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AUTONOMIA E GESTÃO DAS ESCOLAS

03 de fevereiro, 2016

AUTONOMIA E GESTÃO DAS ESCOLAS

CONTRIBUTOS DA FENPROF PARA UMA REVISÃO URGENTE DO ATUAL REGIME

A importância da gestão democrática

A gestão democrática das escolas esteve sempre no caderno reivindicativo da FENPROF, porque as questões relativas à autonomia, direção e gestão dos estabelecimentos de ensino são da maior relevância para a vida das escolas - pela dimensão política que assumem e pela forma como influenciam as relações de trabalho e o clima de escola.

As alterações legislativas introduzidas nesta área, particularmente a partir de 2008, representam um grave retrocesso no funcionamento democrático das escolas. A concentração de poderes num órgão de gestão unipessoal, inibindo as práticas democráticas colegiais e até os processos eleitorais, ou a limitação da participação dos professores nas decisões pedagógicas e de política educativa, são sinais de um novo paradigma: o gerencialismo na educação escolar.

O impacto negativo do atual modelo é cada vez mais sentido nas escolas, sendo frequentes situações de abusos de poder, que levam a um crescente sentimento de insegurança e de medo. A situação só não é mais grave porque as características pessoais de alguns diretores vão conseguindo ainda contrariar a natureza do modelo e as práticas que favorece. Sete anos passados sobre a entrada em vigor do DL 75/2008 torna-se, assim, por demais evidente que muitos dos problemas que as escolas hoje enfrentam estão relacionados com a sua organização e gestão. A construção de um outro regime de direção e gestão das escolas torna-se, assim, um objectivo reivindicativo da maior importância para os professores e para a FENPROF.

O modo de vida democrático aprende-se com experiências democráticas. É pela prática democrática e através do exercício de direitos essenciais como a participação e a eleição, que se vive a democracia. As crianças e os jovens são socializados – ou não – para os valores da democracia, da cidadania, do diálogo, da participação, através da vivência   numa   organização   onde   estão   cada  vez   mais   anos   da   sua   vida.   A

 

 

democratização do governo da escola deve, por isso, ser defendida não só pelo seu valor intrínseco no quadro da garantia dos direitos sociais e de cidadania, mas também pelo seu impacto na promoção de uma educação para a democracia e para a participação social e cívica. A elegibilidade e a colegialidade dos cargos de direção e gestão (de topo e intermédia) são marcas distintivas da administração das escolas em Portugal. E a FENPROF considera que a assunção destes princípios é absolutamente decisiva para a promoção de uma escola pública e democrática. Uma escola que não é democrática no seu funcionamento e organização não educa para a democracia.

 

O Programa Aproximar Educação

Algumas das distorções do modelo actual ficaram bem patentes no recente processo de delegação de competências para as autarquias ao abrigo do Programa Aproximar Educação (PAE). Um processo em que os professores foram totalmente colocados à margem e em que os diretores foram os principais interlocutores das autarquias, em detrimento dos Conselhos Gerais, que supostamente teriam de dar parecer positivo, mas cuja posição foi ignorada, sempre que da votação resultou a rejeição do modelo. Esta situação desmonta a retórica inconsequente da autonomia das escolas, que alegadamente o PAE pretende reforçar – ideia paradoxal, num quadro em que as autarquias passam a intervir nas áreas curricular, pedagógica e de gestão de recursos, com as escolas a perder ou a partilhar com os municípios competências que anteriormente estavam na sua esfera de decisão.

A FENPROF denunciou o secretismo que caracterizou a negociação e assinatura de contratos interadministrativos de delegação de competências com 15 municípios, assim como a ausência de uma discussão séria e ponderada sobre o conteúdo e as implicações dessa contratualização (ao nível do financiamento da educação pública, da gestão pedagógica e curricular e da gestão do pessoal docente). Inaceitável é a dupla tutela que deixará a escola entre o poder concentrado do centro e o poder municipalizado, numa espécie de centralismo local. Ou, ainda, que a transferência para os municípios seja feita, em parte, com as competências que hoje estão atribuídas à escola. Em consulta nacional, por voto secreto, os professores portugueses votaram não à municipalização da educação (98% dos votos expressos). Neste contexto, a FENPROF defende a suspensão deste projeto-piloto, alertando para os riscos associados à municipalização da educação: o acentuar de assimetrias entre escolas de diferentes municípios; o descomprometimento do Estado em termos de financiamento e responsabilidades sociais; um maior controlo sobre as escolas; o aumento do clientelismo, do sentimento de insegurança e da desmotivação dos professores.   

Por se tratar de uma reconfiguração do sistema educativo, a FENPROF exige que qualquer processo de transferência de novas responsabilidades para o poder local tem de ser objeto de debate público e negociação com as organizações representativas da comunidade educativa. Um debate que garanta o envolvimento das escolas e dos professores, valorizando as suas posições e os seus contributos. E deve ser enquadrado por uma ideia que reflita os caminhos e as condições para a descentralização administrativa do país.

 

A necessidade de descentralizar

O programa do XXI governo constitucional (p. 109) afirma “promover a descentralização e a desburocratização do sistema educativo, enquanto elementos indispensáveis para que as escolas e os agrupamentos possam trabalhar num clima que lhes permita estar mais focados no que os alunos têm que aprender”. Refere ainda que é fundamental consolidar e alargar significativamente o regime de autonomia, administração e gestão das escolas e agrupamentos, como elemento central do esforço de descentralização das competências até agora concentradas no Ministério da Educação, com reforço da legitimidade e da responsabilidade dos seus órgãos de administração e gestão. Este esforço tem como elemento fundamental a consolidação da autonomia pedagógica das escolas e dos professores”.

A FENPROF tem reafirmado que a valorização da escola, como espaço organizacional dotado de autonomia, só é possível num quadro de descentralização da administração educativa, considerando que enquanto esta se mantiver fortemente centralizada, a autonomia das escolas continuará a ser sistematicamente contrariada, quer por uma regulamentação excessiva, quer por práticas de ingerência da administração.

 

A irracionalidade dos mega-agrupamentos

Destas, releva-se a imposição administrativa de mega-agrupamentos de escolas – um exemplo paradigmático da prevalência de critérios economicistas sobre critérios de natureza pedagógica e uma opção de ordenamento da rede que urge corrigir. A FENPROF considera indispensável uma avaliação e revisão da constituição dos atuais agrupamentos de escolas, de forma a garantir a racionalidade da sua organização pedagógica, uma gestão de proximidade e a humanização dos espaços escolares.

 

 

 

 

As propostas da FENPROF

Descentralizar é transferir poderes (competências e meios) do nível central para outros níveis do sistema. Neste sentido, importa clarificar que competências devem ser descentralizadas e para que órgãos. A FENPROF defende há muito a transferência de competências para o nível local e para a escola e, a estes dois níveis, para órgãos próprios, democraticamente legitimados e com adequada representação escolar e comunitária. 

No que toca ao local, a Federação defende a criação de Conselhos Locais de Educação (CLE), estruturas onde os municípios têm um papel importante mas não determinante. Estes CLE são órgãos locais de administração educativa, de representação ampla e pluralidade de interesses, com competências próprias (por exemplo, a organização da rede escolar e a definição das áreas vocacionais a adoptar no ensino secundário ou das componentes curriculares locais). Não são órgãos de tutela das escolas – são instâncias privilegiadas de territorialização das políticas educativas nacionais e espaços de encontro das escolas de uma determinada área, que aí devem poder articular e potenciar projetos educativos que, autonomamente, cada uma concebe, desenvolve e avalia.

Ao nível da escola, a FENPROF defende a existência de um órgão de direção forte, a que chama Conselho de Direção, constituído por representantes de todos os intervenientes diretos na vida da escola (professores, funcionários, alunos e pais/encarregados de educação), com poderes no domínio das decisões de política educativa e de orientação pedagógica. Para a Federação, a gestão escolar deverá estar subordinada ao poder democrático do órgão de direção. As propostas de FENPROF prevêem a existência de um Conselho de Gestão, composto por uma equipa eleita de professores, a quem cabe realizar a gestão quotidiana das escolas nos domínios pedagógico, administrativo e de pessoal, no respeito pelas orientações do órgão de direcção, cujas decisões lhe cabe executar e fazer executar.

No que toca concretamente à gestão pedagógica, a FENPROF entende o Conselho Pedagógico como o centro nevrálgico da pedagogia. O Conselho Pedagógico deverá ser uma secção do Conselho de Direção e, como órgão de direção pedagógica da escola, deverá caber-lhe a definição do modelo de organização do processo de ensino/aprendizagem, nomeadamente o tipo, as competências e a composição das estruturas pedagógicas intermédias, tornando o seu funcionamento menos burocrático, reforçando a coordenação pedagógica e a articulação curricular e adequando-o à realidade de cada comunidade educativa. Deverá, ainda, competir ao Conselho Pedagógico a flexibilização e a organização dos espaços, tempos, agrupamentos de alunos e apoios educativos.

Assim, este órgão deverá ser composto por educadores e professores eleitos pelas estruturas de gestão intermédia e de supervisão pedagógica. O presidente do Conselho Pedagógico deve também voltar a ser eleito pelos membros desse órgão.

 

Reforçar a autonomia das escolas

Paralelamente às competências que deverão ser transferidas para o nível local, a FENPROF defende que as escolas têm que dispor de uma efetiva autonomia em áreas essenciais e que, nesse âmbito, devem, nomeadamente, poder:

§  tomar decisões curriculares, tendo em conta os contextos sociais, culturais e económicos e a sua adequação ao nível pedagógico e administrativo (sem por em causa o currículo nuclear nacional);

§  definir o seu modelo de organização, com vista ao desenvolvimento dos seus projetos educativos e dos processos de ensino-aprendizagem, de modo a que estes promovam a consecução dos objetivos gerais e específicos aprovados pelas escolas;

§   definir a composição e as competências das estruturas de gestão intermédia;

§  decidir sobre a organização dos espaços, tempos, e números de alunos por turma;

§  definir e gerir os créditos horários destinados ao desenvolvimento de projetos e ao desempenho de cargos, incentivando a colegialidade e a cooperação;

§  elaborar as suas regras internas de funcionamento, assumindo o regulamento interno como um instrumento ao serviço das opções expressas no Projeto Educativo de Escola.

 

A FENPROF defende que a autonomia das escolas não deve implicar:

§  a contratação dos docentes pelas escolas (ou pelos municípios). A situação de enorme instabilidade a que estão ainda sujeitos milhares de docentes ver-se-ia agravada num contexto de arbitrariedade e falta de transparência e equidade.

§  a livre selecção dos alunos pelas escolas. O Estado tem a obrigação, constitucionalmente consagrada, de organizar uma rede pública de educação que permita aos alunos frequentar uma escola próxima da sua residência. Se isso não for garantido, é o próprio direito à educação que é posto em causa.

§  a dotação global de um orçamento às escolas, que inclua despesas com pessoal. Sendo necessária uma maior intervenção das escolas na determinação dos seus orçamentos, assim como uma maior flexibilidade na gestão das verbas relativas às despesas correntes e de capital, a atribuição desta dotação global, sobretudo no quadro de sub-orçamentação a que as escolas estão sujeitas, criar-lhes-ia dificuldades acrescidas, por um lado porque poderiam vir a ter que equacionar dispensar pessoal para poder fazer face a outras despesas, e por outro porque teriam que afectar mais recursos humanos à gestão financeira, acabando por prejudicar o desenvolvimento de trabalho na vertente pedagógica.

§  a atribuição às escolas de personalidade jurídica para efeitos de recurso a créditos bancários, numa lógica de auto-financiamento. Independentemente das receitas próprias que algumas escolas já hoje conseguem obter, sublinhamos a responsabilidade do Estado no financiamento da rede pública de educação e ensino.

 

É comummente aceite que é necessário reforçar a autonomia das escolas. Importa, contudo, clarificar o conceito de autonomia - quando falamos de autonomia falamos de poder de decisão, de democracia e de participação? Ou apenas da possibilidade de as escolas executarem de forma mais ou menos criativa decisões centrais? Ou ainda da desregulação do sistema público de ensino e da sua privatização?

A autonomia das escolas não é uma questão técnica, é uma questão essencialmente política. Por isso, as medidas de reforço da autonomia podem assumir diferentes objectivos e modalidades de concretização, em função das perspectivas políticas que as sustentam. São estas perspectivas que têm que ser discutidas, no quadro de um projeto político nacional e dos princípios fundadores da Escola Pública, como um bem comum: a universalidade do acesso, a igualdade de oportunidades e a promoção do sucesso educativo de todos. E por isso dizemos que pode defender-se a autonomia das escolas, recusando a desresponsabilização do Estado em matéria de educação e ensino, recusando a desregulação da oferta pública nacional de ensino, recusando um sistema de recrutamento de professores arbitrário e pouco transparente e recusando a desregulamentação da profissão docente e a restrição de direitos essenciais à sua dignificação e indispensáveis ao desenvolvimento da escola como um espaço mais autónomo, livre e democrático.

1.fevereiro.2016