégico que deveria assumir no desenvolvimento do país e de exigirmos, unidos, docentes e investigadores, estudantes e não-docentes, essas condições.

Importa assim reconhecer que o actual modelo tem tido muitas virtualidades e que a ele se deve em grande medida o clima geral de tranquilidade académica que apesar de tudo se tem vivido, bem como o enorme desenvolvimento e expansão que o ensino superior público teve mantendo níveis crescentes de qualidade apesar de todas as justas críticas e insatisfações.

Terá chegado a altura de introduzir alterações a este modelo? A minha resposta é sim, mas com sensatez e segurança.

As mutações que se têm verificado no panorama do ensino superior à escala nacional, europeia e mundial; as pressões sociais crescentes a que se encontra sujeito; o papel cada vez mais importante que se lhe pede como elemento estratégico para o aumento da competitividade da economia, rumo à tal sociedade do conhecimento, exigem que se repense muita coisa incluindo o exercício da autonomia e da gestão.

É incontroverso que as instituições precisam de ter uma gestão mais ágil, mais capaz de se adaptar às mutações sociais aceleradas, mas sem cair no imediatismo que pretendem os apaniguados da teologia do mercado.

Têm que se reduzir os riscos dos órgãos executivos se transformarem em mini-parlamentos ou em órgãos de gestão de conflitos, ou de concertação de interesses de diferentes corporações, mas sem liquidar a gestão participativa.

Tem igualmente que se fazer sentir mais intensamente as necessidades da sociedade, mas sem pôr em causa as missões fundamentais do ensino superior, assegurando condições para o planeamento estratégico socialmente responsável.

Tem ainda que se reduzir a potencialidade de conflitos entre órgãos (muito comum entre conselhos científicos e directivos) e diminuir o pretexto para a desresponsabilização e a desculpabilização que tem resultado da complexidade dos processos de decisão quanto ao número excessivo de actores intervenientes e quanto à grande multiplicidade de instâncias a percorrer e de interesses a satisfazer. Mas sem se cair, como o Governo cai, em soluções de tipo autocrático ou autoritário, baseadas em lideranças pseudo-iluminadas a quem são conferidos todos os poderes.

Na realidade, sob o disfarce do aumento da autonomia estatutária das instituições, o Governo o que pretende é induzir as instituições a caminharem no sentido da liquidação da gestão democrática ou participativa, usando os seguintes ingredientes:

1.Concentração forçada de poderes em órgãos unipessoais (reitores, presidentes dos politécnicos e directores) e eliminação de competências hoje atribuídas a órgãos representativos, incluindo a conselhos pedagógicos;

2.Não fixação de quotas de participação mínima de estudantes e de não-docentes, num claro convite à redução drástica, ou até à eliminação, da sua participação nos órgãos representativos e executivos; em contrapartida, fixação de uma quota máxima reduzida de participação de estudantes nos conselhos pedagógicos;

3.Convite à utilização de processos não democráticos de designação ou de selecção de reitores, presidentes de politécnicos e de directores;

4.Convite à eliminação de órgãos representativos como Senados, Conselhos Gerais, Assembleias de Representantes, ou seus sucedâneos;

5.Convite à eliminação dos conselhos directivos que, a existirem, não teriam poderes atribuídos, por todos eles se encontrarem concentrados nos Directores;

6.Convite à fixação com elevado grau de discricionariedade por parte de reitores, presidentes dos politécnicos e directores da composição das assembleias que definirão os novos estatutos das instituições.

A FENPROF, apesar de afirmar a sua confiança em que na maioria das instituições os docentes, estudantes e não-docentes terão a força suficiente para garantirem os seus direitos de participação, entende que a nova lei da Autonomia não deve admitir soluções de tipo autocrático, pois, mesmo quando possam vir a ser aprovadas por uma maioria, não é aceitável que a uma qualquer maioria seja permitido eliminar o direito de participação a uma minoria, pois este direito tem carácter individual, é inerente à autonomia e faz parte das condições para o eficaz cumprimento das missões de elevada responsabilidade social que ao ensino superior estão constitucionalmente confiadas.

Deste modo, e sem prejuízo da possibilidade de criação de instâncias de participação de elementos exteriores às instituições com competências próprias, sobretudo na área do desenvolvimento de cursos, a nova lei de Autonomia deverá:

1.Estabelecer, sem ambiguidades que o reitor, o presidente de um instituto politécnico e um director têm que pertencer à instituição ou unidade orgânica e têm que ser eleitos com a participação de representantes dos 3 corpos (docentes e investigadores, estudantes e não-docentes);

2.Tornar obrigatórios Senados, Conselhos Gerais e Assembleias de Representantes, ou seus sucedâneos, estabelecendo representações mínimas para cada um dos 3 corpos;

3.Entregar aos actuais Senados, Conselhos Gerais e Assembleias de Representantes a competência para fixarem a composição e a forma de designação dos membros das assembleias destinadas a aprovar os novos estatutos, respeitando as disposições da nova lei.

Do ponto de vista da FENPROF, pelas razões já expressas, não há um modelo ideal para a gestão das instituições.

Os problemas principais que afectam a gestão não se encontram no modelo, mas antes nas políticas que têm vindo a ser aplicadas por sucessivos governos, designadamente o sub-financiamento crónico.

É contudo necessário flexibilizar o actual modelo, responsabilizar mais os docentes e os investigadores, melhorar a qualidade da participação tendo em consideração a competência e o papel dos vários actores intervenientes.

Os órgãos executivos devem ser solidários e coerentes para poderem ser eficazes e responsabilizáveis.

É preciso assegurar, no entanto, a existência de espaços de negociação de interesses legítimos de grupos e de corpos e é necessário garantir meios adequados de avaliação e de prestação de contas à sociedade quanto ao desempenho das missões por esta confiadas às instituições do ensino superior público.

Compete, entretanto, aos órgãos superiores do Estado definir com clareza as políticas e as prioridades de intervenção e atribuir os meios necessários para que o Ensino Superior Público possa estar à altura do papel que pode desempenhar para desenvolvimento social, cultural e económico do país, de modo sustentável.

JCS