Todas as notícias
Por: Graça Barbosa Ribeiro, jornalista

Frio? Dah!

04 de maio, 2004

David Justino olhou, pesaroso, para o aparelho de ar condicionado. Com um suspiro levantou a gola do sobretudo, tapou a boca com o cachecol e, depois de se certificar de que a porta do gabinete estava bem fechada, deu dez pulos, batendo as palmas. Soltou mais um ofegante suspiro de desalento, puxou as ceroulas para cima - "quem diria que isto ainda existia?", sussurrou, com um sorriso trágico - e sentou-se à secretária de trabalho. Numa folha em branco treinou a assinatura. Duas, quatro, dez vezes. Apreciou o resultado, aplicou-se mais um bocadinho mas... nããã... tinha mesmo que tirar a luva da mão direita, para assinar os despachos.

Há dias assim. Em que nos sentimos compelidos a responder aos desafios, não sei, assim uma espécie de formigueiro que nos leva a dizer: "Estás à espera de quê, que eu me encolha? Pois aqui estou!" "Maldito formigueiro", resmungou o ministro da Educação, batendo com os pés.

Começara tudo com mais uma das lamechices do Sindicato dos Professores da Região Centro que - entre uma conferência de imprensa para clamar contra o desemprego e um comunicado a apregoar irregularidades na colocação dos docentes - resolvera queixar-se do frio nas escolas. "Dah!", gritara o ministro, a folhear os jornais - "Dah!!!"

É do conhecimento geral que Portugal tem um clima temperado - um ano quase inteiro de sol, garantiu o próprio Presidente da República, em visita recente à Noruega. E foi com estes dados que, indiferente ao ronronar do aparelho de ar condicionado e até mesmo ao irritante zumbido do desumidificador, o ministro se lançou na leitura das notícias. "Dah!", soltou, indignado com a descrição de professores enregelados e crianças transidas de frio em dois terços das escolas do Litoral Centro.

Foi então que deparou com o desafio do sindicato: que fossem desligados os sistemas de aquecimento em todos os gabinetes do Ministério da Educação até à resolução do problema. Ainda agora estava para perceber porque saltara da cadeira, de dedo em riste: "Estás à espera de quê, que eu me encolha?!"

O berro lançou o caos no ministério. Desligados os aparelhos, os funcionários perderam pouco tempo em protestos, correndo antes para as respectivas casas de onde regressaram submersos sob várias camadas de roupa. Apesar disso, queixavam-se de que tinham os movimentos tolhidos e dificuldades de concentração. "Dah!", exclamou o ministro, com desprezo, antes de se fechar à chave no gabinete para enfiar o gorro de lã.

Mas isso fora há dois dias. Agora - há momentos assim, em que nos sentimos compelidos a desistir, não sei, uma espécie de formigueiro que nos leva a dizer "Mas onde é que eu tinha a cabeça quando te dei ouvidos?" - estava tentado a desmarcar a conferência de imprensa em que tencionava anunciar que em Portugal não há frio, pelo que as consequências de tal coisa no rendimento de professores e alunos é, obviamente, impossível.

Com a mão trémula, accionou o aparelho de ar condicionado e esperou que a subida de temperatura lhe restituísse a capacidade de raciocínio. Tirou o sobretudo, atirou com as luvas para trás das costas e olhou para os jornais do dia, para se certificar de que, como previra, as notícias sobre o frio nas escolas tinham sido substituídas pela polémica do exame no 6º ano de escolaridade. Se fosse preciso inventava outra e, entretanto, havia de chegar a Primavera. Tirou também o cachecol, sentindo-se revigorado. Depois, encostou-se para trás na cadeira ergonómica, cruzou as mãos atrás da cabeça e sorriu: "'Tá-se!"

Sábado, 06 de Março de 2004