Opinião
António Teodoro*

Repensar a estrutura do ensino superior

19 de dezembro, 2016

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) divulgou, em outubro de 2016, um documento para discussão pública intitulado Sobre a evolução da organização do sistema de C&T e de ensino superior: construir o futuro, acreditar no conhecimento. Trata-se de um texto, apresentado ainda sob a forma de draft, que se divide em duas partes: a primeira, sobre a organização do sistema de ciência e tecnologia e a sua articulação com o ensino superior; e, a segunda, sobre a diversificação e a avaliação institucional do ensino superior.

Provavelmente escrito pelo próprio Ministro, o documento colocado a debate público apresenta-se muito bem documentado e com uma orientação política sólida, podendo constituir um excelente ponto de partida para políticas públicas sustentadas nos campos do desenvolvimento do sistema científico e tecnológico. Mas o mesmo já não se pode dizer quanto à outra problemática do documento, a relativa à diversificação (e avaliação institucional) do ensino superior.

A primeira parte recebe, seguramente, a concordância generalizada da comunidade científica, que se pronunciou claramente contra a política do Ministério liderado por Nuno Crato (e, na FCT, por Miguel Seabra) no Governo PSD-CDS (2011-2015), responsável pela quebra drástica dos meios financeiros atribuídos à I&D e por uma absurda política que, em nome da “excelência”, conduziu um processo de avaliação de Unidades de I&D que desqualificou e enfraqueceu áreas inteiras do conhecimento, como a das Ciências da Educação.

A questão que se coloca não está tanto no plano das ideias mas, sobretudo, na capacidade de mobilizar os meios financeiros que permitam, de novo, o investimento público em I&D (gerador de outros investimentos, nomeadamente privados).

O adiamento da divulgação dos resultados dos concursos para as bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, o adiamento para final de 2016 (empurrando para 2017) da convocatória para projetos FCT em todos os domínios científicos, as indefinições quanto ao financiamento do chamado “emprego científico”, mostram que as políticas científicas não podem viver apenas de boas ideias e de processos de participação. Estes são importantes mas não chegam. Espera-se que, em 2017, as políticas de I&D beneficiem não apenas das verbas atribuídas no Orçamento de Estado, ligeiramente superiores às dos orçamentos anteriores, mas igualmente das verbas cativadas em 2016 para manter a despesa pública nos parâmetros exigidos pela Comissão Europeia.

O mesmo já não se passa com a segunda parte do documento. Aí, o documento do MCTES é profundamente conservador, mantendo (e pretendendo mesmo reforçar) a estrutura binária do ensino superior português. Essa posição conservadora assenta na ideia de que a divisão institucional do ensino superior em universitário e politécnico é condição para a diversificação da oferta de cursos e modalidades de ensino superior.

O MCTES sabe que não há nenhuma evidência que mostre que esta estrutura binária gere diversificação de oferta. Pelo contrário, sabe que a manutenção desse absurdo, mantido pelo “centrão” político e universitário desde o final dos anos 1970, é responsável pelo atrofiamento de iniciativas tanto no sector universitário (e.g., na organização de cursos de curta duração marcadamente profissionais, para os quais tem capacidade instalada e forte procura estudantil), como no sector politécnico (e.g., na organização de mestrados e doutoramentos em áreas carenciadas e fortemente ligadas ao tecido social, económico e cultural nas regiões onde se inserem). No plano internacional, aqueles que optaram por esse caminho nos anos de 1960 e 1970 há muito que mudaram de rumo, acabando com uma distinção que assentava em pressupostos elitistas com os quais, reconheça-se, o documento do MCTES não se identifica.

A distinção defendida na p. 56 do referido documento para distinguir as formações nos ensinos universitário e politécnico é de um total e completo non sense epistemológico e conceptual. Aplique-se, no concreto, essa distinção a diversas áreas profissionais e do conhecimento, por exemplo, à educação, à saúde ou mesmo às engenharias.

A distinção na formação obedece a uma divisão que há muito não tem qualquer suporte de natureza científica ou profissional, gerando absurdos como este: o mestrado em Formação de Adultos e Desenvolvimento Local de uma escola superior de educação, inserida no ensino politécnico, não pode ser considerado de Ciências da Educação; o mesmo mestrado, apresentado por uma universidade, já pode ser de Ciências da Educação, especialização em Formação de Adultos e Desenvolvimento Local. O argumento para esta distinção é que as Ciências da Educação são uma designação reservada para os cursos universitários!

O MCTES sabe, melhor do que ninguém, que há institutos politécnicos que têm, nos planos científico e académico, corpos docentes mais qualificados que algumas universidades. Não será um absurdo impedir que essas instituições possam oferecer mestrados e doutoramentos nas áreas para os quais reúnem as condições definidas para o ensino universitário? O mero bom senso de utilizar bem os recursos dos contribuintes não devia levar o MCTES a propor mudanças na legislação que rege atualmente o ensino superior, em particular o RJIES e os artigos da Lei de Bases para o ensino superior?

A atual solução governativa não esgota no Governo a iniciativa legislativa. Por isso, o nosso apelo para que outros atores - sindicatos dos professores, institutos politécnicos, universidades, partidos políticos (nomeadamente os que suportam parlamentarmente o Governo) – venham a assumir esta questão e a tragam para debate público. O que está, e é reafirmado no documento do MCTES, é uma solução conservadora sem futuro nem audácia, aliás em contraciclo com as outras partes do documento.

O adiamento da divulgação dos resultados dos concursos para as bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, o adiamento para final de 2016 (empurrando para 2017) da convocatória para projetos FCT em todos os domínios científicos, as indefinições quanto ao financiamento do chamado “emprego científico”, mostram que as políticas científicas não podem viver apenas de boas ideias e de processos de participação. Estes são importantes mas não chegam.

António Teodoro