Opinião
Artigo de João Cunha Serra in ?Le Monde Diplomatique?

Contra a Mercantilização do Superior

22 de abril, 2004

O conhecimento tende a assumir, neste dealbar do século XXI, o papel do mais importante e valioso factor de produção. Longe vão os tempos em que os EUA ?importavam? braços para explorações de mão-de-obra intensiva. Hoje a economia mais poderosa do mundo ?importa? cérebros ou usa-os, onde quer que eles estejam, em empresas de conhecimento intensivo.

A Estratégia de Lisboa aprovada pelo Conselho Europeu ao fixar, em Março de 2000, o objectivo para a UE de, até 2010: ?tornar-se na economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social?, mostra que a UE não pretende ficar à margem da competição pela força produtiva emergente ? o conhecimento ? em que tem como principais concorrentes, num mundo regido pela globalização neo-liberal, os restantes pólos principais das economias mais desenvolvidas: EUA e Japão.

No caminho para a chamada Sociedade do Conhecimento, o ensino superior e a investigação estão a ser encarados de forma crescente como os principais motores da inovação para o aumento da competitividade e da produtividade das economias nacionais e comunitárias.

Em Fevereiro deste ano, a Comissão Europeia pôs à discussão um documento intitulado ?O papel das universidades na Europa do conhecimento?. Nele pode ler-se: ?O crescimento da sociedade do conhecimento depende da produção de novos conhecimentos, da sua transmissão através da educação e da formação, da sua divulgação pelas tecnologias da informação e comunicação e da sua utilização em novos serviços ou processos industriais. As universidades [abrangendo o termo todos os estabelecimentos do ensino superior] têm de singular o facto de participarem em todos estes processos devido ao papel fundamental que desempenham em três domínios: a investigação e a exploração dos seus resultados (?); a educação e a formação (?); o desenvolvimento regional e local?. Este documento recorda o objectivo aprovado em 2002 de aumento do esforço europeu de investigação e de desenvolvimento para 3% do PIB da União até 2010.

Já em 1999, a Declaração de Bolonha afirmava como primeiro objectivo ?promover (?) a competitividade internacional do sistema de ensino superior europeu?.

A Mercantilização do Ensino Superior

A educação é assim objecto de competição pelo controlo de quotas de um mercado muito apetecível: Os gastos com a educação representam cerca de 6% do PIB na média da OCDE, dos quais 80% são de origem pública. A Organização Mundial do Comércio (OMC), no âmbito das negociações do Acordo Geral do Comércio de Serviços (GATS), a concluir em 2005, tem pressionado os países mais desenvolvidos para alargarem os seus compromissos no que se refere à liberalização do comércio de serviços de educação.

O veículo privilegiado para o comércio transnacional no ensino superior, é a modalidade de ensino à distância, que tira partido das novas tecnologias da informação e da comunicação (e-learning). Os países mais envolvidos na exportação de ensino superior são os anglo-saxónicos. No ano de 2000, 35 universidades australianas ofereciam 750 programas transnacionais nos quais se encontravam envolvidos 31.850 estudantes de Singapura, Hong-Kong, Malásia e China.

Tem-se verificado, nomeadamente nos EUA, a associação de grupos industriais para criar as suas próprias empresas de ensino ?corporate universities? que cresceu de 15 na década de 80, para cerca de 400 a meio da década de 90.

O governo de Tony Blair prepara-se para liberalizar a denominação ?universidade?, permitindo que iniciativas privadas, independentemente da sua dimensão e abrangência disciplinar, possam adoptar a designação de universidades.

Todos estes movimentos representam ao mesmo tempo ameaças e desafios e têm levado as mais variadas instâncias representativas de interessados no ensino superior a tomar posição.

Refira-se, em particular, a Declaração Conjunta sobre o Ensino Superior e o GATS, assinada em 2001 por Associações de Universidades do Canadá, dos EUA e da Europa, onde se lê: ?O Ensino Superior existe para servir o interesse público e não é uma ?mercadoria?, um facto que os Estados Membros da OMC têm reconhecido em convenções e declarações da UNESCO e de outras instituições internacionais ou multilaterais.?

Também a organização europeia de estudantes (ESIB) e a Internacional da Educação (IE), da qual a FENPROF faz parte, se têm manifestado de forma convergente contra uma maior liberalização do comércio da educação, considerando a IE que ?o ensino superior transnacional constitui uma ameaça para o emprego dos docentes, para os níveis de vida, as liberdades académicas, a qualidade do ensino superior, a experiência do estudante e o papel fundamental das universidades na sociedade, o de guardiães e vectores do saber e da cultura?.

No âmbito nacional há a destacar a posição do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior: ?a educação constitui um direito humano fundamental, não podendo ser encarado como uma mercadoria sujeita a forças não reguladas e incontroladas do mercado? e ?a aplicação do GATS pode asfixiar os sistemas nacionais de ensino superior em países em vias de desenvolvimento?.

Este largo consenso sobre os riscos que comporta o comércio liberalizado do ensino superior ficou reflectido na declaração final assinada por 32 ministros europeus da educação, reunidos em Praga (2001), onde se reconhece que o ensino superior deverá ?ser considerado um bem público e que é e deverá manter-se uma responsabilidade pública?.

Outras tendências têm marcado o ensino superior a nível mundial. Para além do aumento da diversidade tanto no tipo de entidades fornecedoras, como na natureza, na duração e nas formas de provisão das formações, verifica-se que uma percentagem crescente de jovens ingressa em cursos de formação inicial e que o ensino superior se abre a novos públicos, designadamente no âmbito do ensino ao longo da vida, o que é muito positivo. Do lado negativo, anota-se que o crescimento dos gastos com o ensino superior público tem levado os governos de muitos países a transferirem parte significativa destes custos para os estudantes e suas famílias, ao mesmo tempo que é reduzido o financiamento público de forma a forçar as instituições a tornarem-se crescentemente dependentes de dinheiros privados, isto é, do mercado, quadro em que se insere o pendor e as pressões para a empresarialização da gestão das instituições públicas.

Em Portugal

No âmbito nacional, escamoteando a discussão dos seus reais objectivos, as receitas neo-liberais vão sendo levadas à prática na senda da torrente mercantilizadora e no contexto do espartilho imposto a pretexto da redução do défice público. A proposta de Lei de Bases da Educação e a Lei de Financiamento já aprovada, pretendem a inconstitucional igualdade de tratamento entre instituições públicas e privadas, incluindo no financiamento e o aumento das propinas. A proposta de Lei de Autonomia, visa a criação de condições para a liquidação da gestão democrática ou participativa e a aplicação de modelos autoritários que permitam mais facilmente instalar a gestão dita ?empresarial? ou ?profissional? que signifique a subordinação das missões das instituições aos objectivos imediatistas do mercado.

A resistência a esta política tem sido ineficaz por demasiado defensiva e pouco propositiva. O movimento estudantil deixou-se isolar do resto da comunidade académica e das suas organizações representativas. Os seus dirigentes, de um lado ao outro do espectro partidário, recusaram até ao momento todas as tentativas da FENPROF para o estabelecimento de um quadro de acção comum.

Contribuiu para tal isolamento o argumento demagógico de que o aumento das propinas representava uma medida de justiça social e se destinava ao aumento da qualidade, embora na aprovação do OE para 2004 se tenha verificado a redução dos orçamentos de funcionamento na exacta medida do aumento obrigatório das propinas. Entretanto, foi promovida a conflitualidade interna, atirando estudantes contra docentes e não-docentes, a propósito da fixação do valor concreto das propinas em cada instituição.

O argumento do benefício individual resultante de um curso superior, como justificação para o aumento das propinas foi igualmente usado e pretende escamotear o benefício para toda a sociedade, resultante do acréscimo da formação da população activa, não apenas porque se um licenciado ganha mais, também paga mais impostos (que são progressivos), mas sobretudo porque a contribuição média de um licenciado para o PIB em Portugal é 1,4 vezes superior à de um trabalhador apenas com formação secundária e 1,9 vezes superior à de um trabalhador que só completou o ensino básico[i].

Aos docentes, procurou-se apaziguá-los com o acenar da maioria absoluta de representantes seus nos órgãos colegiais representativos de toda a comunidade académica, mas em contrapartida, admitiu-se que tais órgãos pudessem não existir, além de se impor a figura do Director como órgão unipessoal e plenipotenciário obrigatório.

Ao arrepio das necessidades do desenvolvimento social e cultural do país e do aumento da competitividade e da produtividade da nossa economia, força-se a atrofia e a privatização do ensino superior público pela via conjugada da redução do financiamento, do aumento das propinas e do corte cego nas vagas de acesso, justificado demagogicamente com a redução do número de candidatos, resultante da diminuição demográfica, política que visa beneficiar ilegitimamente o ensino privado. Isto quando em Portugal o financiamento do Estado por aluno é menos de metade da média dos países da OCDE[ii], e o número de licenciados na população activa é cerca de metade da média da UE[iii].

Verifica-se também um desinvestimento na investigação. Há redução e atraso nos financiamentos, caminhando-se no sentido inverso do compromisso comunitário de atingir em 2010 os 3% do PIB (actualmente não chega a 1%).

Por este caminho não se vê como poderá o ensino superior em Portugal desempenhar o papel desejado pela Comissão Europeia e acima referido.

Para uma Agenda Alternativa

Neste quadro, é preciso definir uma agenda alternativa à neo-liberal. Importa criar condições para travar o movimento que visa a transformação do ensino superior numa simples mercadoria. Tem que se impedir que do processo decorrente da aplicação da Declaração de Bolonha venha a resultar a uniformização economicista das formações, facilitando a sua comercialização e ameaçando a preservação e o desenvolvimento da diversidade cultural dos povos europeus.

Uma agenda alternativa para além de não dispensar a resistência activa, terá que ser de proposta. Urge encontrar um projecto mobilizador para Portugal no rumo do seu desenvolvimento sustentável, no qual o ensino superior não poderá deixar de desempenhar um importante papel. É premente a construção de uma plataforma responsável entre as organizações representativas dos três corpos da comunidade académica que, preservando a autonomia de cada uma delas, trace um caminho que não represente a defesa do statu quo que facilita a ofensiva do neo-liberalismo que aposta claramente na privatização e na submissão do ensino superior ao mercado, implicando a liquidação dos direitos de participação na gestão, da colegialidade das decisões e das liberdades académicas, e até da liberdade de opinião e de criação.

É certo que sucessivos governos têm fortes responsabilidades na situação actual, mas não é possível continuar a aceitar, com o actual conformismo, a ineficiência bem patente nas elevadas taxas de insucesso e de abandono escolares. Igualmente não são aceitáveis os inadequados métodos pedagógicos e de avaliação que não têm em real conta os objectivos de formação cultural, humanística e comunicacional comuns a toda a formação superior. Não pode continuar a desvalorização da formação e do empenho pedagógico dos docentes. Face às ameaças do ensino transnacional via e-learning, é preciso valorizar mais o ensino presencial (o que pode significar diminuir as horas de aula por aluno, tornando-as simultaneamente mais eficazes) e valorizar o papel pedagógico da investigação na formação dos alunos. Têm que ser encontrados caminhos para motivar docentes e não-docentes para a aquisição de mais e melhores qualificações. Será necessário ainda criar condições efectivas para o exercício das liberdades académicas, de opinião e de participação, indispensáveis a um ensino superior crítico, criativo e inovador[iv].

Só uma atitude pró-activa, que questione o statu quo e contribua para uma melhoraria significativa dos indicadores de eficiência, aumentando a qualidade, e, simultaneamente, que seja reivindicativa e não conformista, poderá criar as condições de força interna e de apoio da sociedade para vencer a batalha em defesa do ensino superior público e do seu insubstituível papel para o desenvolvimento do país.

João Cunha Serra

Publicado in ?Le Monde Diplomatique? de Dezembro



[i] Rosa, Eugénio, ?Escolaridade, Qualificação Profissional e Desenvolvimento em Portugal?, 2003

[ii] OCDE, ?Education at a Glance?, 2003

[iii] Eurostat, 2002

[iv] UNESCO, ?Recomendation concerning the Status of Higher-Education Teaching Personnel? , 1997