Intervenções
Intervenção de Francisco Almeida

Contra a Municipalização Da Educação

15 de junho, 2019

O governo, o PS e o PSD acordaram, entre si, legislação com vista à chamada transferência de competências para as câmaras municipais. Nasce assim, em agosto de 2018, a Lei-quadro 50/2018 com disposições relativas a mais de uma dezena de áreas da vida nacional. Posteriormente, em janeiro deste ano, com o Decreto-Lei 21/2019, o governo transfere para as autarquias locais um conjunto de responsabilidades na área da educação.

Se ouvirmos um membro do governo ou um dos seus comentadores encartados que de tudo sabem e que de tudo falam, em regra sem a presença do contraditório, estamos perante a grande reforma de que o país precisa.

Tentemos aqui perceber do que se trata e o que este processo significa.

Em primeiro lugar registe-se que, nesta como noutras estruturantes matérias, o PS entende-se com os seus velhos amigos do PSD.

O governo quer transferir para as autarquias locais, entre outras, as responsabilidades em matérias como a ação social escolar, cantinas e refeitórios, gestão do pessoal não docente e aquisições de materiais e equipamentos para as escolas. Mas, o governo tem algum estudo ou evidência de que estas responsabilidades são mal exercidas pelos órgãos de gestão das escolas e agrupamentos ? Não tem. E do que é conhecido, sabemos que as escolas desempenham bem as responsabilidades naqueles domínios. O seu modelo de direção e gestão é outra conversa.

É unânime a opinião, nomeadamente de alunos e pais, de que funcionam melhor as cantinas que são geridas pelas escolas. No que respeita ao pessoal não docente, os problemas mais relevantes não se situam na responsabilidade pela sua gestão, mas na falta destes profissionais, na maioria das escolas.

Está claro que a maioria das competências e responsabilidades que o governo transfere para as autarquias podem, com vantagem, ser exercidas pelas escolas e agrupamentos – falamos de refeições e cantinas, ação social escolar, gestão do pessoal não docente, AEC, gestão de recursos educativos, aquisição de bens, planeamento e gestão dos estabelecimentos de ensino. 

O caminho do governo do PS não é significativamente diferente do processo iniciado pelo governo PSD/CDS – descartar responsabilidades e justificadas insatisfações e protestos, bem como abrir espaço à contratualização e privatização de vários serviços da Escola Pública. Com esse processo de transferência de competências, um grande número de autarquias assumirá um tal volume de responsabilidades que as empurrará para a contratualização, com privados, de muitos serviços – é a vida e a experiência que o atestam. 

“ Há um fio condutor para esta proposta, qual seja o de impor à Educação nacional o modelo de mercado, agora de mercado municipal” (…) “os que se têm movido para desregular o sector por esta via, sem que nenhuma fundamentação empírica o justifique, dão um passo substancial. (…) Ou dito de outro modo: a apetência do Governo por ter cada vez menos responsabilidades sociais vai sincronizada com a ânsia caciqueira de mais poder por parte dos autarcas. Com esse engodo, os autarcas acabam promovendo políticas a que se oporiam se a iniciativa partisse do Governo central. E o Governo central subtrai-se, maquiavelicamente, aos protestos que as suas políticas originam” – citei Santana Castilho num artigo publicado, em 2014, no jornal Público e que tem evidente atualidade.

 

Uma outra questão está clara – o que o governo transfere para as autarquias locais são competências hoje exercidas pelas escolas e agrupamentos. O governo não descentraliza. O governo (re)centraliza e cria um novo patamar na administração educativa, burocratiza e complica ao passar competências das escolas para as autarquias.  No que respeita aos seus tradicionais e determinantes poderes nomeadamente, quanto a constituição de turmas, organização de horários, apoios a alunos que deles necessitam e constituição e condições de funcionamento de estruturas intermédias de gestão o ME não abdica de nenhum dos seus poderes. Não os transfere para as escolas, antes os continua a concentrar na sua estrutura político-administrativa com recurso a um sem número de plataformas informáticas.

Como é óbvio, os objetivos do governo do PS e do PSD não estão ainda todos explícitos. Esta é apenas uma das fases para chegar à completa municipalização das escolas e da educação, nomeadamente a colocação de professores e educadores, a carreira dos docentes e a gestão da sua atividade profissional. Aliás declarações públicas de alguns autarcas não deixam lugar a dúvidas – vejam-se declarações dos presidentes das câmaras de Lisboa e Porto nas respetivas tomadas de posse.

A FENPROF sempre defendeu a descentralização e a construção da autonomia das escolas.

Das propostas da FENPROF fazem parte os Conselhos Locais de Educação. Os Conselhos Locais de Educação defendidos pela FENPROF, devem exercer poderes na área de cada concelho, em domínios como: organização da rede escolar e da rede de transportes escolares; oferta educativa e definição das áreas vocacionais do ensino secundário; ocupação de tempos livres e atividades extracurriculares; componentes curriculares locais; gestão integrada de recursos comunitários; elaboração de projetos de intervenção educativa local; gestão da ação social escolar; integração das escolas na comunidade e promoção de medidas com vista ao sucesso educativo e ao combate do abandono escolar. Para a FENPROF, os Conselhos Locais de Educação devem ter uma forte, mas não exclusiva, participação das autarquias e das escolas, contando ainda com a presença, nomeadamente, de pais, estudantes, interesses económicos, sociais e culturais. Não se trata dos atuais Conselhos Municipais de Educação, mas de órgãos dotados de autonomia e poderes próprios de administração e coordenação, na área de cada concelho.

A par com a descentralização de competências para os Conselhos Locais de Educação, a FENPROF há muito que reclama o desenvolvimento de um processo de construção da autonomia das escolas que defina de forma clara os poderes de decisão que os órgãos, democraticamente eleitos, das escolas e agrupamentos devem exercer.

Estas propostas da FENPROF podem e devem ser entendidas por oposição à situação atual em que, por controle remoto, a estrutura político-administrativa do ME dirige todas as escolas e agrupamentos do país.

 

Este caminho de descartar responsabilidades vem sendo seguido por diversos governos do PS e do PSD desde 1983 e 1985 e, mais recentemente, em 2015. Em 1983 e 1985 os professores derrotaram estas opções com recurso à ação e à luta. Em resultado do protesto generalizado dos professores e das ações de luta que a FENPROF organizou em muitos concelhos, em 2015, o governo PSD/CDS não conseguiu ir além da contratualização com quinze municípios.

Desde os tempos do governo PSD/CDS até hoje, no combate à municipalização da educação, a FENPROF desenvolveu e participou num vasto conjunto de ações. Realizou uma consulta em que participaram mais de 50.000 docentes com 98% a afirmarem a sua oposição a este processo. Promoveu uma declaração conjunta com a ANDE, CNIPE e a FNSTFPS. Promoveu a aprovação de moções nas reuniões das estruturas intermédias de gestão das escolas e agrupamentos. Escreveu por duas vezes a todas as câmaras e assembleias municipais apelando a que recusem o processo que o governo está a desenvolver. Colocou esta questão como objetivo de luta em várias concentrações e manifestações. Decorre em muitos concelhos do país a recolha de assinaturas em abaixo-assinados concelhios a entregar às câmaras e assembleias municipais. Dirigentes da FENPROF e dos seus Sindicatos membros participaram em inúmeros debates organizados por autarquias e associações de municípios. A tudo isto o governo manteve-se surdo e mudo. Mas, mais cedo do que tarde, os professores e educadores derrotarão também o processo de municipalização que o governo minoritário do PS tem em curso. É nesse sentido que aponta a proposta de resolução sobre a ação reivindicativa.