Gestão Democrática das Escolas
Gestão das Escolas

Parecer da FENPROF

31 de janeiro, 2008

PROJECTO DE DECRETO-LEI PARA CONSULTA PÚBLICA DE REGIME JURÍDICO DE AUTONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E GESTÃO DOS ESTABELECIMENTOS PÚBLICOS DA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR E DOS ENSINOS BÁSICO E SECUNDÁRIO

No final do período de "consulta pública", a FENPROF apresenta o seu parecer sobre o projecto em análise, no qual incorpora contributos resultantes dos múltiplos espaços de debate que dinamizou durante este período, quer no plano institucional (com o Conselho das Escolas, a CONFAP, a Federação de Sindicatos da Função Pública, a Comissão de Educação da Assembleia da República), quer ao nível do trabalho com as escolas, no qual releva a realização de reuniões com professores e educadores, em todo o país, nomeadamente com membros de órgãos de direcção e gestão das escolas.

Para a FENPROF, as questões relativas à autonomia, direcção e gestão dos estabelecimentos de ensino são da maior relevância para a vida das escolas, pela dimensão política que assumem e pela forma como influenciam as relações de trabalho e o clima de escola. Sendo a democracia a dimensão que deve dar consistência às estruturas organizacionais da escola, a FENPROF tem vindo a chamar a atenção para a necessidade de aprofundar práticas participativas que reforcem a democraticidade na organização escolar.

Considerando que o reconhecimento da escola como espaço organizacional dotado de autonomia só é possível num contexto de descentralização da administração educativa, a FENPROF tem vindo a apresentar propostas que visam a transferência de competências para o nível local e para a escola, e nestes para órgãos próprios, democraticamente legitimados e com adequada representação escolar e comunitária.

Pelos princípios que têm sustentado as suas propostas nesta área ao longo dos anos, mas também pela avaliação que tem sido feita do actual regime de autonomia, administração e gestão das escolas, a FENPROF defende a necessidade de alterações significativas neste regime.

Estas alterações deverão passar por: criar um verdadeiro órgão de direcção estratégica (com espaço político para decidir e condições de funcionamento que permitam uma participação efectiva de todos os seus membros e uma maior ligação ao quotidiano escolar); conferir ao Conselho Pedagógico o carácter de órgão de direcção pedagógica que deve ter; clarificar a relação de separação e complementaridade entre direcção e gestão escolares, com a segunda logicamente subordinada à primeira; garantir a prevalência de critérios pedagógicos sobre critérios administrativos.

No entender da FENPROF, as alterações que o projecto de Decreto-Lei em análise apresenta não vão no sentido atrás referido, nem respondem aos constrangimentos decorrentes da aplicação do DL 115-A/98. As suas principais linhas de força vêm até em sentido contrário, configurando um retrocesso no funcionamento democrático da escola pública, ao pôr em causa os princípios de elegibilidade, colegialidade e participação ? pilares de uma organização democrática da escola.

A este respeito, a FENPROF ressalta os seguintes aspectos, que considera profundamente negativos:

1. A imposição a todas as escolas de um órgão de gestão unipessoal, acabando com toda a tradição de colegialidade pós-1974, bem como com a possibilidade, existente desde 1998, de a Assembleia de cada escola optar por um órgão de gestão unipessoal ou colegial. Esta possibilidade de opção foi defendida pelo Conselho de Acompanhamento e Avaliação do Dec-Lei 172/91 (que criou o cargo de Director Executivo), por não ter encontrado evidência empírica que fundamentasse a mais-valia da unipessoalidade da "gestão operacional".

O facto de, nos últimos dez anos, as escolas terem optado, na sua esmagadora maioria, por um Conselho Executivo, em detrimento de um Director, prova que valorizam a colegialidade na tomada de decisões e no funcionamento dos órgãos e não se revêem em lideranças unipessoais, mais potenciadoras de prepotências e arbitrariedades. Mas, independentemente das (des)vantagens que se possam encontrar numa ou noutra opção, há uma questão incontornável: a imposição da obrigatoriedade de um Director a todas as escolas representa um retrocesso no processo de construção da sua autonomia.

2. A concentração de poderes no Director ? órgão executivo que tenderá a assumir-se como "a direcção da escola". Este Director vai presidir ao Conselho Pedagógico (mais uma possibilidade do actual regime que o Governo transforma em obrigatoriedade...), elaborar e aprovar o Plano de Actividades e "designar os responsáveis pelas estruturas de coordenação e supervisão pedagógica". Ao deixarem de ser eleitos pelos docentes, os titulares destes cargos passam de uma lógica de representação dos professores e das estruturas de gestão pedagógica intermédia para uma lógica de subordinação ao Director ? último elo da cadeia hierárquica do Ministério da Educação em cada escola. Se se pensar que estes coordenadores vão avaliar o desempenho dos restantes professores, e o Director o desempenho de todos, é facilmente perceptível o potencial desta cadeia de comando no controlo da actividade das escolas e dos professores.

3. A desvalorização do Conselho Pedagógico que, com ainda menos competências deliberativas, é remetido para um papel essencialmente consultivo do Director. Por outro lado, a acumulação de presidências e a designação dos membros docentes deste Conselho terão consequências na configuração monolítica desse órgão, onde deixarão de se confrontar de forma positiva e saudavelmente democrática opiniões, sensibilidades e pontos de vista diversos sobre a vida da escola e os seus projectos pedagógicos. A menorização do Conselho Pedagógico e a sua sujeição ao Director põem ainda em causa o princípio do primado do pedagógico e científico sobre o administrativo, consagrado na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).

4. O fim do processo de eleição directa do órgão de gestão da escola por um colégio eleitoral alargado (constituído por professores, pessoal não docente, pais e encarregados de educação e alunos do ensino secundário) e a sua substituição por um "procedimento concursal", seguido de eleição pelo Conselho Geral (que terá um máximo de vinte elementos). A FENPROF considera que esta alteração radical da composição e da dimensão do colégio eleitoral subverte o princípio da participação democrática na gestão das escolas. Acresce que este projecto desrespeita os artigos 44º e 45º da LBSE, ao incluir na composição dos órgãos de direcção das escolas participações que a LBSE remete para as estruturas administrativas do sistema educativo ao nível nacional, regional e local.

Sobre este processo de recrutamento, importa ainda lembrar que esta foi uma solução adoptada no modelo experimental de gestão instituído pelo DL 172/91, tendo sido considerada, no Relatório Final do Conselho de Acompanhamento e Avaliação criado para o efeito, "uma das zonas de maior ambiguidade do modelo", já que "as duas lógicas (concurso e eleição) são claramente distintas, por vezes opostas, mesmo que, conjunturalmente, possam produzir os mesmos resultados".

Nesta matéria, a FENPROF chama ainda a atenção para o Acórdão nº 262/2006 do Tribunal Constitucional, relativo ao regime de autonomia e gestão da Região Autónoma da Madeira, que reafirma a eleição como uma "opção político-legislativa fundamental".

Claramente ilegal é a possibilidade de recondução do Director durante três mandatos, por decisão do Conselho Geral, já que não é possível reconduzir órgãos eleitos.

5. A possibilidade de um docente de outra escola ou mesmo do ensino privado se poder candidatar a Director, para além de ser questionável do ponto de vista do conhecimento da realidade concreta da escola a que se candidata, cria uma outra situação difícil de sustentar, relativamente aos requisitos para admissão ao concurso: enquanto que um director pedagógico de um colégio particular, ainda que sem formação específica, se pode candidatar, um professor de uma escola pública, com vários anos de serviço, formação especializada em administração escolar e até experiência de gestão, não poderá candidatar-se se não pertencer ao quadro de nomeação definitiva.

Ainda relativamente aos requisitos para o exercício de cargos, não se compreende que, para o cargo de "Adjunto" do Director se imponha a condição de ser docente do quadro de escola ou agrupamento quando, para os Assessores, se exige apenas que estejam em exercício de funções na escola/agrupamento.

6. A recentralização do poder através do Director, privilegiando o ME o controlo directo e imediato sobre a gestão das escolas. O reforço da dependência hierárquica do Director, em cujos deveres específicos se inclui: "Cumprir e fazer cumprir as orientações da administração educativa", é o que pode justificar que este projecto preveja que a tomada de posse do Director seja feita perante a Direcção Regional e que o seu mandato, para além de poder cessar por deliberação do Conselho Geral, fundada em "manifesta desadequação da respectiva gestão" ou "por despacho fundamentado do director regional de Educação, na sequência de processo disciplinar", possa ainda cessar "a todo o momento, por despacho fundamentado do membro do governo responsável pela área da educação na sequência de processo de avaliação externa ou de acção inspectiva".

Também o argumento, aduzido por responsáveis do ME, de que a impossibilidade de um professor presidir ao Conselho Geral visa "garantir que não é posta em causa a autoridade do Director", prova que a grande aposta deste modelo é o Director e não o reforço do poder das representações externas à escola, retoricamente invocado.

7. A redução da participação e da influência dos docentes na direcção e gestão das escolas. As alterações propostas visam fundamentalmente retirar espaços de intervenção aos professores, garantindo que estarão sempre em minoria no órgão de direcção estratégica (com um peso de entre 30 e 40%) e não poderão assumir a presidência desse Conselho ? discriminação absurda e inaceitável. Igualmente incompreensível, à luz da natureza política deste órgão, é a exigência de que pelo menos 25% dos candidatos à representação dos docentes tenham que ser "professores titulares", o que, para além de inexequível em muitas escolas, configura uma limitação à escolha por parte dos professores dos seus representantes nesse Conselho.

A contestação à redução da representação dos professores nesse órgão não radica em nenhum receio de perda de poder. Quem conhece a realidade das escolas sabe que as opiniões e os saberes dos professores são, e continuarão a ser, devidamente valorizados pelos restantes parceiros educativos que, com eles, têm assento nos órgãos. A gravidade desta proposta está na desautorização pública que ela representa do trabalho e do papel dos professores e educadores. Neste particular, em bom rigor, não se pode acusar o actual Governo de falta de coerência.

8. A retórica do reforço da participação da comunidade não encontra correspondência no articulado do projecto. A este respeito, nada indica que o órgão de participação e representação da comunidade educativa, agora designado Conselho Geral, deixe de ter, enquanto "órgão de direcção estratégica da escola", os mesmos défices de funcionamento da actual Assembleia, que o Programa de Avaliação Externa, levado a cabo pelo Centro de Estudos da Escola agrupou em três categorias: défice de informação, défice de democracia e défice de utilidade.

Em vez de criar condições para uma participação efectiva dos representantes da comunidade escolar e comunitária no órgão de direcção da escola (nomeadamente os alunos), o Governo limita-se a redistribuir o peso relativo de cada corpo ou grupo representado, parecendo mais preocupado com a fiscalização e controlo político do que com a cooperação e co-responsabilização em níveis adequados, dos diversos intervenientes. É, certamente, esta preocupação que justifica a atribuição, ao Conselho Geral, da competência de "fiscalizar a acção dos demais órgãos de administração e gestão", potenciadora de ingerência e conflitualidade na relação entre esses órgãos.

Neste contexto, a própria criação de uma Comissão Permanente, de composição muito mais restrita, na qual podem ser delegadas todas as competências (com excepção da eleição do Director) deixa antever uma grave amputação do direito de participação e uma diminuição da capacidade de intervenção dos diversos grupos representados no Conselho Geral.

9. Contratos de autonomia. A FENPROF considera negativa a manutenção da ideia da contratualização como forma privilegiada de construção da autonomia das escolas. A experiência recente de assinatura de vinte e dois contratos, em que as escolas viram as propostas que implicavam aumento de custos 'recusadas' pela administração, veio confirmar as reservas da FENPROF na virtualidade de contratos celebrados entre partes com poder negocial tão desigual. Como refere Virgínio Sá, "quando o mesmo é celebrado entre dois (ou mais) contratantes dispondo de um poder negocial muito assimétrico, o mais provável é que o "contrato", em vez de assumir a forma de um "tratado" (em que os parceiros consensualizam direitos e deveres das partes), se configure antes como um "ditado" (em que uma das partes impõe/dita unilateralemnte a sua agenda). Por isso, a FENPROF tem defendido, em alternativa, a aprovação de uma Lei de Autonomia e Financiamento para estes sectores de educação e ensino.

10. A agregação de agrupamentos. Ao consagrar que o ME, de forma autocrática, pode avançar com a referida agregação, o Governo assume uma atitude de desvalorização das posições das comunidades educativas e procura legitimar, e acelerar, o processo de fusão de escolas e agrupamentos, criando grandes unidades de gestão determinadas por critérios financeiros e administrativos, mas sem qualquer racionalidade pedagógica.

A terminar, a FENPROF sublinha as seguintes questões:

O Governo procura justificar a alteração do DL 115-A/98 com a necessidade de concretização de três objectivos: i) "reforçar a participação das famílias e das comunidades na direcção estratégica dos estabelecimentos de ensino"; ii) favorecer o desenvolvimento de "boas lideranças e lideranças fortes"; iii) reforçar a autonomia das escolas". Ora, quer a análise do actual regime jurídico quer a evidência empírica disponível permitem concluir que não existe incompatibilidade normativa entre o actual regime jurídico e a concretização dos objectivos invocados.

Relativamente ao reforço da participação comunitária, importa ter em conta que no DL 115-A/98 não existe um tecto para a participação dos pais/encarregados de educação na Assembleia de Escola, nada impedindo que possa ser superior a 50%. Trabalhos de vários especialistas na área da administração escolar têm vindo a demonstrar que, também a este nível, as mudanças não se conseguem por via normativa.

Quanto ao desenvolvimento de "boas lideranças e lideranças fortes", como lembra J. Barroso no seu Parecer sobre este projecto de Dec.-Lei, a avaliação externa levada a cabo pela IGE em 2006/2007 a 100 escolas/agrupamentos, atribuiu a 91% dessas escolas uma apreciação de Muito Bom ou Bom no domínio da 'organização e gestão escolar' e a 83% idêntica apreciação no domínio da 'liderança', ficando, portanto, claro que a existência de Conselhos Executivos não impede a afirmação de "boas lideranças" (individuais e colegiais).

No que diz respeito à autonomia, se é certo que ela, no essencial, não tem passado de uma invocação retórica, nada no projecto de diploma em análise aponta para o seu efectivo reforço. Pelo contrário, e de forma totalmente incongruente, este projecto pretende até retirar às escolas alguns dos poderes de decisão que Dec.-Lei 115-A/98 lhes conferiu relativamente à sua organização interna ? impondo a todas as escolas a obrigatoriedade de um órgão de gestão unipessoal; impondo a todas as escolas a obrigatoriedade de acumulação do cargo de Director e de Presidente do Conselho Pedagógico; impondo a todas as escolas a obrigatoriedade de os professores estarem em minoria no órgão de direcção estratégica; impondo a todas as escolas a obrigatoriedade da existência de apenas quatro departamentos curriculares.

Pretender "reforçar a autonomia das escolas" ao mesmo tempo que se lhes retiram algumas das (poucas) margens de liberdade que hoje têm, impondo arbitrariamente uma solução única, não tem qualquer credibilidade. Como afirma J. Barroso no seu Parecer, "O projecto de diploma não resolve, antes acentua o carácter híbrido e contraditório do discurso em vigor em Portugal, há mais de 10 anos, sobre a autonomia das escolas".

Finalmente, a FENPROF considera que a alteração do regime de gestão era a peça que faltava para a consolidação de um certo paradigma de escola, congruente com a concepção de professor que o actual Estatuto da Carreira Docente configura ? cumpridor acrítico das orientações definidas centralmente e fora da escola. Mas o retorno a um modelo autoritário de escola não é só um instrumento de funcionarização dos professores. É também um retrocesso no funcionamento democrático da escola e um empobrecimento da educação das novas gerações. Uma escola que não é democrática não educa para a democracia.

As alterações agora propostas não se sustentam numa avaliação do actual regime nem têm em conta a investigação realizada em Portugal nesta área, incluindo as conclusões dos principais estudos solicitados e editados pelo próprio Ministério da Educação. Daí que a FENPROF conteste a oportunidade desta alteração legislativa, considerando ser necessária uma avaliação prévia do actual regime e uma análise séria do impacto que as várias alterações teriam no sistema educativo português.

A FENPROF tem propostas para a direcção e gestão das escolas e para a revisão do DL 115-A/98 e reafirma a sua disponibilidade para as discutir com o ME e todos os intervenientes no processo educativo. Como concluía o Conselho de Acompanhamento e Avaliação do modelo de gestão instituído pelo Dec.-Lei 172/91, é "fundamental a obtenção de um elevado grau de consenso sobre as medidas a consagrar legalmente", por forma a que possam constituir-se como "um referencial estável e credível" para a direcção e gestão das escolas e para a construção da sua autonomia, numa perspectiva coerente e consistente de descentralização.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
O Secretariado Nacional da FENPROF