Nacional
Intervenção de Paulo Sucena

Um romance memorável

09 de novembro, 2015

1. O foco que vai iluminar a narração e a diegese de «Os Memoráveis» é uma fotografia encontrada em casa do jornalista António Machado, pai da narradora Ana Maria Machado, casado com uma belga que figura na fotografia tirada no restaurante Memories e na qual ficaram fixados os rostos dos convivas que participaram naquele jantar, realizado em Agosto de 1975, em que se distinguem “El Campeador” (Otelo Saraiva de Carvalho), “Charlie 8” (Salgueiro Maia), o “Oficial de Bronze” (Vasco Lourenço), entre outros participantes (as alcunhas devem-se à belga Rosie Honoré Machado, mãe da narradora).

2. Quarenta anos depois, o dia inteiro, inicial e limpo de 25 de Abril de 1974 chega-nos não já em forma de poema mas de um romance escrito com uma inestimável independência de espírito, sendo a Revolução de Abril abordada sob a perspectiva de duas mulheres que detêm o poder de narrar e o usam com extrema eficácia.

Usando palavras da personagem Ana Maria Machado, poder-se-á dizer que «Os Memoráveis» é um romance de “encantamento e melancolia”, escrito numa linguagem por vezes fulgurante, dotada de uma grande intensidade que, segundo Keats, é onde assenta a “excelência de toda a arte”, porque essa intensidade faz “evaporar todas as coisas desagradáveis, por colocá-las em apertada relação com a Beleza e a Verdade”. Não é por acaso que em «Os Memoráveis» se diz, na página 43, que “a beleza é o grau mais elevado da verdade”. E o certo é que Lídia Jorge nos legou um romance de inegável beleza que nos move e nos co-move e ainda nos serve de lenitivo quando a verdade é feia.

3. Uma obra literária é um mundo simultaneamente unificado e diferenciado que se revela no que o texto diz. E di-lo não de uma forma fechada e definitiva, antes exigindo uma leitura dinâmica com vista à produção de sentido. Este processo de desenvolvimento do mundo do texto exige que a tarefa interpretativa dê relevante atenção à intencionalidade da linguagem e à sua literariedade de natureza eminentemente transformadora, ao contrário da linguagem científica que se caracteriza pela fidelidade da reprodução.

O texto literário de Lídia Jorge vai haurir a sua seiva nos contraditórios terrenos da realidade que a romancista recria lapidarmente, através de uma linguagem imersa na temporalidade espelhada num discurso que respira na policromia do passado, do presente e do futuro. Sendo certo que na construção do sentido, a narrativa de Lídia Jorge, sem postergar os riquíssimos veios do passado, é para os horizontes do futuro que se projecta, nela se pretende “compreender o que está para vir”.

4. Em «Os Memoráveis», Lídia Jorge surge-nos como uma verdadeira tecedeira do sentido, alguém que pretende incentivar o leitor a ler a realidade de um modo outro, ancorada numa linguagem cintilante, ela própria transformadora da realidade e da assonância e dissonância dos acordes que dela se desprendem.

Lídia Jorge não pretende neste romance percorrer trilhos políticos, históricos ou ideológicos já caminhados, antes visa, e nisso também reside a força e o encanto de «Os Memoráveis», atingir algo que se aproxime da plenitude do sentido.

5. Santo Agostinho contrapunha à demonstratio a narratio que integra no seu processo os factos que no tempo se foram desenrolando de uma forma que largamente suplanta o narrador, cujo trabalho é o de ler, de interpretar o que está para lá do seu universo pessoal. Ou seja, e dito de outro modo, na esteira de Paul Ricoeur, o texto narrativo é uma escrita estendida sob um arco temporal mais ou menos extenso e impregnada de historicidade, entendendo-se escrita, como queria Roland Barthes, “um além da linguagem que é ao mesmo tempo a história e o partido que nela se toma”. Lídia Jorge em «Os Memoráveis» dá corpo à asserção de Barthes de uma forma esplêndida, com plena consciência de que “o que é re-significado pela narrativa é aquilo que já foi pré-significado ao nível do agir humano” [Paul Ricoeur, “Temps et Recit”, I, p. 122]. Estamos perante um romance alimentado pela história e não pelo mito. Um romance que fala de “um povo pobre, sem álgebra, sem letras, cinquenta anos de ditadura sobre as costas, o pé amarrado à terra, e de repente acontece um golpe de Estado, todos vêm para a rua gritar, cada um com sua alucinação, seu projecto e seu interesse, uns ameaçando os outros, corpo a corpo, cara a cara, muitos têm armas na mão, e ao fim e ao cabo insultam-se, batem-se, prendem-se, e não se matam” (p. 17). É esta realidade que Lídia Jorge vai re-significar através de um conjunto de personagens, alguns com inequívocos referentes em figuras cimeiras da Revolução de Abril e outros totalmente ficcionados, cuja complexidade emerge frequentemente de um dialogismo não dialéctico, isto é, que não conduz a nenhuma síntese, ao modo da teorização de Bakhtine.

6. Neste livro “empurrado pela tristeza”, Lídia Jorge sabe que não é possível “acordar os mortos”, mas como que pretende em «Os Memoráveis», romance desencantado, amargo, algumas vezes pungente, deixar na fímbria da sua escrita um sopro de esperança e o fio de futuro que sempre se desprende de todo o tempo histórico, mesmo que ele seja eivado de uma densa disforia.

A temática de «Os Memoráveis» prende-se fundamentalmente com a Revolução de Abril de 1974 e seu devir ao longo de décadas. Um Abril que foi um instante luminoso que o tempo obscureceu. Um momento de viva esperança que os meses e os anos foram esgarçando até à laceração provocada pelos espigões do mais desumano capitalismo que lançou Portugal numa terrível crise de diversas dimensões, que se reflecte também na instância produtora do romance. Deste modo, surge com naturalidade ao longo das páginas de «Os Memoráveis» um fragmento heterodiegético ou, se preferirem, uma narrativa-na-narrativa, isto é, uma história autónoma encaixada na narrativa principal, a admirável história do jornalista António Machado, que antecipava o futuro em duas colunas da última página do seu jornal, de onde acabou por ser despedido. É uma história cruciante que, de algum modo, não diria totalmente, nos surge como uma mise en abyme do romance, porque a amargura, a melancolia, a frustração, a perplexidade, a raiva que se plasmam na personalidade de António Machado representam, no singular, o ethos colectivo que transparece no romance.

7. Lídia Jorge considera «Os Memoráveis» “a crónica de uma conquista imperfeita” e um dia concluiu uma entrevista dizendo que pelas páginas deste seu romance “passa a minha carne”. Por meu lado, ouso terminar afirmando que por este livro passa a sólida e reflectida arte romanesca da escritora, a sua língua literária de altíssima qualidade e uma profunda e humanista visão do mundo, património não só da romancista, mas também da mulher com um exemplar sentido de cidadania e com uma presença activa, empenhada e solidária na sociedade, o que é manifestamente demais para poder ser suportado por qualquer espírito de seita, seja literária, académica, política ou outra. Porém, omissões, esquecimentos ou injustiças não são em si bastantes para apagar o nome de Lídia Jorge da primeira fila dos romancistas portugueses contemporâneos.

Paulo Sucena

Lisboa, 7 de Novembro de 2015