Iniciativas
Jornal da Noite, SIC

Saber ler, escrever, contar e não pensar

12 de abril, 2014

http://sicnoticias.sapo.pt/especiais/40anos25abril/2014-04-05-saber-ler-escrever-contar-e-nao-pensar

O Jornal da Noite de domingo continua a viagem por oito diferentes profissões, antes e depois do dia 25 de Abril de 1974. Através do testemunho de um protagonista mostramos como era trabalhar antes da revolução, o que mudou logo a seguir e como se está hoje em cada uma das áreas que escolhemos. Este domingo, recuamos ao tempo em que a instrução era vista como um factor de criminalidade logo, o melhor, era ensinar o mínimo. Essa tarefa cabia ao professor primário, ele próprio nada preparado para questionar.

"O professor primário deve, em geral, ser um apóstolo; e particularmente é preciso que o seja quando é chamado a colaborar, através da escola e fora da escola, em alguma obra social e mesmo política que exprima o idealismo fundamental do Estado Novo". O preâmbulo do decreto-lei nº 30.951, de 10 de dezembro de 1940, definia com clareza o perfil da pessoa em quem o Estado depositava a tarefa de ensinar a ler, escrever e contar, mas não a pensar.

Maria Helena Gonçalves forma-se na Escola do Magistério Primário de Bragança, um estabelecimento especializado de formação de professores para o ensino primário (hoje 1.º ciclo do ensino básico), quando o chefe do Governo português pensava, assim, em voz alta: "Grande parte do nosso povo, pela sua riqueza intuitiva e sobretudo pelas condições da sua existência e da sua atividade, não sente a necessidade de saber ler. (...) Deverá, com efeito, ensinar-se o povo a ler? Ou melhor, deverá impor-se a escolaridade obrigatória àquela porção das populações rurais que não sente necessidade da cultura?"

Colocada, com apenas 19 anos, na escola de Burmeirães, na freguesia de Boivães, concelho de Ponte da Barca, no Alto Minho, Maria Helena vê-se confrontada com outra forma de ser português, mas a mesma maneira de estar: cumprindo o que é imposto, sem questionar.

Para irem à escola, os meninos de Boivães tinham de caminhar quilómetros, por montes e vales, à chuva. Pelo caminho iam apanhando bocados de madeira e pinhas, a única lenha que a escola tinha para aquecer a sala e tentar secar as roupas. Não admirava, explica Maria Helena, que tantos alunos faltassem tanto!

Sem nunca terem pecado num lápis, as crianças traziam da escola a certeza de aprender apenas o suficiente para o dia-a-dia. Figuras importantes da sociedade portuguesa, como o escritor Alfredo Pimenta, defendiam: "Ensinar o povo português a ler e escrever, para tomar conhecimento das doutrinas corrosivas de panfletários sem escrúpulos ou das facécias malcheirosas que no seu beco escuro vomita todos os dias qualquer garoto da vida airada, ou das mentiras criminosas dos foliculários políticos - é inadmissível. Logo, concluo eu: para a péssima educação que possui e para a natureza de instrução que lhe vão dar, o povo português já sabe de mais (…) Um dos fatores principais da criminalidade é a instrução". Assim escreve no jornal "A Voz", em 1932.

Aprovada a Constituição de 1933, logo fica claro o recuo da política educativa no que toca ao ensino primário. É reduzido de quatro para três anos e são suspensas as inscrições em todas as Escolas do Magistério Primário, quer fossem oficiais ou privadas. Em vez de escolas, são criados postos escolares. Aparece um novo tipo de professores: os regentes escolares. Cinco anos depois, o regime começa a reconhecer a falta de professores. Em 1942, são reabertas as Escolas do Magistério Primário de Lisboa, Porto, Coimbra e Braga.

Maria Helena acaba o curso em 1966. Da professora primária era esperado um comportamento moral irrepreensível, uma atitude abnegada e a capacidade de viver com grande espírito de sacrifício. Tinha de transmitir os ideais do Estado Novo e aceitar que o Ministro da Educação Nacional autorizasse ou não o casamento com o noivo que cada professora escolhia.

Sempre com um sorriso, Maria Helena vai recordando como foi para chegar ao que sonhou que iria ser, depois do dia 25 de Abril de 1974. A gestão da escola queria-se democrática. Os professores informados e envolvidos. Os alunos interessados e com opinião. Começava a valorização da construção em debate. Era tempo do regresso em força ao movimento sindical.

Hoje, a esperança que levou à batalha deu lugar a uma "grande tristeza", confessa Maria Helena Gonçalves. A antiga professora faz questão de fechar a conversa com um pedido às crianças: “fizemos a revolução para vocês, aprendam o que foi e não a estraguem!”   5/04/2014

Ficha técnica:

Jornalista: Catarina Neves

Imagem: Humberto Candeias

Edição de imagem: Andrés Gutierrez

Grafismo: Isabel Cruz

Produção: Isabel Mendonça

Coordenação: Pedro Mourinho

Agradecimentos:

Junta de Freguesia de Boivães

Clube Futebol Benfica