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João Cunha Serra (*)

Comentários ao Programa do Governo - Ensino Superior e Investigação

17 de maio, 2006

João Cunha Serra (*)

1. O Financiamento e a Aplicação do Processo de Bolonha

A aplicação do Processo de Bolonha encontra-se inquinada pela forte desconfiança das instituições de que será aproveitada para reduzir a responsabilidade do Estado pelo financiamento do Ensino Superior. De facto, a orientação do Governo anterior era a de forçar a duração do 1º ciclo o mais possível a ser de 3 anos (exceptuando os casos de formações destinadas ao exercício de profissões regulamentadas), o que, apesar das tentativas da Ministra para tranquilizar as instituições de ensino superior, levou a que se criasse a convicção de que iriam ser exigidas aos alunos propinas de mestrado (hoje de montantes muito elevados - da ordem do custo real) se desejassem frequentar o 2º ciclo. Como este 2º ciclo irá ter, em muitos casos, grandes sobreposições com os anos terminais das actuais licenciaturas, no que se refere a objectivos formativos, uma situação destas corresponderia a transferir para os estudantes e para as suas famílias os custos daquilo que hoje o Estado já suporta.

A este respeito, o Programa do Governo, apesar de referir que "as universidades e os politécnicos terão a garantia de que a passagem para uma estrutura em dois ciclos de estudos não representará, por si só, diminuição do funcionamento público disponível", deixa algumas dúvidas porque mais adiante refere o compromisso de "não aumentar, a preços constantes, o valor das propinas de frequência do primeiro ciclo e adequar o valor das propinas à nova natureza do 2º ciclo".

Uma leitura benevolente deste compromisso pode levar a concluir-se que as propinas do 2º ciclo serão tais que os custos acrescidos que provenham de uma procura do 2º ciclo superior àquela que actualmente se verifica nos mestrados serão pagos pelos estudantes e pelas suas famílias, através de propinas mais elevadas do que as do 1º ciclo, mas ainda assim mais baixas do que as actualmente praticadas nos mestrados. Isto é, as "poupanças" feitas com a redução da duração dos cursos de licenciatura serviriam para financiar uma redução das propinas no 2º ciclo, relativamente às hoje em vigor nos mestrados.

Ora, se esta é a proposta do Governo - e conviria que houvesse uma clarificação - ela não se coaduna com a necessidade de alargar e democratizar o acesso ao 2º ciclo, pois a elevação do valor das propinas na passagem do 1º para o 2º ciclo irá afastar muitos alunos do prosseguimento dos estudos. É, aliás, interessante verificar que Bolonha acentua a sequência: 1º, 2º ciclo - e não licenciatura, mestrado - com a ideia de que o 2º ciclo completa o 1º. Portanto, um estudante, logo após ter terminado o 1º ciclo, ou depois de algum tempo a trabalhar, irá frequentar o 2º ciclo, eventualmente noutra instituição do país ou do estrangeiro.

A Declaração de Bolonha aponta assim claramente no sentido do acentuar a tendência para a universalização do acesso ao ensino superior, tanto no que se refere ao 1º ciclo, como, especialmente, ao 2º ciclo de estudos. Este desiderato, conforme aos objectivos da "Estratégia de Lisboa", é fundamental para a elevação da qualificação da nossa população activa e para o desenvolvimento cultural, social e económico sustentável do país. Ele não será atingível sem que o Estado se responsabilize pelo financiamento do Ensino Superior Público, em particular pelos dois ciclos de estudos, sob pena de se acentuarem os efeitos muito negativos, já denunciados por responsáveis das instituições, de que o aumento das propinas, concretizado pelo 1º Governo PSD/PP, levou milhares de alunos a abandonarem os seus estudos, ou a terem que passar à situação de estudantes-trabalhadores.

Uma importante questão, relativamente à qual não há qualquer compromisso no Programa do Governo, é a da desejável eliminação do conteúdo do Programa de Estabilidade e Crescimento, que o Governo terá que apresentar em Bruxelas no próximo mês de Maio, da cláusula que afirma que não haverá, até 2007, qualquer aumento nominal de financiamento para o ensino superior. Esta limitação, a persistir, levantará as mais sérias dúvidas sobre o efectivo empenho do Governo neste sector estratégico para o desenvolvimento do país, pois significará a certeza do prosseguimento de uma acentuada redução em termos reais dos recursos disponíveis.

Ainda quanto a Bolonha, anote-se como potencialmente muito positiva a posição expressa no Programa de que será seguido "o modelo de organização por ciclos, com um primeiro ciclo de estudos de duração não inferior a seis semestres". Se isto significar que o Governo não irá forçar as instituições a reduzirem a duração dos seus cursos de licenciatura, obrigando-as a uniformizar essa duração ao mínimo proposto por Bolonha (3 anos), independentemente das necessidades impostas pelos objectivos culturais, científicos e profissionais das formações (definidos com audição de representantes da sociedade nelas interessados), e das limitações da formação com que os alunos ingressam do secundário, então estaremos no bom caminho. O SPGL e a FENPROF têm vindo a bater-se por isso e continuarão a fazê-lo.

2. A Qualidade e o Futuro do Sistema de Ensino Superior

É positivo que no Programa do Governo tenha caído o entusiasmo apologético que transparecia no Programa do PS quanto ao sistema binário (universidades/politécnicos): "O PS é favorável ao sistema binário". O Programa afirma uma posição que se aproxima muito da posição que o SPGL e a FENPROF têm defendido, ao referir valorizar "a articulação entre instituições com missões distintas e funções diversificadas", e ao defender que "a coexistência de formações e ambientes de ensino e pesquisa de perfil típico daqueles tradicionalmente associados a universidades e de perfil tradicionalmente associado a politécnicos constitui uma riqueza de que não devemos abdicar". O Programa refere logo depois: "mas isso deve ser conseguido garantindo o relacionamento mais estreito entre os subsistemas universitário e politécnico, valorizando a excelência em ambos", o que pode ser uma forma mitigada de o Governo dizer que pretende perpetuar a existência e a separação dos subsistemas, embora com um relacionamento mais estreito, orientação que difere da que o SPGL e a FENPROF têm defendido, não no que concerne à cooperação institucional que têm advogado e às exigências da sua qualidade, mas no que se refere à proposta que de há muito fazem de se caminhar para um sistema integrado e diversificado.

Deve registar-se, no entanto, como especialmente positivo, aquilo que se diz imediatamente a seguir: "Em particular, a possibilidade de concessão de graus deixará de estar fixada por critérios unicamente administrativos, para passar a depender da satisfação de requisitos, exigentes e comuns, de qualidade".

Este compromisso coincide com aquilo que o SPGL e a FENPROF vêm reclamando há muito. Resta saber se o Governo vai ou não atribuir condições de igualdade de oportunidades, designadamente no que se refere a financiamento, às instituições universitárias e politécnicas, para se desenvolverem com qualidade e relevância social acrescidas. É fundamental que seja posta em prática uma política de discriminação positiva e de incentivos à qualidade, baseada em processos transparentes de prestação de contas e de avaliação com critérios adequados e amplamente partilhados.

Quanto ao Ensino Superior Particular e Cooperativo (ESPC), o Programa do Governo é substancialmente omisso. Para além da ideia geral de apoio a iniciativas privadas no ensino superior, surge apenas a afirmação de que "o Ministério da tutela deve zelar pelo cumprimento dos requisitos de qualidade para cursos e instituições e da responsabilidade própria das instituições privadas face aos seus alunos". Espera-se que esta afirmação de cumprimento das funções de regulação que, note-se, se deve aplicar igualmente ao Ensino Superior Público, seja para levar a sério e não persista a atitude de omissão que na prática tem representado cumplicidade para com a falta de qualidade e para com inúmeros atropelos à legalidade que se têm verificado.

3. A Situação Profissional dos Docentes

Regista-se como muito negativo o facto de nada se referir quanto ao corpo docente do ensino particular e cooperativo que continua a ser tratado de forma prepotente e indigna por muitas entidades instituidoras do ESPC. O Programa nada adianta quanto às exigências que o SPGL e a FENPROF têm apresentado relativamente à existência em todas as instituições de corpos docentes próprios, adequadamente qualificados, com uma carreira docente paralela à dos docentes do Ensino Superior Público (exigência da própria lei que não é cumprida) e com condições dignas de contratação e de vinculação estável. Sem que estas exigências sejam contempladas é ilusório falar-se de que se vai "zelar pelo cumprimento dos requisitos de qualidade".

No Ensino Superior Público, o Programa, embora refira a intenção de rever os estatutos de carreira com o objectivo de "estabelecer um único estatuto que acolha perfis docentes diversificados, mas com equivalência no topo da carreira, que premeie o bom desempenho em todas as dimensões da profissão docente e que facilite a mobilidade entre os diversos perfis e instituições, entre carreiras docente e de investigação e entre carreiras académicas e actividades profissionais fora do ensino", nada aponta para a correcção dos graves problemas da precariedade de emprego e do estrangulamento dos quadros.

Quanto à valorização nas carreiras docentes da vertente pedagógica essa tem sido também uma proposta defendida pelo SPGL e pela FENPROF.

4. Ciência e Investigação

Quanto à ciência e à investigação, sector onde surgem os compromissos mais quantificados, o Programa é bastante ambicioso no que se refere a investimento, a crescimento do número de doutorados e a aumento do emprego científico, sendo por isso positivo. Fica contudo a dúvida sobre se o desenvolvimento económico e social do país vai permitir alcançar as metas que dele dependem e que se inserem na concretização da "Estratégia de Lisboa", mesmo já depois da redução que levou na sua inicial ambição. A este respeito, não será apenas o MCIES que ficará sob escrutínio, mas o Governo como um todo.

(*) Coordenador do Departamento do Ensino Superior