Nacional
Mário Nogueira:

"A Escola Pública, como o país, não resiste mais a políticas que a agridem continuadamente"

06 de julho, 2014

A Escola Pública, como o país, não resiste mais a políticas que a agridem continuadamente, pelo que se torna indispensável romper com esse caminho e, definitivamente, avançar para outro que tenha como horizonte um futuro diferente, que seja melhor do que o presente que nos está a querer a triturar. Estou certo que, unindo vozes e vontades, saberemos construir esse futuro de mudança. Basta que continuemos juntos pela Escola Pública.

As palavras são de Mário Nogueira e foram ouvidas no passado dia 4 de julho (sexta-feira) no 1º Encontro de Educação "Juntos pela Escola Pública", promovido pelo Município de Santa Cruz, na Região Autónoma da Madeira.

Aqui deixamos a comunicação do Secretário Geral da FENPROF nessa oportuna iniciativa de debate e reflexão:

Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite para participar neste debate e saúdo a Câmara Municipal de Santa Cruz pela escolha deste importante tema para o seu primeiro encontro sobre Educação. Confirma-se, assim, que o poder local democrático está atento aos ventos que sopram no nosso país neste tempo em que somo governados por quem coloca acima dos interesses de Portugal e dos portugueses outros que lhes são alheios.

Começo com uma afirmação verdadeira: a Escola Pública é melhor! E justifico: é melhor porque promove um ensino de qualidade, porque se organiza para garantir uma efetiva igualdade de oportunidades, porque se esforça para ser inclusiva e tudo isto num contexto democrático em que as portas estão abertas a todos, sem distinguir condição económica, social, cultural ou qualquer outra. A Escola Pública que temos ainda é a Escola de Abril, a Escola Democrática.

À Escola Pública se deve uma extraordinária obra nestes últimos 40 anos contando com êxitos como:

. A quase erradicação do analfabetismo;

. A universalização da oferta de educação pré-escolar;

. A capacidade muito positiva de organização e funcionamento que permitiu dar resposta a sucessivos e muito importantes alargamentos da escolaridade obrigatória;

. A capacidade de criar espaços de integração onde todos puderam estar e que agora se deverão tornar de inclusão, para que todos possam aprender;

. Uma redução, ainda insuficiente, é certo, mas ainda assim significativa de abandono e insucesso escolar;

. A possibilidade de milhares de jovens, filhos e filhas de trabalhadores, terem conseguido chegar ao ensino superior, aí obtendo elevadas qualificações;

Somos pela qualidade

Têm alguns operadores privados de educação desenvolvido uma postura e um discurso curiosos: o ensino privado é melhor que o estatal; nós somos pela qualidade, logo, somos contra o papel promotor do Estado; todavia, não dispensamos o dinheiro do Estado, ou seja, estatal, isto é, dos contribuintes, desse não abrimos mão e até queremos mais.

Depois, num discurso que a cartilha ideológica desses operadores nunca dispensa, desenvolvem uma argumentação em que articulam, de forma demagógica, uma alegada melhor qualidade educativa nos colégios privados, com algo a que chamam “liberdade de escolha” e com uma prática designada por “cheque-ensino”. Entretanto, vão-se governando com o chamado contrato de associação, certos de que, do seu lado, está o atual governo, cujo guião para a reforma do Estado, divulgado pelo vice Primeiro-ministro, aponta inequivocamente no sentido da privatização.

Este discurso contra as escolas públicas deve ser publicamente questionado para que se perceba a demagogia. É melhor o ensino privado porquê? Porque nas escolas públicas não há alunos que atinjam os resultados dos que frequentam os colégios? Não é verdade. Porque nos rankings que são feitos a partir da média das classificações obtidas em exames nacionais há mais colégios nos primeiros lugares do que escolas públicas? Há sim senhor. A razão todos a conhecemos: compara-se o que não é comparável para se obterem os resultados desejados.

Voltemos então à liberdade de escolha para continuarmos o questionamento: trata-se de um direito de quem? Façamos o seguinte exercício: os pais de um grupo de crianças e jovens de um dos bairros mais problemático do Funchal ou de concelho próximo, no exercício do seu direito de “liberdade de escolha”, pretendem matricular os seus filhos num dos colégios reconhecidos pelos elevados resultados académicos dos seus alunos. Quem decidirá se os jovens irão ou não frequentar esse colégio? Aqueles pais ou a direção do colégio? Sendo a resposta óbvia, todos percebemos então o que pretendem os operadores privados: poderem continuar a escolher quem os frequenta, mas aliviar-lhes os encargos por conta de um cheque que teria a assinatura de todos nós, os contribuintes.

A questão não está na existência de ensino privado e na possibilidade de escolha por parte dos pais. Esse é um direito que deverão poder exercer, mas, havendo oferta educativa pública de qualidade, deverão os que optam por outra solução assumir, também financeiramente, a sua escolha. A todos os outros meninos e jovens, aqueles que, pelas mais variadas razões (condição financeira, localização geográfica ou simples opção da família) permanecerão na Escola Pública, e esses serão sempre a maioria, não pode ser proporcionado um ensino de menor categoria. Daí que o Estado, a todos, esteja obrigado a oferecer, promovendo, o acesso a um ensino e uma educação de elevada qualidade, bem como, em nome do princípio constitucional da igualdade de oportunidades, condições de sucesso escolar e educativo.

Pilar fundamental do regime
democrático

A Escola Pública, sendo um pilar fundamental da Democracia, tem consagração na Constituição da República que o atual governo está permanentemente a violar. Está presente no artigo 73.º, designadamente no seu número 2, no 74.º e, de uma forma que não deixa dúvidas sobre o papel do Estado, no 75.º. A este propósito, não poderei deixar de assinalar os riscos de degradação a que a nossa democracia tem estado sujeita, com responsáveis políticos a afirmarem que, uma vez que o Tribunal Constitucional não lhes faz a vontade, é preciso mudar os juízes por outros que estejam amestrados ou mesmo, não vá o diabo tecê-las, acabar com o Tribunal Constitucional, tal como ele existe. Não há dúvida que há quem, 40 anos depois, ainda sinta dificuldade em lidar com a democracia e o Estado de Direito Democrático, mas esse é um problema que, não estando ainda resolvido, deverão tentar resolver.

É evidente que, para os operadores privados, transformar a Educação em negócio e submetê-la às regras do mercado – compra melhor e mais quem tiver dinheiro para isso – é apetecível, ou não valesse o mercado mundial da Educação, de acordo com contas feitas pela OMC, 10 vezes mais que o mercado automóvel.

Mas não se trata apenas de uma questão financeira. Como todos os portugueses já compreenderam, a privatização da Educação, como da Saúde, da Segurança Social pública ou até da água é parte da matriz ideológica do atual governo da República. Deixarmos que ele conseguisse concretizar esse objetivo levaria a que fosse cometido um erro de difícil reparação, como afirmou o Professor António Nóvoa. Muitos o têm repetido e de forma insuspeita, como é o caso de Diane Ravitch, que foi subsecretária de Educação da administração Bush, no seu mais recente livro (publicado há menos de um ano), intitulado “Reinado do erro: a farsa do movimento de privatização e o perigo para as escolas públicas americanas”.

Trata-se de um livro em que, segundo a autora, se mostra que as escolas estão em crise, essencialmente, devido aos persistentes e orquestrados ataques que lhes são dirigidos, bem como aos seus professores e diretores e ainda aos princípios da responsabilidade pública pela educação pública. Esses ataques criam um falso sentido de crise e servem os interesses dos que querem privatizar as escolas públicas.

Para Ravitch, o ensino público não só tem a ver com o conhecimento e com a aprendizagem, mas também com o desenvolvimento da personalidade e com a formação plena do cidadão para a nossa sociedade. Diz ainda que se trata de ajudar a inspirar pensadores independentes e não apenas a aperfeiçoar habilidades de trabalho ou a preparar os jovens para a faculdade. A educação escolar pública é essencial para a democracia, sendo necessário educar os cidadãos para que transportem a democracia para o futuro da sociedade.

Em Portugal, ainda que os contextos políticos se tenham apresentado adversos, as respostas positivas desta Escola Pública são uma realidade, tal se devendo aos seus profissionais, aos estudantes e suas famílias, aos autarcas e a outros atores educativos que nunca desistiram, nem resignaram e tudo têm feito por esta Escola Pública de matriz democrática.

A Escola Pública sempre cumpriu com elevada dignidade a sua missão, mas esse talvez seja o problema. Aqueles que querem ajustar contas com Abril, colocaram a Escola Pública, a par de outras construções democráticas da nossa sociedade, no centro dos seus ataques. E foi nesse quadro que lhe impuseram fortes cortes orçamentais, reduziram drasticamente recursos humanos fundamentais, foram criados mega-agrupamentos que desumanizam e desorganizam pedagogicamente as escolas, se empobreceu o currículo escolar, estreitaram aprendizagens, reduziram competências e foi eliminada a formação cívica.

Referi, há pouco, a reforma do Estado que o governo pretende levar por diante, concretizando-a até ao final da Legislatura, ou seja até ao próximo ano. Pelo guião, confirma-se que a Educação não integra o que chamam de núcleo de funções essenciais do Estado, pelo que, a concretizar-se tal reforma, a Educação ficaria à mercê de interesses privados podendo isso acontecer diretamente, por esquemas manhosos de contratualização ou por processos perigosos de municipalização. Nesse contexto, reafirma-se, os alunos tenderiam a ser tratados como mercadoria e a Educação como produto de mercado.

Verdadeiras alternativas

Mas não basta criticar. São precisas propostas que constituam verdadeiras alternativas. Algumas que se consideram das mais importantes são as seguintes:

- A aprovação de uma Lei de Financiamento da Educação que estabeleça regras claras e competências bem definidas neste domínio, para todos os graus e níveis de ensino;

- A consagração de um modelo de gestão verdadeiramente democrática das escolas, assente no primado do pedagógico e que preveja a participação, em níveis adequados, dos diversos agentes educativos;

- Um quadro de verdadeira autonomia, reconhecendo-se às escolas, essencialmente no plano pedagógico, o poder de decidirem em questões essenciais e estabelecerem regras próprias numa perspetiva de autogoverno e num contexto de responsabilização;

- Uma rede escolar adequada às necessidades das populações;

- Um quadro de referência que contribua para uma educação verdadeiramente inclusiva;

- A garantia de recursos humanos adequados, quer em quantidade, quer em formação, tanto docentes como não docentes, incluindo técnicos especializados;

- A existência de boas condições de trabalho e de estabilidade para todos os profissionais das escolas;

- A realização de uma adequada reorganização curricular, na sequência de um amplo debate social e político, bem como a alteração do regime de avaliação dos alunos, hoje perigosamente condicionado a uma panóplia de exames;

- A criação de uma ação social escolar que constitua fator de discriminação positiva, no quadro de gratuitidade de frequência de todo o percurso educativo e escolar para que a nossa Constituição e a Lei de Bases do Sistema Educativo apontam.

Estas são, sem esgotar a listagem, medidas fundamentais para uma política alternativa à atual que não tem a Educação como prioridade e, cada vez mais, a entende como despesa e não investimento.

A Escola Pública, como o país, não resiste mais a políticas que a agridem continuadamente, pelo que se torna indispensável romper com esse caminho e, definitivamente, avançar para outro que tenha como horizonte um futuro diferente, que seja melhor do que o presente que nos está a querer a triturar. Estou certo que, unindo vozes e vontades, saberemos construir esse futuro de mudança. Basta que continuemos juntos pela Escola Pública. / MN