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Intervenção do Secretário-geral da FENPROF

Formação de Professores e Estatuto de Carreira

21 de março, 2022

Colóquio – Formação de Professores e Estatuto da Carreira Docente 

Lisboa (FCSH da UNL), 18 de março de 2022

 

Mário Nogueira

Secretário-Geral da FENPROF

 

Cumprimento todos/as os/as presentes

Agradeço ao Vítor o convite que, com muito gosto, aceitei. 

Os temas deste colóquio são atuais, o debate é oportuno e a tomada de medidas nestes domínios é urgente se a intenção for agir para preparar o futuro. Uma urgência que, face à cada vez mais evidente falta de professores, obrigará o próximo governo a colocar na agenda de prioridades a revisão do quadro legal de habilitações para a docência, que é de 2014, e a valorização da profissão, também pela via do seu estatuto de carreira. Uma Educação de qualidade e uma Escola Pública adequadamente organizada exigem professores qualificados, em número suficiente, reconhecidos e valorizados. Em suma, o tempo próximo também deverá ser tempo dos professores. 

A falta de professores foi problema ignorado pelo governo ainda em funções e por anteriores. Em 2011, o então Primeiro-ministro Passos Coelho aconselhava os professores a emigrarem, sugerindo Angola e não só, pois o Brasil também tinha uma grande necessidade de professores; em 2016, em França, o Primeiro-ministro António Costa considerava uma oportunidade de emprego para os professores de Português a emigração para aquele país; em 2020, na única reunião em que participou, Tiago Brandão Rodrigues, confrontado com o problema já vivido em muitas escolas das áreas de Lisboa e Algarve, considerou que estávamos perante casos pontuais amplificados por sindicatos e comunicação social. No ME, mesmo quem reconhecia o problema, entendia-o como a normal expressão da lei da oferta e da procura. 

Hoje, o problema é indisfarçável e exige medidas concretas em tempo curto, com riscos, sabemos, pois a pressa e o imediatismo, por norma, são maus conselheiros. 

O Conselho Nacional de Educação há muito que alerta para a situação. Em 2018, no relatório sobre o Estado da Educação 2017, lia-se “Tendo em conta o envelhecimento da população docente e a redução na procura dos cursos de formação de professores, urge fazer e divulgar rapidamente um estudo da necessidade de novos professores para os diversos grupos de recrutamento”. Mais tarde, na Recomendação n.º 3/2019, voltava a alertar para o envelhecimento da profissão “aproximando-se uma saída em massa que poderá rondar os 30 000 professores dentro de oito anos” e perante um quadro de “eventual rutura”, o CNE considerou haver “um problema de insustentabilidade que urge antever e solucionar”, referindo, ainda a necessidade de reverter a “falta de atratividade” da profissão e de contrariar a sua desvalorização. 

Também a DGEEC divulgou dados para a década de 20, sublinhando que “mais de metade dos professores do quadro (57,8%) poderá aposentar-se. (…): 17 830, nos primeiros cinco anos, 24 343 nos cinco anos seguintes e 9810 entre 2029 e 2030. 

A resposta a este problema não é simples e obriga a intervir em diversos domínios, entre eles o da formação de professores e também a carreira, neste caso, numa perspetiva ampla que não se esgota na estrutura, no salário ou nas normas de progressão, estendendo-se à contratação e ao prolongado período em que muitos se encontram com vínculos precários (os que entraram nos quadros, este ano letivo, tinham em média, 16 anos de serviço, trabalhando há mais de 20, e já perto dos 50 de idade); à necessidade de medidas que combatam o desgaste provocado pelas condições de exercício da profissão, que se manifesta em índices elevados de exaustão emocional, stresse e burnout; ao excessivo tempo imposto pela idade legal para a aposentação. Estes são, entre outros, fatores que contribuem para a perda de atratividade da profissão docente, levando à fuga de milhares jovens já qualificados, nada sendo feito para os recuperar, e à recusa pelos adolescentes dos cursos de formação de docentes, não indo além de 1,5% os que admitem vir a ser professores. 

Formar professores não é preparar correias de transmissão de conhecimentos. Exige forte componente ética e também política, impõe, para além das habilitações académicas, competências pedagógico-didáticas e capacidades como sensibilidade, liderança, comunicação, motivação, cooperação ou abertura crítica. Como refere (Robert) Connel "Ser professor não é só uma questão de possuir um corpo de conhecimentos e capacidade de controlo da aula. Isso poderia fazer-se com um computador e um bastão. Para ser professor é preciso, igualmente, ter capacidade de estabelecer relações humanas com as pessoas a quem se ensina". 

A formação de professores não pode confinar-se em contextos fechados, ignorando os reais, onde os professores irão exercer a sua profissão. Recordo a velha metáfora do “Currículo do nadador”, de (Jacques) Busquet: “Imagine-se uma escola de natação que se dedicara um ano a ensinar anatomia e fisiologia da natação, psicologia do nadador, química da água e formação dos oceanos, custos unitários das piscinas por usuário, antropologia da natação e, ainda, a história mundial da natação, dos egípcios aos nossos dias. Tudo isso, evidentemente, à base de cursos magistrais, muitos livros, além de giz e quadros-negros, mas sem água. Numa segunda etapa, levaria os alunos-nadadores a observar, durante vários meses, nadadores experientes; depois desta sólida preparação, lançá-los-ia ao mar, em águas bem profundas, num dia de temporal”. A metáfora é antiga e de fácil apreensão, mas o certo é que, em junho de 2005, fomos surpreendidos com o anúncio do fim dos estágios pedagógicos, em que aos futuros professores, sob supervisão, eram atribuídos horários, turmas e remuneração. A justificação da então ministra Maria de Lurdes Rodrigues era que se tratava de um modelo de quando havia falta de professores e eliminá-lo permitiria poupar 50 milhões de euros. Ganharam as Finanças, perdeu a Educação. 

Foi em sentido contrário que o Conselho Nacional de Educação se pronunciou, na Recomendação n.º 3/2019, entendendo ser necessário que “as instituições de ensino superior assegurem, junto das instituições cooperantes, a participação dos candidatos a professores em contextos pedagógicos dinâmicos que integrem a ação direta dos alunos…”. 

Para a FENPROF, conforme fez chegar ao Ministério da Educação, é fundamental garantir a qualidade da formação inicial, não caindo na tentação de simplificações destinadas a acelerar a chegada de docentes ao sistema. Considera-se necessário: reconcetualizar e reconfigurar os currículos da formação; valorizar a prática de ensino supervisionada, dando maior centralidade a esta componente; refletir sobre quais os saberes e as competências docentes que são fundamentais para a entrada na profissão; elevar a qualidade académica e profissional dos relatórios finais; concretizar o ano de indução como momento-chave que confronta o recém-formado com todo o caminho de formação que realizou e com a realidade profissional, devendo merecer um estreito acompanhamento por parte de colegas com experiência profissional. 

Este ano de indução é ainda de formação, mas já em contexto de trabalho. É muito importante todo o apoio institucional neste ano de indução: de professores / mentores que acompanham o iniciante; com trabalho colaborativo entre pares; incentivando a capacidade de autoformação do jovem professor; promovendo a ambientação ao clima das escolas. Assim será possível preparar convenientemente os futuros professores, para uma intervenção educativa competente. 

Abordo, agora, a profissão também nos planos socioprofissional e laboral. Defende-se um Estatuto da Carreira Docente que não seja um mero contrato coletivo de trabalho, mas um documento que integre direitos e deveres dos profissionais, princípios de natureza ética, incluindo os compromissos com a escola, os alunos, os pares, as famílias e a sociedade em geral. Que contenha as regras gerais de acesso à profissão e do seu exercício, incluindo, naturalmente, as condições de trabalho. Um estatuto que, claro, não pode deixar de estabelecer a estrutura da carreira e a forma de nela ingressar e progredir. 

Para a FENPROF, há princípios que são de sempre em relação à carreira dos educadores e professores: a paridade com a carreira técnica superior, designadamente no topo; a estrutura horizontal da carreira, na medida em que todas as responsabilidades que aos professores são acometidas não são, apenas, de alguns, mas de todos, desde a atividade letiva à coordenação de projetos, do apoio tutorial ou da coadjuvação aos diversos níveis de direção e gestão escolares; a integração dos docentes na carreira, independentemente da natureza do seu vínculo laboral, única forma de anular a discriminação salarial dos contratados a termo, que vale, neste momento, um segundo procedimento por infração, movido pela comissão europeia contra Portugal, por incumprimento da legislação comunitária; a definição clara das funções e atividades que são de natureza letiva e as que têm outra natureza, eliminando as inúteis tarefas burocráticas que ocupam tempo necessário à plena assunção da atividade docente. 

Se tivermos em conta a atual estrutura da carreira docente, dir-se-á que, em primeiro lugar, ela deverá ser recomposta: com o reconhecimento de todo o tempo de serviço que os professores cumpriram para efeitos de enquadramento, não se aceitando que numa carreira com 34 anos de duração, tempo necessário para chegar ao escalão de topo, o décimo, um docente com 26 ou 27 anos de serviço esteja a lutar por uma vaga para progredir ao 5.º; com a eliminação do regime de vagas, que não passa de um obstáculo de natureza administrativa, posto ao dispor do interesse político. 

Reposicionados os professores de acordo com a sua situação concreta, é necessário encurtar o leque salarial existente, valorizando os escalões de ingresso e/ou reduzindo o tempo que os mais jovens nele estão retidos, que chega a ir além de 20 anos. É, também, necessário reduzir a duração da carreira, sendo a nossa uma das mais longas, senão a mais longa do conjunto de países da OCDE. É indispensável uma profunda revisão do regime de avaliação de desempenho, cujo modelo em vigor não assenta em princípios formativos, tendo sido criado, praticamente apenas, para definir ritmos de progressão na carreira. Independentemente do modelo que vigorar, há que reconhecer o mérito absoluto dos que se submetem às suas regras, não fazendo depender de quotas a atribuição de menções que, atualmente, têm forte implicação na progressão. Estas estão na origem de forte descontentamento e reclamação dos docentes, sendo este regime de avaliação o principal fator de conflito dentro das escolas. 

Na Recomendação n.º 3/2019, o CNE considera, e bem, que “A profissão docente, ao ter de se sujeitar a uma carreira muito longa, com uma forte tensão emocional, com uma precariedade inicial que se pode alargar por muitos anos e sem estímulos a uma progressão consentânea com a sua importância social, oferece uma imagem pouco atrativa aos que se encontram em situação de fazer opções à entrada no ensino superior”. Noutro plano, na Recomendação sobre a condição docente e as políticas educativas (Recomendação n.º 1/2016), já se afirmava “que a condição docente compreendida na sua extensão e profundidade não se compagina com a multiplicidade de tarefas que lhe são presentemente atribuídas, antes exige que beneficie de condições de trabalho e de aperfeiçoamento permitindo-lhe cumprir melhor a sua missão e adaptar-se de forma contínua às novas situações. A proposta é a de que as políticas caminhem no sentido de que os professores do ponto de vista individual, profissional e organizacional sejam cada vez mais profissionais do ensino e cada vez menos funcionários ou técnicos”, pode ler-se. 

De facto, a desvalorização da profissão e a multiplicidade de exigências sobre um corpo docente exausto, envelhecido, com um profundo sentimento de desrespeito, desvalorização e injustiça, leva a que, sem exibirem índices relevantes de despersonalização, os professores apresentem níveis elevados de exaustão emocional, revelem um stresse profissional elevado e muitos já manifestem reações associadas ao burnout, tanto de natureza fisiológica, como psicológica, comportamental ou defensiva. É o que apura o Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal, promovido em parceria pela FENPROF e a FCSH da UNL. Uma atividade que deveria provocar prazer em quem a exerce, mas que hoje é exercida, por muitos, em sofrimento. 

Cristophe Déjours, no encontro promovido pela FENPROF, em 2018, para apresentação dos resultados daquele inquérito, afirmou que “Hoje em dia a acumulação do sofrimento no trabalho pode levar a situações dramáticas, como o suicídio. Noutros casos, pelo contrário, o sofrimento pode ser transformado em prazer. Acontece quando um trabalhador consegue superar os obstáculos que se colocam à sua inteligência ou, quando o sucesso é menos claro, por exemplo, porque o professor trabalha numa escola de uma área urbana desfavorecida, mas surge uma forma de recompensa que é altamente esperada, simbólica ou moral, que é o reconhecimento. O reconhecimento, a valorização, é o que permite a transformação do sofrimento em prazer. No contexto atual, é preciso admiti-lo, os esforços incríveis dos professores não são reconhecidos pela hierarquia nem pelo próprio Estado. Em vez do reconhecimento que deveriam ter, os professores são julgados frequentemente de forma depreciativa e até mesmo humilhante”, concluiu Déjours. 

Será por isso que não surpreende o teor do e-mail que recebemos de uma colega: “Aos 59 anos, pedi a reforma antecipada. Fui penalizada financeiramente por me faltar idade, mas salvei o meu equilíbrio emocional. Sempre pensei que me iria sentir triste na minha última aula e que a despedida dos alunos iria ser dolorosa. Não foi assim que aconteceu. Passou despercebida, até para mim própria. Eu que nunca esqueci os rostos dos alunos da minha primeira aula num dia de abril de 1975, não guardo qualquer recordação dos alunos da minha última aula. Não sei se eram alunos do Básico ou do Secundário. A sua memória perdeu-se para sempre, envolvida no desgaste e desalento dos últimos anos. Treinei-me para deixar de sentir e foi assim que deixei a profissão que tantas alegrias me deu durante mais de 35 anos”.

Concluo, recorrendo, novamente, à Recomendação do CNE sobre a condição docente e as políticas educativas: “Entende-se que a profissão vivida com coerência transforma a escola. Por isso, sustenta-se a necessidade de elaborar e pôr em prática políticas que respeitem a autonomia profissional, clarificando e melhorando as suas condições de exercício, para que o professor possa concretizar o autêntico sentido da profissionalidade”. 

No momento em que aguardamos por um novo governo, no qual se espera que haja um ministro da Educação, esta é uma mensagem que deverá merecer acolhimento se o tempo futuro também for dos professores.