Nacional
"O referendo, com mais 1 milhão de votos do que os recolhidos em 98, demonstra a importância crescente dos movimentos de cidadãos" (Carvalho da Silva)

Finalmente, as mulheres vão ser tratadas com dignidade!

12 de fevereiro, 2007

Houve uma alegria incontida na sala do Altis: todos esperavam pelas primeiros resultados anunciados nos três canais de televisão. Às 20 horas, soltaram-se enfim as gargantas e o largo recinto - ontem pequeno para tanta gente - transbordou de aplausos. "Vitória! Vitória! Vitória!".

(...) Maria Antónia Palla, combatente de longa data pela despenalização do aborto, não escondia a emoção: "É o reconhecimento de que as mulheres têm capacidade para assumir uma decisão que é a mais grave que se pode tomar na vida", disse esta jornalista ao DN. Deixando um aviso ao Governo, onde o seu filho (António Costa) tem assento como ministro de Estado e da Administração Interna: "Agora é precisa muita atenção à regulamentação da lei, para que não se perca esta dinâmica. Não devem ser impostas muitas limitações, como comissões de acompanhamento e complicações do género, que são um atestado de menoridade da mulher."

Outro aviso, com o mesmo destinatário, foi feito pela sexóloga Marta Crawford, uma das oradoras em nome dos cinco movimentos que fizeram campanha pelo "sim", ontem reunidos no hotel lisboeta que costuma servir de palco às noites eleitorais do PS.

"Esta vitória representa o princípio do fim do aborto clandestino em Portugal. Compete agora à Assembleia da República a alteração urgente da lei", acentuou Marta Craw-ford, sublinhando que o referendo constitui um "sinal claro ao Ministério [da Saúde] para que o Serviço Nacional de Saúde se organize modo a que a lei seja implantada".

O serão era de festa entre os adeptos do "sim". A socialista Marta Rebelo cumprimentava o social-democrata Vasco Rato. O escritor Rui Zink abraçava a jornalista Leonor Xavier. Helena Pinto, deputada do Bloco de Esquerda, lançava um sorriso cúmplice ao líder da Juventude Socialista, Pedro Nuno Santos. Também satisfeito, mas de semblante muito mais tranquilo, o ex-líder parlamentar do PCP, Octávio Teixeira, lamentava ao DN que o Presidente da República não tivesse feito "um apelo mais firme e mais claro à participação dos eleitores".

Mais um milhão

O secretário-geral da CGTP circulava entre a pequena multidão concentrada na cave do Altis. "Este referendo, com mais um milhão de votos do que os recolhidos em 1998, demonstra a importância crescente dos movimentos de cidadãos", disse Manuel Carvalho da Silva ao DN.

Ali acorreram também o juiz Eurico Reis, a actriz São José Lapa, o apresentador José Carlos Malato, a escritora Inês Pedrosa, a actriz Sandra Cóias e o ex-deputado da UDP Mário Tomé. Ana Drago, do Bloco de Esquerda, não escondia a satisfação, tal como Maria João Sande Lemos, que em 1974 acompanhou Francisco Sá Carneiro na fundação do PSD.

Maria José Alves, um dos rostos principais da campanha pelo "sim", foi brindada com a maior ovação da noite quando proferiu a primeira declaração formal em nome dos movimentos, mal foi confirmada a vitória. "O 'sim' ganhou! No referendo mais participado de sempre, o 'sim ganhou! Este resultado inequívoco confere à Assembleia da República um mandato para legislar de acordo com a vontade dos portugueses", sublinhou esta médica obstetra, que suscitou nova onda de aplausos ao declarar: "Finalmente as mulheres vão ser tratadas com respeito e diginidade. Portugal junta-se aos restantes países da Europa ocidental no respeito pelos direitos humanos."

Outro orador da noite foi o sociólogo Duarte Vilar, também muito aplaudido ao declarar: "Não basta que a interrupção voluntária da gravidez se torne segura. É preciso que se torne cada vez mais rara."

Havia quem espreitasse os canais de televisão espalhados pelas imediações. Paulo Portas, na TVI, era escutado com particular atenção. Outros defensores do "não" nem tanto. "O que é que a Isildinha está a dizer?", perguntava alguém, em tom irónico, vendo a ex-deputada social--democrata Isilda Pegado - uma das principais activistas do "não" - aparecer no ecrã, de som desligado.

Referendo em questão

Ninguém punha sequer a hipótese de o referendo não ser vinculativo. Mas face à fraca participação popular - característica que se mantém de referendo para referendo, embora com tendência para regredir - não falta quem considere necessário "repensar" o instituto do referendo. "Os portugueses têm demonstrado uma clara preferência pela democracia representativa, em desfavor da democracia directa. Isto merece ser reflectido", disse Marta Rebelo ao DN. Ana Sara Brito, outra dirigente do PS, observa que "o "referendo deve ser reavaliado profundamente". "

"De futuro é preciso haver um cuidado extremo nas matérias que são levadas a referendo", adverte Octávio Teixeira. Sónia Fertuzinhos, deputada do PS, admite que "terá de ser feita" essa discussão. Mas não para já. A prioridade ontem era outra: "Vamos festejar", gritou alguém.

DN, 12/02/2007