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JN, 12/12/2007

Entrevista com Manoel de Oliveira no seu 99º aniversário

12 de dezembro, 2007

Há exactamente 99 anos nascia Manoel Oliveira, realizador cuja obra se confunde com a própria história do cinema no nosso país. Desde "Douro, faina fluvial", de 1931, até ao novíssimo "Cristóvão Colombo - o enigma" (estreia a 10 de Janeiro), Oliveira ergueu uma cinematografia singular que há muito ultrapassou as fronteiras portuguesas.


O tributo de que Manoel de Oliveira vai ser alvo no dia 12 de Dezembro, às 21.30 horas, no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, distingue-se das dezenas que já teve ao longo das últimas décadas. O "cineasta em actividade mais velho do mundo" vai celebrar junto dos amigos e admiradores o 99º aniversário, mas também assistir à antestreia de "Cristóvão Colombo - o enigma", novo projecto mas não certamente o último o realizador confessa que, se tivesse meios financeiros, asseguraria dois filmes por ano.


Jornal de Notícias| Não há algo pernicioso em chegar à sua idade na plena posse das faculdades? Discute-se mais a longevidade do que o teor dos filmes que faz?


Manoel de Oliveira| Isso não me inquieta. Mas admito que seja verdade. No Porto, mas também noutras cidades em Portugal e no estrangeiro, sou abordado por desconhecidos, novos e velhos, que possivelmente nunca terão visto os meus filmes.


Trocava esse carinho ou reverência por uma maior discussão sobre o seu trabalho?

Não é uma questão de trocar? Cada um tem a sua sina e o seu destino. A idade é um capricho. Fazer cinema é uma paixão, algo interior. Bem ou mal feitos, os filmes são uma vocação.


Desliga-se afectivamente de um filme mal o termina ou sente que ele só está concluído a partir do momento em que outros o vêem?

A crítica é indispensável. Mais importante ainda é um complemento. Por isso, o filme só está acabado depois de ser visto. Por algum público e de preferência pelos críticos. São eles que vão acabar o filme. Como há muito de inconsciente no trabalho de um artista, é o crítico que vai buscar esse lado, de que o artista nem se deu conta. Veja-se o caso de "Os Lusíadas". Alguém duvida que o livro não seja mais rico hoje, depois de ter sido examinado em diferentes épocas?


Já existem movimentações para assinalar o seu próximo aniversário, o 100º. Como gostaria de comemorá-lo?

É uma data íntima que sempre festejei em família. Agora, quase todos os amigos da minha idade, e também boa parte dos familiares, desapareceram? A juventude é um tempo extraordinário em que as pessoas desconhecem que estão verdadeiramente a viver. Só com o passar dos anos é que nos apercebemos dos momentos extraordinários já vividos.


A melhor prenda seria a abertura da Casa-Museu?

Não tem sido nada uma boa prenda, mas sim um bom desastre? A Câmara já me atacou umas três ou quatro vezes, algo que nunca fiz. Nunca pedi que fizessem uma casa em minha homenagem. Têm usado argumentos que não são sérios, porque a verdade é que nunca me apresentaram nenhuma proposta? Pessoas sérias não fazem isso.

Está magoado?

Não, apenas indiferente. O meu acervo está aqui e assim continuará. Não escondo que gostaria que ficasse no Porto. É a minha cidade. Onde nasci, vivo e, provavelmente, morrerei. O Porto é uma cidade riquíssima, o que a maior parte das pessoas, incluindo as Câmaras, ignoram. Daqui partiu muita coisa, até o nome de Portugal. Para essa gente, nada disso existe. Há apenas o dinheiro e uma vontade de enganar o povo através de grandes festejos e árvores monumentais, em vez de socorrerem as pessoas necessitadas.

Sente-se desgostoso com a perda de protagonismo do Porto nas várias áreas da vida portuguesa, da economia à cultura?

Essa é uma questão muito pessoal sobre a qual prefiro não pronunciar-me. Mas, quando fiz "Porto da minha infância", tive o desejo de partilhar com as gerações mais jovens as minhas memórias particulares sobre uma cidade que já não existe.

É cada vez mais difícil fazer cinema?

Tenho a minha concepção de cinema e estou seguro do que faço. As dificuldades prendem-se com os meios. Antes do 25 de Abril, apresentava-o orçamento e, em caso de aprovação, o Estado subsidiava o filme na totalidade. Recentemente, a ministra da Cultura teve uma atitude muito simpática para comigo, garantindo-me a possibilidade de obtenção de apoio a todos os filmes que faça. Mas essa ajuda equivale a pouco mais de um terço da verba necessária. Sinto que precisava de viver mais 50 anos para concretizar todos os projectos que tenho. Se tivesse os meios, não me custava nada fazer dois filmes por ano. Ideias não me faltam, seja através de projecto escritos por mim ou por grandes escritores.

Mas o seu prestígio abre muitas portas...

No estrangeiro, sim, mas, mesmo aí, as coisas estão mais difíceis. O desenvolvimento do vídeo e demais evoluções - já se filma com telemóveis - veio dificultar em muito o modo tradicional de fazer cinema. Basta ver que já não há salas no Porto. Esqueceram-se de algo tão simples como fazer parques de estacionamento. Leva-se o carro mas não há lugar para estacionar. Até no Batalha, onde foi criada a primeira sala de cinema em Portugal, isso acontece. É isso que mata o cinema, porque acaba por ser mais fácil ficarmos por casa e abrirmos a televisão ou o vídeo. Nem precisamos de sair da cadeira.


Estará o cinema condenado?

O teatro é mais rico. Os actores estão lá, em carne e osso. No cinema, só está a personagem. O actor já não se encontra lá quando o filme é exibido. O cinema é complementar mas tem uma vantagem perdura no tempo. Se houvesse cinema no tempo áureo das tragédias gregas saberíamos como elas eram. Como não há, apenas calculamos como seriam.


Com a recente morte de Bergman e Antonioni, sente-se um dos derradeiros representantes do cinema de autor?

Sou apenas representante de mim mesmo. Mas não me sinto só, porque há outros colegas meus sérios e competentes, embora possam fazer outros tipos de cinema. Já o José Régio, um homem extraordinário e hoje um tanto esquecido, dizia que a originalidade de um artista reside na sua personalidade. Veja-se o que se passava no Renascimento. À primeira vista, todos os artistas pintavam o mesmo, fossem meninos ou Cristos. O que os distinguia, então? A personalidade, ou seja, a maneira como pintavam. Sinto que pertenço a uma deontologia cinematográfica que recusa mostrar o lado íntimo. Só filmo o que é público, embora possa sugeri-lo. É também por isso que admiro tanto o Luis Buñuel.


Casa-Museu polémica

O folhetim em redor da Casa-Museu Manoel de Oliveira continua sem fim à vista. Ontem, a agência Lusa, citando fontes da Câmara Municipal do Porto, garantiu que o edifício construído para albergar o acervo do cineasta está em fase final de obras de recuperação para acolher brevemente serviços camarários.

A solução encontrada é definida como "temporária" e visa evitar que o edifício, construído há quatro anos, continue abandonado e alvo de vandalismo.

Nos últimos meses, a autarquia e o cineasta têm digladiado argumentos sobre a responsabilidade dos atrasos. Na entrevista concedida ao JN, Oliveira apelida mesmo o processo de "desastre" e considera-se alvo dos ataques camarários.