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"Público", 20/10/2007

Visitas amistosas

23 de outubro, 2007

Os portugueses, nos termos da nossa Constituição, "têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização", sendo reconhecido a todos os cidadãos "o direito de se manifestarem".

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, "para além da exigência do carácter pacífico e da ausência de armas, nenhum outro limite substancial existe para a liberdade de reunião ou de manifestação". Ainda segundo estes reputados constitucionalistas, "as autoridades públicas estão obrigadas a tratar as reuniões e manifestações de 'forma amistosa' dentro do quadro das suas competências e a colaborar positivamente segundo padrões de razoabilidade e adequação na efectivação desses direitos".

Saber se a visita dos dois agentes da Polícia de Segurança Pública às instalações do Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) na Covilhã, se enquadra dentro desta 'forma amistosa'" de tratar as manifestações é uma questão que não ficou completamente esclarecida pelo Ministério da Administração Interna (MAI).

Segundo o texto A verdade sobre o caso da Covilhã, publicado no site do MAI (é sempre fascinante ver um governo a definir a verdade...), tudo decorreu na maior das normalidades, sem "ingerências ou intervenções políticas". Os agentes policiais foram somente recolher informações e "não há qualquer indício de que a acção visou constranger os professores, em particular o SPRC, antes se verifica que a visita às instalações foi aleatória". Será que se quer dizer que tanto podiam ter ido ao SPRC como à Associação Recreativa Musical Covilhanense? Fica-nos a dúvida.

Mais esclarece o MAI no seu site que "os dois elementos policiais negam terem sido proferidas advertências quanto às expressões que seriam utilizadas na acção de rua, mas de todo o modo a expressão que é assacada ao chefe Pereira é uma reprodução do conteúdo da lei, pelo que, por definição, não constitui ilegalidade". No entanto, não sendo possível "estabelecer qualquer controlo sobre o objecto ou assunto da reunião ou sobre a mensagem ou objectivos da manifestação (não havendo, neste aspecto, mais limites do que os da liberdade de expressão)", como referem os já citados constitucionalistas, não pode deixar de se entender, tendo em conta as então recentes declarações do primeiro-ministro, que a deslocação dos agentes da autoridade ao SPRC, mesmo que só para lembrar a existência das leis da República, configura uma forma de coerção ou, pelo menos, de pressão. Pressão não governamental mas meramente policial. Mas pressão.

Terá ficado, assim, o assunto reduzido à iniciativa de um "cabo-de-esquadra" da Covilhã que pretendeu saber um pouco mais sobre uma manifestação no sentido de garantir a segurança do primeiro-ministro e o seu bemestar físico e psicológico? Tudo não terá sido mais do que excesso de zelo, como noutros casos que têm vindo a brotar no nosso jardim à beira-mar plantado e que mostram bem como está profundamente enraizado no nosso país o desejo que anima os pequenos poderes de bem servirem o poder maior? É possível que sim. É seguramente triste e confrangedor, mas é este o pequeno país que temos e que somos...

Ainda houve quem lembrasse que, afinal, era a falta de comunicação prévia por parte dos promotores da manifestação que justificava a diligente diligência dos nossos cívicos. Parece, no entanto, que os agentes da PSP não se dirigiram às instalações dos promotores, como seria lógico, para aí obterem informações, mas antes se deslocaram, "aleatoriamente" é certo, às instalações de um sindicato que, independentemente da razão ou falta dela que lhe vai assistindo, tem protagonizado uma sistemática oposição ao Governo. Sendo certo que mesmo esta necessidade de comunicação prévia das manifestações é de duvidosa constitucionalidade: Jorge Miranda, outro reputado constitucionalista, considera o pré-aviso "excessivo - e, por conseguinte, inconstitucional - quanto a reuniões em locais abertos ao público".

As manifestações, como é sabido, decorreram em boa ordem e nesse caso, como Gomes Canotilho e Vital Moreira referem na sua Constituição Anotada, a falta de comunicação prévia não justifica qualquer proibição ou dispersão da manifestação, já que o aviso prévio destinase tão-só a garantir que as autoridades possam tomar as medidas necessárias para que tudo decorra em boa ordem. Ora, se tudo decorreu bem sem o aviso prévio, provada está a sua desnecessidade.

Na verdade, a deslocação dos cívicos ao sindicato, para além de reveladora de uma mentalidade provinciana, paternalista e subserviente, que permeia a nossa administração e as nossas autoridades, poucos "estragos" terá, assim, causado no exercício da liberdade de manifestação.

No entanto, há um aspecto que se tornou evidente com este caso da Covilhã: a regulamentação do direito de reunião e de manifestação consta de um decreto-lei de 1974, anterior à Constituição. O diploma em causa terá, provavelmente, disposições "ultrapassadas" e/ou inconstitucionais. Será altura de a mudar? De fazer uma nova lei que tenha em conta a Constituição e as realidades actuais?

Parece bem que não. Em primeiro lugar porque, em termos dos direitos em causa, temos vivido menos mal. É certo que com um ou outro sobressalto, quando alguns governadores civis se deixam excessivamente dominar pelo já referido desejo de agradar ao poder maior que os nomeou. Mas, no essencial, a liberdade de manifestação está garantida.

Mas, sobretudo, não devemos ter uma nova lei porque a ânsia legislativa deste Governo em termos de direitos fundamentais obedece a uma lógica de defesa e continuidade do (seu) poder que nada de bom nos pode trazer. É caso para nos manifestarmos contra uma lei que ainda não conhecemos!

Francisco Teixeira da Mota
Advogado

"Público", 20/10/2007