2.º e 3.º CEB e Ensino Secundário
Revisão curricular do Secundário

Parecer do Conselho Nacional de Educação

28 de abril, 2003

Preâmbulo

No uso da competência que lhe é conferida pela sua lei orgânica, republicada em anexo ao Decreto-Lei n.º 241/96, de 17 de Dezembro, nos termos regimentais, e a pedido do Governo, após apreciação do projecto de parecer elaborado pelo conselheiro Joaquim Azevedo, o Conselho Nacional de Educação, em sua reunião plenária de 13 de Fevereiro de 2003, deliberou aprovar o referido projecto, emitindo, assim, o seu primeiro parecer no decurso do ano de 2003.

Introdução

O Ministro da Educação, Prof. Doutor David Justino, em 21 de Novembro de 2002, colocou em debate público um documento intitulado "Reforma do Ensino Secundário - Linhas Orientadoras da Revisão Curricular". Posteriormente, no início de Janeiro de 2003, dois novos documentos foram colocados no sítio do Ministério da Educação na Internet, respectivamente intitulados: "Reforma do ensino secundário - Caracterização dos percursos educativos e formativos de nível secundário. Tópicos e elementos de reflexão" e "Reforma do ensino secundário - Regulamento de estágio dos cursos tecnológicos".
O Conselho Nacional de Educação, não podendo alhear-se da discussão deste conjunto de documentos, tomou a iniciativa de proceder
à sua análise, emitindo o parecer que se enuncia nos pontos que se seguem.
Antes de qualquer outra consideração, importa afirmar que como elemento central e estruturante deste parecer, de qualquer reforma do ensino secundário ou revisão curricular, estão os alunos, a sua formação e o seu desenvolvimento pessoal, como seres únicos e como membros activos da sociedade. Eles estão no princípio, no meio e no fim destas propostas e pareceres, eles e o seu saudável crescimento devem constituir o cerne das medidas e dos debates, quaisquer que sejam os rumos concretos que em cada momento se definam.

I - Contexto das medidas propostas

O CNE sublinha, em primeiro lugar, que o que habitualmente se designa por ensino secundário carece de uma precisão conceptual, pois a ele se faz corresponder ora escolas secundárias, ora escolas secundárias e escolas profissionais, ora modalidades de "ensino regular" e outras modalidades "não regulares". Assim, o actual nível secundário de ensino e de formação, configurado durante os anos 80, compreende as várias modalidades formativas que o País oferece aos jovens que terminam a sua escolaridade básica, universal e obrigatória de nove anos, a saber: o ensino secundário, nas escolas secundárias, abrangendo cursos gerais e cursos tecnológicos (globalmente definidos em 1989); o ensino profissional, nas escolas profissionais (definidas em 1988); a formação artística especializada, em escolas artísticas, que podem ser do tipo secundário e profissional; a formação profissional em alternância, chamada aprendizagem (globalmente definida em 1985), oferecida em centros de formação profissional, empresas, escolas e outras instituições; e o ensino recorrente.
Com algumas alterações de permeio, este figurino sobreviveu durante os anos 90 e encontra-se ainda em vigor, em 2003. No que se refere apenas ao ensino secundário, por diversas vezes os governos procuraram proceder a "revisões" do modelo genérico em vigor, mas sem sucesso até ao momento presente. A mais significativa surgiu através do Decreto-Lei n.º 7/2001, de 18 de Janeiro, relativo à "organização e gestão curricular dos cursos gerais e dos cursos tecnológicos do ensino secundário regular".
Esta iniciativa legislativa viria a ser suspensa, em Agosto de 2002, através do Decreto-Lei n.º 156/2002, de 20 de Junho. Este normativo invocou as seguintes razões para tal suspensão: (i) "não estarem reunidas as condições essenciais para a efectiva aplicação prática desta revisão curricular [...] e para dela extrair todos os efeitos inerentes a uma verdadeira opção estratégica nacional para o ensino secundário"; (ii) "permitir sanar importante lacunas que a afectam [...] enquanto elemento estratégico de uma política de educação determinada em obter resultados efectivos e sustentados na qualificação dos jovens portugueses para os desafios actuais do desenvolvimento individual e social"; (iii) "necessidade de reavaliação da revisão curricular" decorrente de "opiniões manifestadas no seio da comunidade educativa".
Além disto, o normativo criticava a metodologia e a visão da reforma, porque "mais centrada nos currículos do que nos processos de ensino aprendizagem", bem como a "natureza e finalidades do ensino secundário e sua articulação com os ensinos básico e superior e com o ensino e formação profissionais", não considerava estarem reunidas as "condições de preparação das escolas, de formação de professores e de disponibilidade atempada dos meios pedagógicos e didácticos para a aplicação dos novos conteúdos curriculares" e, por fim, criticava a "metodologia do próprio processo de reforma".
Na sequência desta suspensão e da manutenção do compromisso governamental acerca da necessidade de se proceder a uma revisão curricular do ensino secundário surgem os documentos acima referenciados.

II - Os trabalhos recentes do CNE

O CNE pronunciou-se recentemente e de vários modos sobre o actual nível secundário de ensino e de formação, o que revela o cuidado e o empenho que este órgão tem colocado na reflexão de tão importante segmento do nosso sistema educativo. Em 1998, o CNE elaborou a Recomendação n.º 2/98 sobre "Ensino Profissional e Escolas Profissionais" (Diário da República, 2.ª série, n.º 177, de 3 de Agosto de 1998) e a Recomendação n.º 3/98 sobre "O Ensino Secundário em Portugal" (Diário da República, 2.ª série, n.º 17, de 21 de Janeiro de 1999). No ano de 1999 foi editado um estudo bastante completo sobre o que era e podia vir a ser o ensino secundário em Portugal. Promoveu também um colóquio, com a Fundação Calouste Gulbenkian, sobre o tema, de que resultou um número da Revista Colóquio/Educação e Sociedade, n.º 5, Março de 1999. Em 2000 foi elaborado o parecer n.º 1/2000 sobre a "Proposta de Revisão Curricular no Ensino Secundário" (Diário da República, 2.ª série, de 25 de Maio de 2000).
Em todos estes documentos e intervenções, o CNE vincou uma certa percepção do que pode e deve ser este controverso nível de ensino e de formação. Sintetizamos alguns eixos dessa visão:
a) Qualquer modalidade de ensino e formação de nível secundário deve subordinar a sua configuração curricular a uma base cultural comum, capaz de fomentar o desenvolvimento de aptidões, saberes, saberes-fazer e atitudes, tendo em vista a construção pessoal de projectos de vida e o desempenho de diferentes papéis sociais, o desenvolvimento da cidadania e da responsabilidade social, valores caros à vida em comum;
b) Após a escolaridade básica, este nível deve acolher crescentemente todos os jovens, atento à sua diversidade e criando condições para a realização de opções e de oportunidades de experimentação e de descoberta de interesses, para que cada um possa realizar percursos educativos adequados, com níveis satisfatórios de realização pessoal;
c) Qualquer que seja o percurso formativo, assente nesta base cultural comum, ele será sempre educativo e globalmente equivalente, embora os conteúdos, as metodologias, o tipo de escola, os diplomas e as certificações possam ser diferentes;
d) O nível secundário, sendo um tempo de formação profissional inicial e intermédia, não é o tempo para uma excessiva especialização profissional dos jovens, devendo esta ser realizada após o 12.º ano, em cursos de especialização tecnológica, em íntima articulação com as empresas;
e) Neste nível, em qualquer percurso, deve ser dada especial atenção à orientação pessoal, escolar e profissional de cada jovem, dado o contexto de incerteza e a imprevisibilidade da evolução do mercado de trabalho e considerando a necessidade da escola apoiar a maturação de projectos pessoais de vida;
f) Estas orientações devem ser prosseguidas pelas escolas e centros de formação num quadro de autonomia progressiva, o que requer o reforço das parcerias locais e a consolidação de projectos educativos próprios.
Finalmente, em termos de enquadramento deste parecer, importa referir que, apesar dos esforços empreendidos nos últimos 20 anos para melhorar o acesso e o sucesso no nível secundário, Portugal se encontra entre os países da União Europeia com mais baixo índice de escolarização da sua população com o nível secundário de ensino e de formação. Enquanto o valor médio deste índice é de 60% na União (EU-15), em Portugal é de 20% (dados de 2000). No futuro próximo, com a entrada dos 10 países do Leste Europeu, esta média subirá bastante e a nossa posição relativa continuará muito baixa e débil.
A União Europeia tem vindo a chamar a atenção dos 15 países para a necessidade de um forte investimento na escolarização da população do grupo etário dos 16-24 anos. Fê-lo no Conselho Europeu de Lisboa, em 2000, na Cimeira de Estocolmo, em 2001, e reafirmou-o em Barcelona, em 2002. Entre as disposições acordadas merecem referência: redução para metade, até 2010, do número de jovens da faixa etária dos 18-24 anos que apenas têm estudos secundários de primeiro nível e que não seguem qualquer outro tipo de educação ou formação; implementação de novas competências básicas necessárias à sociedade do conhecimento e à promoção da aprendizagem ao longo da vida, designadamente competências em TIC, domínio de duas línguas estrangeiras, desenvolvimento da cultura tecnológica, do espírito empresarial e de aptidões sociais de abertura à mudança; a necessidade de uma reflexão geral no seio da União sobre os objectivos futuros concretos dos sistemas educativos, que incida nas preocupações e prioridades comuns e, simultaneamente, respeite a diversidade nacional.
Com a aprovação do relatório sobre os "Objectivos Futuros Concretos dos Sistemas de Educação e Formação", o Conselho Europeu de Estocolmo acordou em três objectivos estratégicos, susceptíveis de reforçar a cooperação entre os Estados-membros neste sector, a saber: melhorar a qualidade e eficácia dos sistemas de educação e formação na União Europeia; facilitar o acesso de todos a esses sistemas; abrir ao mundo exterior os sistemas de educação e formação. Para atingir esses objectivos são propostos um conjunto de acções comuns e de indicadores susceptíveis de medir os progressos realizados. Destacam-se o desenvolvimento de competências necessárias à sociedade do conhecimento, cujo indicador estrutural será a população que termina estudos secundários, o aumento do recrutamento nas vias científicas e técnicas, avaliado através do aumento do número de inscritos nas vias científicas do ensino secundário e do reforço de matérias científicas e técnicas nos currículos de ensino secundário.
Perante tais desafios, que interpelam directamente o nível secundário de educação e formação oferecido a nível Europeu, importa analisar em que medida as propostas agora anunciadas pelo Ministério da Educação poderão ser a resposta de qualidade que o país precisa.


III - Parecer sobre as novas propostas do Ministério da Educação

Apreciação geral
1 - O documento do ME é sucinto, traça apenas as grandes linhas de orientação e apresenta os novos planos de estudo. Duas grandes opções estratégicas subjazem à "reforma do ensino secundário", apresentada como inevitável, recusando "a ilusão de uma revisão envergonhada": a proposta de alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo, com a passagem do 3.º ciclo do ensino básico a 1.º ciclo de um novo ensino secundário, de seis anos de duração; e "o prolongamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano", em 2010.
Importaria esclarecer os portugueses, em primeiro lugar, sobre o alcance desta (potencialmente profunda) alteração da duração tanto do ensino básico, que encurta, como do ensino secundário, que se alonga. Porque é que existe esta proposta? Ou seja, impõe-se elucidar os cidadãos sobre as orientações e necessidades educativas que fundamentam esta ampliação do ensino secundário (das escolas secundárias apenas?) em mais três anos de duração e sobre que melhorias se esperam e onde. Muito pouco se adianta. Apenas se refere a necessidade de combater o abandono escolar.
O CNE adverte para a necessidade e a relevância deste esclarecimento, que deve constituir, em qualquer circunstância, um ponto nuclear de debate público.
2 - O documento do ME traça cinco novos objectivos estratégicos para o ensino secundário, a saber, o aumento da qualidade das aprendizagens, superando um generalizado baixo nível de desempenho dos alunos, o combate ao insucesso e abandono escolares, que apresentam níveis muito elevados no secundário, uma resposta inequívoca aos desafios da sociedade da informação e do conhecimento, a articulação progressiva entre as políticas de educação e de formação e o reforço da autonomia das escolas, sustentado em maior capacidade de decisão, maior responsabilidade, maior independência das escolas e maior integração nas comunidades locais.
O CNE entende dever sublinhar de novo, reforçando a perspectiva estratégica enunciada, que a qualidade do ensino e das aprendizagens não depende apenas de alterações curriculares e ainda menos de modificações dos planos de estudos. Aspectos apenas vagamente aflorados neste projecto de reforma, como sejam a autonomia das escolas, a participação dos alunos, a ligação das escolas às comunidades locais, as práticas de administração e gestão das escolas, a multiculturalidade que povoa as escolas, a orientação escolar e profissional, a disponibilidade de recursos para as novas áreas criadas e a formação de professores são áreas centrais para a melhoria da qualidade das instituições educativas escolares, devendo por isso ser cruzadas com as alterações dos planos de estudo e dos programas.
3 - O ME persiste em colocar em debate público propostas de reforma que não procedem a qualquer apresentação de cálculos de custos. Não se pode saber, assim, o que se vai fazer, em que anos se vão concretizar as medidas propostas, em que prazos se vão cumprir as metas, quanto é que o Governo se propõe investir em cada modalidade. Esta proposta não é facilmente criticável por estar economicamente infundada, recusando enfrentar a necessidade de recursos para a executar, o que é particularmente preocupante num tempo de forte contenção da despesa pública.
4 - Quanto ao "aumento da escolaridade obrigatória até aos 12 anos", como também se refere no documento, o CNE entende que se trata de uma opção política generosa, inscrita no esforço que o país tem realizado para recuperar um atraso estrutural muito vincado, mas é também uma opção que comporta riscos sociais e económicos, que é preciso acautelar previamente, que implica uma transformação profunda do nível secundário, de modo a acolher todos os portugueses, sem excepção, e que exige um esforço financeiro que importa calcular de antemão. Além disso, o CNE entende que esta decisão política, que não deve patrocinar qualquer abaixamento da qualidade do ensino e da formação, em vez de enfatizar a obrigatoriedade dos cidadãos em frequentar mais três anos de escolaridade, deveria valorizar o papel e o esforço do Estado e de todas as outras instituições promotoras de ensino e de formação na criação de condições de universalização do acesso ao nível secundário.
Esta questão, no entanto, deverá ser discutida não em sede de revisão curricular, mas em sede de alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo, objectivo para que se aponta no documento do ME.
5 - O documento explicita de seguida que, de facto, não vai apresentar a referida reforma do ensino secundário na sua globalidade, mas apenas "a arquitectura curricular" dos cursos das escolas secundárias, gerais e tecnológicos. No prazo de três meses após o encerramento do debate público deste documento, que é de dois meses, serão então colocados em debate documentos orientadores para o ensino profissional, ensino artístico, formação profissional, ensino recorrente de adultos e ensino de português no estrangeiro. Este procedimento inviabiliza uma visão global por parte da sociedade portuguesa acerca do que será a "reforma do ensino secundário".
O debate actual tem vindo a realizar-se, assim, suportado em intervenções fragmentadas e irregulares do Ministério da Educação. Estas características ficam evidenciadas pelo facto de ser anunciada uma significativa "reforma do ensino secundário", que passará por integrar no ensino secundário os três anos do 3.º ciclo do ensino básico (alterando a Lei de Bases do Sistema Educativo) e, em simultâneo, os documentos produzidos, em tempos e com tonalidades diferentes, revelarem "linhas orientadoras" para uma pequena parte do que entendemos por "nível secundário de ensino e de formação", ou seja, apenas se referem as escolas secundárias e aos seus dois tipos de cursos.
Quando se esperava a fundamentação de uma "reforma do ensino secundário", restam-nos três textos soltos e quase que exclusivamente focados sobre as escolas secundárias. Parece-nos pouco aconselhável, desde logo, separar modalidades alternativas de formação, sobretudo porque se destinam à mesma população, os jovens que terminam o ensino básico, e depois porque correm o risco de surgirem desconexas, sobrepostas e até concorrenciais entre si.
6 - Pouco valor se dá à definição da identidade do ensino secundário. Opta-se por enfatizar a "consolidação da diversidade da oferta no secundário", fazendo desta diversidade uma trave mestra de adaptação "às aspirações dos alunos e famílias", "às necessidades do mercado de trabalho e do modelo de desenvolvimento do país". Definem-se cinco modalidades para este patamar de ensino e de formação: (i) o ensino científico-humanístico (o novo nome dado aos cursos gerais, que adopta uma designação carregada de equívocos e indutora da percepção de que se trata de uma via com um estatuto superior, a única que é científica e humanista); (ii) o ensino tecnológico; (iii) o ensino profissional; (iv) o ensino artístico vocacional; e (v) a formação vocacional ou aprendizagem. A sua definição assenta no tipo de saída que cada modalidade é suposta proporcionar. Assim, pela mesma ordem, as modalidades proporcionam (i) o prosseguimento de estudos; (ii) quer o prosseguimento de estudos, quer a inserção no mercado de trabalho; (iii) preferencialmente a inserção no mercado de trabalho; (iv) a formação em artes performativas; e (iv) exclusivamente a inserção no mercado de trabalho.
O CNE entende que esta diversidade é um bem social que importará garantir, desde que se salvaguarde que à diversidade não se encostam fenómenos de discriminação social e cultural e que ela não seja o fundamento para criar novas clivagens entre os jovens. Ora, o facto de se afirmar que os cursos de formação em alternância, chamada também de "formação vocacional" e de "aprendizagem", numa profusão semântica pouco rigorosa, se destinam "exclusivamente para a inserção no mercado de trabalho", consagra uma diversidade que contraria o princípio da equivalência educativa global de qualquer percurso de nível secundário, como ficou lembrado acima, e conduz facilmente a uma discriminação que pensamos indesejável, injustificada, contraditória com os princípios que se advogam e prejudicial para o fomento das vias técnicas e profissionais.
7 - Esta diversidade, no entanto, carece de várias precisões conceptuais e de muito maior rigor, sob pena de não haver um correcto entendimento de cada uma das cinco modalidades (exceptua-se o ensino recorrente, porque é uma modalidade de segunda oportunidade). Assim, tanto o ensino profissional como a "formação vocacional" ou "aprendizagem" precisam de ser mais distintamente definidos e, de preferência, de um modo positivo. Também o ensino artístico especializado é aqui menorizado, carecendo de definição do seu papel, da sua amplitude e da sua oferta, ao longo do País.
8 - Pouco se fala da mobilidade entre estes percursos, o que é uma questão central, tanto na perspectiva da oferta, pois se trata do mesmo serviço público estatal que se dirige ao mesmo estrato da população, os jovens de 15 anos e as suas famílias, como na perspectiva da procura, pois muitos jovens só depois de estarem dentro do nível secundário é que se apercebem da necessidade e da importância, para a reorientação do seu trajecto pessoal, de mudar de modalidade formativa. Importaria esclarecer devidamente os jovens e as famílias, bem como os psicólogos e os conselheiros de orientação, acerca dos dispositivos de mobilidade intermodalidades, sua extensão, complementaridade entre percursos e entre escolas, uma vez que esta mobilidade é condição imprescindível de universalização do acesso e do sucesso neste nível de ensino e de formação.
Todavia, o CNE não pode concordar com a colocação de quaisquer barreiras ao prosseguimento de estudos, seja a nível de especialização tecnológica, seja a nível superior, politécnico ou universitário, em qualquer das modalidades e nos seus cursos. Essas barreiras atentam contra a autonomia de outros níveis e modalidades de ensino e formação, são discriminatórias e potencialmente geradoras de efeitos perversos nas escolhas das oportunidades de formação, criam clivagens entre ofertas de primeira e de segunda categoria, geradas no mesmo centro emissor, o Ministério da Educação, que a todas tutela, além de atentarem também contra todas as disposições nacionais e internacionais que visam favorecer a aprendizagem ao longo da vida.
9 - Os documentos não abordam com a clareza necessária a questão da rede escolar do nível secundário. Ora, esta rede, que conta com muitas centenas de instituições educativas, de diversa índole e com diferentes tipos de administração e gestão, constitui um bem precioso de que o país dispõe para dar oportunidade a todos os portugueses de realizarem percursos de formação após o 9.º ano. No entanto, ela só servirá os alunos se estiver disponível, em cada localidade, para acolher a enorme variedade de interesses, de aptidões e expectativas, o que implicará alterações muito profundas não só na actual configuração da rede como no perfil de oferta de cada uma das instituições. O CNE entende que estas instituições deveriam ser incentivadas a funcionar localmente em articulação, cruzando competências específicas e recursos próprios, favorecendo a permeabilidade entre percursos de formação, para melhor servirem os jovens e responder a uma universalização crescente da frequência do nível secundário.
10 - Esta proposta contém vários aspectos positivos, que nos apraz sublinhar: (i) a passagem das provas globais a um instrumento de avaliação facultativo, para ser usado conforme decisão de cada escola; (ii) a melhor distribuição da carga de exames pelos 11.º e 12.º anos; (iii) a criação das unidades lectivas de noventa minutos; (iv) a criação de uma área de projecto tecnológico, em interligação com os estágios, nos cursos tecnológicos.
Não nos parece, contudo, que seja isento de críticas o abandono do princípio do exame nacional a todas as disciplinas, uma vez que abre as portas a fenómenos de eleição de certas disciplinas e de desvalorização de outras, enviezando a importância de um currículo e de uma formação inicial multidimensional dos jovens. Também nos merece preocupação especial a implementação das unidades lectivas de noventa minutos, uma vez que não se vislumbra nos documentos do ME qualquer atenção quer à reformulação dos programas quer à necessária e inadiável formação de professores, para que esta medida, plena de potencialidades, não se transforme numa grande perda de eficiência.
Apreciação na especialidade
11 - Torna-se necessário clarificar a interligação entre a conclusão do nível secundário e o acesso ao ensino superior, pois é sabido que ou essa articulação se define agora, no início da revisão curricular, ou nunca mais se fará de modo equilibrado e adequado às escolhas por parte dos jovens. Esta clarificação não consta da presente proposta. Seria de todo o interesse educativo para os jovens que frequentam o nível secundário que o ensino superior definisse os seus próprios mecanismos de ingresso, autónomos em relação ao modo de conclusão dos cursos de nível secundário.
12 - No que se refere agora ao ensino proporcionado pelas escolas secundárias, a escolha do conjunto de cursos gerais (5) e tecnológicos (10) que se apresenta nos documentos carece de qualquer fundamentação. Porquê estes, e não outros? É importante esclarecer por que é que se acrescenta um curso geral e se eliminam cursos tecnológicos em vigor (e com procura) e se adicionam novos cursos; por que é que, por exemplo, não surge o curso de Turismo e surge um de Desporto. Não se percebe também como é que estas opções se inscrevem no referido "modelo de desenvolvimento do País".
Se é verdade que o Governo refere a necessidade de combater "a pressão das visões utilitárias da formação para o mercado de trabalho", também é verdade que não se explicitam quaisquer outras pressões ou necessidades da sociedade portuguesa que subjazem à eleição realizada. Esta proposta não deve ser autista, deve conter um projecto social e expressar uma dimensão de envolvimento de toda a sociedade portuguesa.
13 - A este propósito importa lembrar que a área da Mecânica tem fortes tradições no nosso ensino tecnológico e que existe um conjunto de 60 escolas secundárias com competências para oferecer formação de qualidade nesta área. Ela possibilita o desenvolvimento de competências em domínios básicos e nucleares para a produção industrial, tais como o estudo de materiais, a maquinagem, a pneumática, a hidráulica, a automatização e a automação, o ensaio de materiais, a metrologia dimensional, a soldadura e os tratamentos térmicos, o frio e a climatização, as energias alternativas, o comando numérico de máquinas, etc. Não parece aconselhável desperdiçar estes recursos e, por isso, o CNE recomenda maior ponderação e uma revisão desta medida inexplicada de supressão do Curso Tecnológico de Mecânica.
14 - Quanto ao Curso Tecnológico de Química não nos parece adequada a sua supressão, num momento em que a sociedade e a economia tanta atenção dedicam às questões ambientais, à saúde e ao controlo de qualidade. Trata-se, de facto, de uma área de desenvolvimento científico e tecnológico que se interliga com actividades económicas e sociais em crescimento, com enorme utilidade social. A formação de auxiliares laboratoriais e de sistemas de qualidade revela-se um campo de vasta aplicação na sociedade e na economia portuguesas.
15 - Sugere-se a manutenção de uma área de projecto, ao longo dos três anos, e não apenas no 12.º ano, com menor carga horária, susceptível de desencadear dinâmicas de aprendizagem interdisciplinar, tão necessárias à inserção sócio-cultural dos jovens no mundo de hoje. O trabalho de projecto deve ser valorizado no nível secundário porque proporciona aos alunos o desenvolvimento de atitudes, capacidades e competências fundamentais para a inserção social numa sociedade valorizadora do conhecimento, contribuindo assim para o sucesso pessoal e profissional, ao longo de toda a vida. Entre elas, sublinham-se a cooperação, o trabalho em equipa, a elaboração, aplicação e avaliação de projectos, a autonomia, a argumentação, o conhecimento do mundo actual, a capacidade crítica e a criatividade. Sendo "um espaço de confluência e de integração de saberes e competências", o seu carácter terminal é anacrónico, sendo ainda mais desajustado ligar a sua inserção curricular à "preparação para o prosseguimento de estudos", além de criar um fosso enorme entre o ensino básico, em que é uma área curricular obrigatória, e o termo do ensino secundário.
16 - Entendemos que a experiência do passado nos aconselha a não voltar a criar no 12.º ano uma distinção tão vincada nas cargas horárias dos alunos dos cursos gerais e tecnológicos (embora ela exista também no 10.º e no 11.º ano, não é tão vincada), pois esse caminho vem criar dois novos problemas. Por um lado, o dos jovens que frequentam os cursos gerais, que ficam com horários dispersos e não completos e, por outro, a sobrecarga dos alunos que frequentam os cursos tecnológicos, com sérias consequências no que se refere aos modos de acesso ao ensino superior.
17 - Além disto, o CNE quer sublinhar que a redução da carga horária dos cursos de ensino secundário não pode constituir, isoladamente, uma finalidade orientadora da configuração de um currículo educativo, pois outras há, muito mais importantes e primeiras, que deveriam estar equacionadas e não estão. Se esta redução pode facilitar o enriquecimento da formação e do desenvolvimento dos jovens, através do acesso a outras actividades formativas complementares, pode também constituir uma ocasião de empobrecimento desta mesma formação, se tivermos em conta os jovens que ficam assim privados do acesso a esse enriquecimento, seja porque a família não o pode proporcionar, seja porque a escola não o faculta.
18 - Parece-nos positiva a perspectiva da obrigatoriedade da formação em Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), pois ela pode, além de fomentar uma cultura tecnológica de base necessária a todos, esbater diferenças sociais e culturais no acesso às oportunidades da chamada "sociedade da informação". Saber aceder, tratar, criticar e usar a informação disponível por meios electrónicos é cada vez mais uma competência que todos os cidadãos devem possuir. Além de relembrarmos que seria mais adequado inserir esta área de formação no fim do ensino básico, no 9.º ano, entendemos que esta formação deveria ter uma carga horária menor do que a prevista e deveria conter dois níveis, um de iniciação e um de desenvolvimento, sob pena de muitos jovens se sentirem frustrados na sua frequência, dado já terem ultrapassado o nível de iniciação.
Entende também o CNE que uma disciplina deste tipo só será eficiente se estiver muito articulada com todas as actividades escolares, mormente com as actividades da "área de projecto", acima referidas, podendo haver, inclusivamente, uma quase completa interligação entre as duas actividades curriculares. Importa ainda cuidar da formação de professores e do correcto apetrechamento das escolas, sob pena de uma oportunidade se constituir em logro. Estas perspectivas poderiam vir a ser mais plenamente desenvolvidas se fosse criada a figura de um professor-coordenador das TIC em cada escola.
19 - A criação, nos cursos tecnológicos, de um estágio profissional obrigatório parece-nos uma medida adequada, quando enquadrada numa perspectiva de fortalecimento da ligação das escolas secundárias às organizações económicas e dos respectivos cursos às empresas. Entendemos que é infeliz a afirmação de que os estágios não devem "sacrificar a componente de formação geral", pois eles constituem exactamente uma riquíssima fonte de formação geral dos cidadãos, favorecendo o desenvolvimento de saberes e de competências essenciais para uma boa inserção sócio-profissional. Não nos parece pertinente o estabelecimento de um número de horas rígido e a obrigatoriedade da realização do estágio "em contexto real de trabalho". Muitas escolas não se encontram localizadas em meios que lhes possibilitem o cumprimento desta obrigatoriedade e muitas empresas não se encontrarão disponíveis para acolher estagiários. Seria mais oportuno, por isso, adoptar uma concepção de estágio mais abrangente, aberta a várias modalidades de experiências de trabalho, porventura realizadas em ritmos diferenciados.
20 - No que se refere aos planos de estudo propostos, o CNE, sem qualquer carácter de exaustividade, pretende expressar algumas preocupações sobre a estrutura curricular proposta: (i) a inexistência de uma disciplina de formação humanista, no 12.º ano, que contemple a reflexão sobre o ser humano, a ética, o sentido da participação social, a reflexão sobre o mundo contemporâneo, as relações interpessoais e a cidadania, contraria várias recomendações internacionais e empobrece a formação dos jovens numa área nuclear para o desenvolvimento pessoal, para a aproximação dos povos, para a compreensão do mundo e da vida e para a paz; (ii) parece-nos que haverá um empobrecimento da formação científica e cultural dos jovens, se passar a ser obrigatória a frequência de apenas uma disciplina de formação específica, o que dificulta também o acesso ao ensino superior, porque limita fortemente o leque de opções dos jovens; (iii) também não parece aconselhável a possibilidade de não haver Matemática Aplicada nos cursos de Ciências Sociais e Humanas e nos cursos de Artes, bem como de permitir a realização de um curso de Línguas e Literaturas (estudos com componente de Português) sem Literatura Portuguesa, durante os três anos do ensino secundário, e ainda a ausência de disciplinas como Física e Química, Biologia e Geologia nos cursos de Ciências e Tecnologias, pois tal contribuirá para aumentar a iliteracia científica e técnica; (iv) também não deveriam ser abandonadas as formações em técnicas laboratoriais, essenciais à experimentação e rigor científicos, além de constituírem uma componente de formação imprescindível nas áreas tecnológicas da saúde e do ambiente; (v) e, finalmente, a expressão plástica deve manter-se como componente específica do curso de Artes.
Além disto, nos cursos tecnológicos, empregam-se indiscriminadamente em diversas disciplinas as designações de "práticas", "técnicas" e "oficinas", sem que se perceba o seu alcance, o que pode constituir motivo de desorientação para alunos e famílias; suscita, ainda, forte preocupação a indefinição do desenho curricular de diversos cursos tecnológicos, cujas disciplinas de especificação são enunciadas como "a definir".
21 - Parece-nos muito positivo o objectivo enunciado de caminhar em direcção a uma "plena integração das políticas de educação e formação vocacional de forma a eliminar a sobreposição das ofertas de educação/formação e a concretizar os princípios da educação e da formação ao longo da vida". Este objectivo ficaria mais claro, como dissemos, se os documentos orientadores do ME abrangessem também as modalidades de formação artística e profissional, integradas no nível secundário.
22 - O objectivo de rever o plano de estudos e o modo como se ensina e aprende no ensino secundário é de louvar e só peca por tardio. No entanto, o CNE sublinha que não se compreende o real alcance desta revisão num momento em que o ME anuncia para breve uma alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo, através da criação de um novo ciclo de estudos no ensino secundário. O CNE teme que, dentro de muito pouco tempo, se vá assistir a novos debates públicos sobre novas alterações curriculares, decorrentes dos novos consensos obtidos em sede de Assembleia da República.
23 - Finalmente, o CNE considera que o ME poderia aproveitar o ensejo anunciado de vir a colocar em debate público, brevemente, um novo documento sobre as restantes modalidades de ensino e de formação do nível secundário, para apresentar uma nova proposta de reforma do ensino secundário, agora mais global e integrada, mais fundamentada e, sobretudo, mais capaz de lançar dinâmicas de esperança na melhoria do ensino e da formação.
13 de Fevereiro de 2003. - O Presidente, Manuel Porto

Declaração de voto

1 - O Ministério da Educação agiu acertadamente suspendendo a reforma herdada do anterior Governo.
2 - Entendo que deve suspender a revisão curricular para cujo projecto é pedido agora o parecer do CNE.
3 - O Ministério deve preparar uma mudança de modelo promovendo uma verdadeira reforma, que, para ser efectiva e não uma maquillage que apenas agravará a prestação dos docentes e o aproveitamento escolar dos alunos, integre todos os elementos em relação implicante no sistema, nomeadamente vias de ensino, cursos, programas, livros, reciclagem/recuperação de docentes e formação dos professores.
4 - Simultaneamente com a preparação qualificada dessa reforma, o Ministério deverá intervir no terreno, como, aliás, muito justamente, começou a fazer, tendo presente o que é mais urgente e possa, tão depressa quanto possível, ter efeitos na mudança da cultura e na realidade das escolas, nomeadamente nos dois planos seguintes:
4.1:
a) Infra-estruturas físicas e equipamento;
b) Direcção e gestão das escolas;
c) Exigência na aprendizagem, avaliação, publicitação dos resultados;
d) Reposição da autoridade do professor e exigência disciplinar (ligada, obviamente, à exigência e à qualidade do ensino: se não há exigência na aprendizagem, para quê a atenção dos alunos?).
4.2 - Intervenção urgente nos seguintes domínios:
a) Ciência e cultura científicas: enfrentar o recuo traduzido na reforma de 2001 em vigor, respondendo à recomendação do Encontro de Bolonha, para todos os países da União, recomendação que num país com o atraso científico do nosso deverá ser assumida com um maior e mais rigoroso empenho;
b) Formação tecnológica;
c) Tempos livres, com o lançamento de uma grande acção geral; desporto; participação cívica, intervenção social, dos alunos e das escolas; associativismo juvenil;
d) Abandono escolar (tendo presente que, entre outros factores, está ligado à inutilidade da escola, sentida e experimentada por muitos alunos e pais);
e) Acesso ao ensino superior.
Guilherme Valente.
Declaração de voto
Votei favoravelmente este parecer em virtude de estar de acordo com o teor global das reflexões, das análises e das sugestões nele contidas. Trata-se, na verdade, de um texto claro, sucinto, objectivo, rigoroso e de índole marcadamente prospectiva. Julgo, no entanto, que devem ser sublinhadas algumas referências presentes no documento, devendo também ser chamada a atenção para alguns aspectos nele omissos, no entendimento de que estamos todos conscientes de que é preciso mudar, mas mudar para melhor. E, para que isso aconteça, é urgente sabermos para que tipo de homem a formar caminhamos e para que tipo de sociedade a construir nos dirigimos.
1 - O parecer deveria acentuar, com mais ênfase, que a "Reforma" de qualquer subsistema de ensino deve ter presentes as suas implicações nos demais subsistemas.
2 - Seria mais adequado referir que o centro de qualquer "Reforma" é constituído não apenas pelos alunos mas também pelos professores; pois sendo a acção educativa sustentada numa relação, embora ela se dirija à pessoa do aluno, pressupõe necessariamente a pessoa do professor.
3 - Deveriam ser mais salientados os aspectos positivos da proposta do Ministério da Educação, nomeadamente os seguintes:
a) A autonomia das escolas, enquanto abertura de possibilidade para o exercício das liberdades de ensinar e de aprender, através da apresentação de projectos educativos próprios;
b) A implementação de um secundário forte (exigido, naturalmente, pelo processo de Bolonha, no subsistema do ensino superior), formativo e não eminentemente selectivo;
c) O favorecimento de respostas aos desafios da sociedade da informação e do conhecimento, bem como a atitude de combate ao insucesso e ao abandono escolares;
d) A recusa da visão utilitarista da formação, salientando o seu carácter humanista e a afirmação dos valores do personalismo;
e) A educação para a diferença e a modernização dos percursos de formação;
f) A articulação entre a educação e a formação vocacional, bem como entre as respectivas políticas (embora "o mercado deva estar fora da escola"). Tudo isto em ordem à "interiorização de uma cultura de participação e de responsabilidade" na "plena consciência das opções que potenciam a liberdade e o desenvolvimento dos alunos, como indivíduos e como cidadãos".
4 - Chamo, contudo, particular atenção para o ponto III - 20 do parecer, onde, ao "expressar algumas preocupações sobre a construção curricular proposta", se refere que "a inexistência de uma disciplina de formação humanista, no 12.º ano, que contemple a reflexão sobre o ser humano, a ética, o sentido da participação social, a reflexão sobre o mundo contemporâneo, as relações interpessoais e a cidadania, contraria várias recomendações internacionais e empobrece a formação dos jovens numa área nuclear para o desenvolvimento pessoal, para a aproximação dos povos, para a compreensão do mundo e da vida e para a paz". Julgamos que estes objectivos devem ser cometidos à disciplina de Filosofia, e não a outra disciplina qualquer. Pois, para além de numerosos cursos superiores exigirem uma formação filosófica de base, não se afigura inteligível a prossecução dos objectivos de índole epistemológica enunciados na "Proposta" sem a inclusão no currículo daquela disciplina; é, assim, infundada e injustificada a exclusão da disciplina de Filosofia, no 12.º ano. Verifica-se, inclusivamente, no momento que vivemos da cultura, uma necessidade acrescida da Filosofia, o que exige o exercício do princípio filosófico por excelência - o questionamento, princípio do próprio pensamento.
As grandes tendências da nossa cultura, impregnada do espírito da modernidade, confrontam-nos com inúmeros desafios se apostarmos numa visão integral do homem. Afirmar a Filosofia é afirmar a cultura de um povo, é potenciar a fidelidade a essa dimensão integral do homem, sem quaisquer reducionismos, tentando reencontrar e activar todas as forças vivas do espírito para que, tanto na ordem do conhecimento como na da ética, a sede e o sentido da verdade, bem como as exigências da sua busca constituam fermento activo da nossa cultura.
A marca mais profunda do homem contemporâneo consiste na fuga diante do pensamento. Dominado pela massa gigantesca da informação, encandeado pelo espírito da investigação e condenado pelo ritmo da História à acção incessante, não lhe resta nem disponibilidade nem tempo para contemplar, no sentido forte desta palavra. Por isso, nunca o homem conheceu tanto de si mesmo, mas, talvez, nunca o homem se ignorou mais a si mesmo. Há, portanto, que retornar, cada vez com mais intensidade, à Filosofia. E a questão de fundo que, neste retorno, cedo ou tarde, se colocará aos responsáveis pela decisão educativa, é uma questão crucial: que espécie de homens queremos nós formar?
Ora nada há de verdadeiramente humano que não seja expressão da vida do espírito ou da força da actividade do pensamento que rompe a clausura do espaço mental, liberta o tempo da dispersão e do transitório das modas pseudo-culturais e repõe o sentido de um diálogo mais aberto e responsável nas grandes encruzilhadas da condição humana, sobretudo face ao imprevisível dos choques da História.
A Filosofia dá estruturação ao pensamento; é insubstituível num processo de formação. É uma base necessária de apoio a qualquer saber. Por isso, é apontada, em texto da UNESCO, como "da maior importância ainda hoje - directa ou indirectamente - para a instituição da democracia, para o fortalecimento dos direitos do homem e para a salvaguarda da paz". É que a reflexão fundamental, veiculada pela Filosofia, é necessária à vida, embora não a possa substituir, uma vez que o pensamento não é senão uma parcela da própria vida; contudo, esta reflexão é um momento necessário à acção como movimento através do qual o homem sai de si mesmo, indo ao encontro do universo inteiro, manifestando o homem na sua totalidade.
A Filosofia, porque insubstituível, acompanha a experiência da Humanidade no decurso da sua História e enriquece organicamente todo um legado do pensamento humano. A Filosofia, quando tem raízes nativas em quem a cultiva, ascende, com o correr dos anos, à atitude da sabedoria. Viver é partir; e "filosofar é ir adiante por sobre as tentativas abortadas de empecer o homem com fidelidades à terra onde ele não cabe de maneira nenhuma".
Será, assim, através da disciplina de Filosofia, dotada de um programa moderno e inovador, leccionada ao longo de todo o secundário por professores adequadamente preparados, que, adquirindo uma formação crítica, livre e aberta, os jovens aprenderão a recusar um tipo de mundo "onde se encontra toda a gente e não se encontra ninguém", onde, no fluxo do vivido, não se reconheça a presença do "outro", de modo que, superando o senso comum, acedam à racionalidade e à autenticidade, construindo uma verdadeira profilaxia à alienação do sujeito. Há que responder à dificuldade que o homem tem em se encontrar consigo próprio, pois "o homem aprecia tudo, nas ruas da cidade, só não se lembra de quem é". Este desvelamento do ser compete à Filosofia e é insubtituível por qualquer outro saber a inserir nos currículos do sistema de ensino.
Cassiano Reimão

Parecer n.º 1/2003