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Lei 1/2003, de 6 de Janeiro

Regime jurídico do Desenvolvimento e da Qualidade

11 de julho, 2003
Regime Jurídico do Desenvolvimento e da Qualidade do Ensino Superior

Após a tentativa frustrada do ordenamento e organização do ensino superior protagonizada pela Lei 26/2000 que remetia quase tudo, para a regulamentação sucessiva que como é sabido nunca veio a acontecer, mercê da mudança de orientação no Ministério e, poucos meses depois, da mudança de maioria na Assembleia da República e de Governo, assistimos agora à publicação de outra Lei que, revogando definitivamente aquela, carrega a inusitada característica de não ter sido sujeita a debate público antes da aprovação na generalidade.
A primeira nota é pois esta. Nunca antes se tinha assistido (no ensino superior em democracia) a um processo tão precipitado que levou os partidos da oposição a disporem de menos de uma semana para apresentar projectos alternativos, tratando-se, ainda por cima, de uma proposta de Lei que o Governo aprovou sem qualquer consulta prévia aos parceiros sociais (órgãos académicos, sindicatos, associações de estudantes, etc.). Por decisão da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, decorreu um período de audição entre a aprovação na generalidade e a discussão na especialidade. Bastante foi modificado, quase sempre para melhor, mas era já impossível corrigir questões da estrutura do próprio edifício jurídico que assim continuará retalhado e confuso, incapaz de pronunciar visão estratégica quanto aos tópicos fundadores do desenvolvimento e da qualidade do ensino superior.
Vislumbram-se, apesar de tudo, algumas orientações estratégicas que importa salientar pelo que de perverso contêm. A liberdade de aprender e ensinar, conceito constitucionalmente inscrito, é aqui abusada para justificar a igualdade de tratamento dos subsistemas público e privado, pretendendo-se avançar cada vez mais para o financiamento público das instituições privadas. Ora a mesma Constituição da República Portuguesa consagra o não menos importante princípio da obrigação do Estado no desenvolvimento da rede pública de estabelecimentos de ensino superior, com vista à cobertura integral das necessidades da população. Neste contexto, o ensino privado deve constituir-se opção para a escolha livre dos cidadãos e nunca desvio de financiamento promotor da incompletude da rede pública.
Se é certo que na proposta inicial, do Governo, se insistia na banda estreita como uma das características do Politécnico, importa registar que tão grande anacronismo não sobreviveu ao debate na especialidade e à audição dos parceiros promovida in extremis pela AR. A dicotomia binarista vinha, de algum modo, atenuada se tomarmos como referência o espírito e a letra da frustrada Lei 26/2000. Não se pode todavia compreender como pretende a actual maioria promover o desenvolvimento harmonioso do ensino superior, nomeadamente no que respeita à adequação das formações inicias aos factores de profissionalização dos saberes que redutoramente vêm surgindo como exclusivo do Politécnico, quando já todos sabemos que a Universidade evoluiu da esfera endogénica a que se confinava até aos anos setenta e que tais argumentos redutores só têm servido para conduzir, artificial e burocraticamente, a limitações graves ao desenvolvimento das instituições integradas no Politécnico, ferindo sistematicamente a liberdade académica, os factores objectivos de dignidade e relevância sociais, constituindo-o bitola baixa do sistema.
Nivelar por baixo é o que esta Lei consigna quanto à autonomia pedagógica. No Politécnico a criação e extinção de cursos ainda dependia da tutela, por falta de regulamentação sucessiva da respectiva lei de autonomia. Todas as instituições de ensino superior (universitárias e politécnicas) ficam agora sujeitas ao arbítrio do Ministério, reservando-se ao Ministro a capacidade de estabelecer directrizes quanto à denominação e duração dos cursos e as áreas científicas obrigatórias e facultativas dos respectivos planos de estudo e de recusar-se financiar os cursos [...] os ramos, as opções e outras formas de especialização dos cursos, independentemente da sua denominação, que tenham um número de estudantes inferior ao estabelecido pelo Ministro. Mais uma vez, se vão repercutir imediatamente sobre as instituições e em cada uma delas as políticas educativas e as constrições (economicistas ou outras) do momento, em lugar de instituir a concertação com órgãos autónomos reguladores de redes permanentes, temáticas e de base territorial, e através deles promover a efectiva racionalização democrática e transparente. Este retrocesso é, de resto, altamente comprometedor da adaptação do nosso sistema de ensino superior aos desígnios do chamado processo de Bolonha que, na actual fase, recomenda a discussão transnacional por áreas de saber e de profissão, em detrimento de centralismos estadistas que tendem, por natureza, a tratar o diferente por igual e a resolver invariavelmente por baixo.
O amplificado arbítrio da tutela pode vir a ser reduzido pela intervenção (prevista em tese) do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior, mas os riscos aumentaram no espírito e na letra da presente Lei. Institui-se o Conselho Consultivo do Ensino Superior que, de extremo a extremo, tanto pode condicionar atitudes menos reflectidas, como pode servir de órgão legitimador da vontade da tutela, por dela depender em larga escala directa e indirectamente (veja-se a composição e competências).
A análise que apresentamos recusa obviamente o carácter exaustivo, antes pretende alertar para aspectos que proximamente estarão em cima da mesa, se não se repetir a precipitação com que o Governo e a Maioria começaram o presente mandato. Como é uso dizer-se: não dispensa a leitura da literatura em referência. Aconselha-se também a inclusão no debate dos textos recentemente publicados: questionário do CIPES e documentos correlatos; livro encomendado pelo Ministro de há três anos e prefaciado pelo actual e as tomadas de posição individuais e institucionais, produzidas por partidos, CRUP, CCISP e FENPROF, entre outros.

Janeiro de 2003

Hernâni Mergulhão
Departamento do Ensino Superior