Financiamento Actualidade
António Nóvoa no discurso de abertura do Ano Académico 2007/2008, na Universidade de Lisboa, 8/11/2007

"O Governo transfere anualmente para universidades norte-americanas verbas superiores às que transfere para algumas universidades portuguesas"

08 de novembro, 2007

Muito obrigado pela vossa presença neste dia de tão grande significado para nós.

A Universidade não é só para estudantes e professores, não é um recinto ad usum Delphini. É uma instituição que se intromete na vida, que se envolve nas suas urgências e paixões, que responde com serenidade ao frenesim, com lucidez à frivolidade, com perspicácia à estupidez (Ortega y Gasset).

Não há valor mais seguro do que a confiança que em nós deposita a sociedade. Sabemos da nossa obrigação de estar à altura desta confiança, projectando uma Universidade que sirva o país e o seu desenvolvimento.

É este o desafio que temos pela frente nos próximos meses, depois da realização, anteontem, das eleições para a Assembleia que irá proceder à revisão dos Estatutos da Universidade.

1. "Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança"
(Luís de Camões).

Permitam-me que comece por recordar um acontecimento, a greve académica de 1907, a luta de uma Academia insofrida por novos métodos e processos de ensino. A revolta estendeu-se para lá dos muros da Universidade e deu um impulso decisivo à transformação do país.

Nesse mesmo ano, 1907, o Prof. Sobral Cid pronunciaria uma célebre Oração de Sapiência pugnando pela modernização da universidade com base num reforço da sua autonomia e liberdade de criação científica.

Neste ano de 2007 comemoramos também o centenário do nascimento do Prof. Barahona Fernandes, Reitor da nossa Universidade após o "25 de Abril".

Porquê lembrar em conjunto estes três factos? Porque estamos perante acontecimentos e vidas que ilustram o que há de melhor na instituição universitária, a capacidade de se renovar renovando a sociedade.

Assumir o legado do Prof. Barahona Fernandes é compreender, e praticar, uma autonomia universitária que assenta na força criativa, na inovação, na liberdade científica. Jamais nos contentaremos, como ele não se contentou, com meras "reformas orgânico-burocráticas".

Barahona Fernandes foi um cientista, tal como Aniceto Monteiro ou Flávio Resende ou Delfim Santos ou Virgínia Rau, para mencionar apenas alguns dos nossos melhores cujo centenário se comemora este ano. A Medicina (com Barahona Fernandes), a Matemática (com Aniceto Monteiro), a Botânica (com Flávio Resende), a Filosofia e a Pedagogia (com Delfim Santos), a História (com Virgínia Rau) ? porque a Universidade é o lugar onde se cultivam todos os saberes, é uma multiversidade (Barahona Fernandes). Quando se afunila o seu alcance, reduzindo-a a visões estreitas de ciência e tecnologia, perde-se o seu sentido como espaço de cultura, como experiência do pensamento e da vida.

Parece estranho que seja necessário voltar, uma vez mais, a esta argumentação. Parece estranho e é estranho. Mas a desvalorização das disciplinas universitárias que não são estritamente científico-tecnológicas (as Humanidades, as Ciências Sociais e Jurídicas, as Artes, a Educação, mesmo as Ciências Fundamentais) obriga-nos a erguer a voz em defesa de uma Universidade de todos os saberes e de todas as culturas, em defesa de uma Universidade do pensamento crítico, que vive da sua universalidade, isto é, da sua abertura ao mundo.

É por isso que não aceitamos as distorções que nos querem impor. O Eça, no seu estilo, bem nos aconselhava a pôr no seu lugar os "fanfarrões da sabedoria, do milhão ou do músculo".

A Universidade de Lisboa tem como objectivo consolidar a sua posição no espaço europeu do ensino superior. Para isso, precisamos de uma organização que se inspire nos melhores exemplos internacionais. Precisamos de valorizar os novos ambientes intelectuais, atraindo os melhores investigadores. Precisamos de promover a iniciativa e o risco, trabalhando nas fronteiras do conhecimento.

"Assim nos traz a mudança, de esperança em esperança"
(Luís de Camões).

Abrir horizontes. Abrir-nos ao mundo.

Olhe-se para a fachada deste edifício, para a alegoria ao "Mundo que o português criou" desenhada por Almada Negreiros [permitam-me, aliás, que vos convide a visitarem o Salão Nobre, onde estão expostos os desenhos originais adquiridos este ano graças ao donativo de uma benemérita]. Olhe-se para o ex-libris que Raul Lino compôs para a Universidade, ligando-a à cidade (a cidade de Lisboa sempre em nós, nós sempre na cidade de Lisboa).

Mas, acima de tudo, sinta-se que o mundo está no nosso presente e no nosso futuro. A internacionalização faz parte da condição universitária, do dia-a-dia de estudantes, professores e investigadores desta casa. Os nossos programas são pensados a partir de uma referência internacional. Queremos medir-nos e comparar-nos com as melhores universidades europeias.

2. "Cada um é filho do que faz
e não é outra coisa"
(Padre António Vieira)

Medir e comparar é prestar contas. Inicio a segunda parte desta intervenção honrando o compromisso assumido o ano passado. À entrada desta sessão foi distribuída uma brochura, Massa Crítica, que constitui um primeiro esforço para traduzir, em linguagem simples, extensos relatórios e dados sobre a nossa actividade. A Universidade de Lisboa presta contas.

O objectivo é explicar ? aos estudantes, às famílias, às instituições, às empresas ? as nossas forças e as nossas fraquezas, onde estamos e por onde queremos ir. Expomo-nos assim à vossa crítica, e nela saberemos encontrar inspiração para construir uma Universidade mais forte e mais aberta à sociedade.

"Cada um é filho do que faz e não é outra coisa"
(Padre António Vieira).

Estamos verdadeiramente empenhados num esforço de renovação. Para que ele vingue é indispensável eliminar permanentes entraves burocráticos, a voragem regulamentadora que nos asfixia. É preciso traçar metas, confiar nas instituições, avaliá-las e responsabilizá-las. Não é preciso tirar-lhes a iniciativa, tudo querer controlar através de despachos, ordenações e directivas.

O que é que nos faz falta?

Em primeiro lugar, faz-nos falta a revisão do Estatuto da Carreira Docente Universitária, a mais urgente de todas as mudanças. Sem um Estatuto que permita recrutar e promover os melhores, pondo fim à mediania e à endogamia, estabelecendo uma ligação forte entre ensino e investigação, é impossível reformar a universidade. Sobre isto, até agora, o Governo disse nada.

Em segundo lugar, fazem-nos falta modelos claros e transparentes de financiamento. O Governo acabou com quaisquer regras, voltando à nebulosa de um passado ainda recente. A nossa reivindicação é clara: queremos modalidades de financiamento mais exigentes, mais competitivas, baseadas em resultados concretos (de ensino, de empregabilidade, de ciência, de tecnologia). Será pedir muito? O comissário europeu Ján Figel explicou há dias, no Centro Cultural de Belém, que as universidades europeias não conseguem competir com as melhores universidades do mundo porque têm níveis de financiamento muito inferiores. Que dizer então de Portugal? Nos últimos dois anos somos o único país da Europa que reduziu o investimento no ensino superior, remetendo as instituições para uma lógica de pura sobrevivência, num momento em que as universidades têm cumprido, e bem, as suas obrigações, designadamente através de um aumento do número de estudantes e de uma melhoria da qualidade da sua formação. Mas, ao mesmo tempo, o Governo transfere anualmente para universidades norte-americanas, ao abrigo de acordos interessantes mas com contrapartidas reduzidas, verbas superiores às que transfere para algumas universidades portuguesas. Desenganem-se todos aqueles que acreditam ser possível plantar duas ou três escolas de excelência num terreno institucional degradado. A excelência não nasce por escolha nem por decreto, mas por boa sementeira em terreno fértil. Sobre isto, o Governo tem multiplicado sinais errados.

Em terceiro lugar, faz-nos falta uma política corajosa de reordenamento da rede do ensino superior, pondo fim à proliferação de escolas que se criaram por todo o país, com a cumplicidade de poderes nacionais, regionais e locais. Sobre isto, até agora, o Governo nada disse, tendo mesmo aprovado uma lei que convida, estranhamente, a uma ainda maior fragmentação das instituições.

Em quarto lugar, faz-nos falta a adopção de normas exigentes de avaliação e de acreditação, acabando com a multiplicação de cursos que, com a conivência de governos e instituições, tem contribuído para degradar a qualidade do ensino superior. Sobre isto, merece aplauso a iniciativa do Governo: mais e melhor avaliação, feita com critérios internacionais.

Em quinto lugar, faz-nos falta um novo modelo de governação das universidades. Sobre isto, o Governo publicou o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, vulgo RJIES, que contém inúmeros aspectos positivos, mas que corre o risco de se transformar numa mera "reforma orgânico-burocrática".

O problema universitário é bem mais fundo do que parece à primeira vista. E para o enfrentar necessitamos de determinação, de rigor, de confiança nas pessoas e nas instituições. Ninguém fará por nós o trabalho que só nós podemos fazer. Retirar às universidades a sua vida própria, descapitalizá-las, impedi-las de recrutarem recursos humanos qualificados, e depois decretar que elas são incapazes de renovação, é puro cinismo.

Ao não favorecer a iniciativa, ao valer-se de argumentos de autoridade, ao debilitar as instituições ? este Governo cria o desânimo entre todos aqueles que, genuinamente, se batem pelo progresso e pela inovação. O espectáculo em que se transformou a política serve para esconder a inércia da política. Nada é pior do que a ilusão da mudança que deixa tudo na mesma. A sociedade portuguesa vai pagar um preço muito alto pelo preconceito deste Governo em relação às universidades.

3. "Quem quer passar além do Bojador
tem que passar além da dor"
(Fernando Pessoa)

Que fazer? Respondo, nesta última parte, com a metáfora da nossa brochura deste ano: Massa crítica.

Recolher todas as energias e não nos desviarmos um milímetro sequer do rumo que traçámos e que temos vindo a trilhar, antes e depois do RJIES. Trabalhar dentro dos limites da lei, ir além da letra da lei, no sentido de aproveitar todas as oportunidades que ela abre, criando as condições para que a Universidade adquira a massa crítica de que necessita para afirmar a sua presença no espaço europeu do ensino superior.

Já elegemos a Assembleia Estatutária e vamos iniciar de imediato os trabalhos. Neste caso, ir além da letra da lei é reforçar a abertura à sociedade, mantendo em funções o Conselho Consultivo presidido pelo Dr. Jorge Sampaio, e construir órgãos internos que assegurem uma participação autêntica de docentes, estudantes e funcionários na vida da universidade.

Mas queremos também ir além da letra da lei no que diz respeito ao reordenamento da rede do ensino superior em Lisboa, juntando-nos com outras escolas no sentido de agregar esforços, construindo um espaço institucional coerente, universitário e politécnico. Queremos aumentar a massa crítica, também aqui, assegurando uma maior cooperação e mobilidade, de estudantes e professores, no respeito por uma diversidade de formações.

Ir além da letra da lei significa ainda dar muito maior peso às estruturas de investigação dentro da Universidade, ligando-as aos programas de pós-graduação e promovendo dinâmicas de inovação e de excelência, no plano nacional e internacional. Esta é, para nós, a prioridade das prioridades.

Ir além da letra da lei é não esperar. É não esperar pela revisão do Estatuto da Carreira Docente Universitária e encontrar, desde já, estratégias de promoção do mérito e do talento. É não esperar pela Agência de Avaliação e Acreditação e instituir, desde já, dispositivos de prestação de contas, de garantia da qualidade, de análise da inserção profissional dos diplomados, de acreditação internacional dos cursos.

Ir além da letra da lei é exercer uma autonomia responsável, criativa, transformadora. É assumir riscos. É dotar a Universidade da massa crítica que lhe permita uma acção sustentada, liberta de peias burocráticas e administrativas.

Iremos além da letra da lei e disso prestaremos contas, porque sabemos que "quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor" (Fernando Pessoa).

Iremos mesmo além dos nossos limites, e mobilizaremos, ao serviço da renovação da Universidade, todas as nossas energias.

* * * * * * * * * * * * * *

O ano passado, na abertura do ano académico, expliquei o que podia dar ao país a Universidade de Lisboa. Hoje, peço à sociedade portuguesa que nos apoie neste processo de mudança. Eu sei que o medo ensaia um regresso às nossas instituições. Mas o silêncio corrompe. E o silêncio absoluto corrompe absolutamente. Precisamos de vozes livres e independentes, de vozes justas, que nos ajudem a construir uma Universidade mais forte, mais dinâmica, mais inovadora.

Realizou-se anteontem uma importante conferência promovida pela Presidência Portuguesa da União Europeia sobre a modernização das universidades. Queremos para Portugal o que os outros países europeus estão a dar às suas universidades: mais liberdade e autonomia de organização; incentivo a processos de fusão, de concentração e de reforço das instituições; uma maior integração da ciência nas universidades; um aumento significativo do investimento no ensino superior. Será pedir muito?

Termino como comecei. Recordando um centenário, desta vez o 4º centenário do nascimento do homem que recusava "subir ao púlpito e não dizer a verdade". O Padre António Vieira dominava as palavras, mas sabia que elas não substituem as obras. É com as obras que a Universidade de Lisboa se compromete. É por elas que quer ser avaliada e julgada pelos portugueses: "O pregar que é falar, faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras" (Padre António Vieira).

Discurso de Abertura do Ano Académico 2007/2008
8 de Novembro de 2007

António Sampaio da Nóvoa
Reitor da Universidade de Lisboa