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UMA HISTÓRIA PARA ADORMECER - O Rei Midas, o Senhor Primeiro, o outro Senhor e os 400 milhões

08 de setembro, 2008

O Rei Midas era rico.

Não suficientemente rico, pensava. Queria mais. Não quis ser mais feliz, não quis ser mais saudável, não quis ser mais culto. Quis ser mais aquilo que já era: rico!

Por artes mágicas, como sempre acontece nas fábulas, lá conseguiu a formidável capacidade de transformar em ouro tudo o que tocasse. Formidável, de facto. Trágico também. Terrivelmente trágico. O pobre do Rei enriqueceu ainda mais, contudo, à medida que enriquecia nem se apercebia de que se isolava da Humanidade à sua volta. Os servos, os súbditos, os amigos e os familiares desapareciam em ouro vertidos à sua volta. Por fim, também os alimentos. O rei ficou só, definhou e morreu!

Nunca se percebeu donde veio tamanha cegueira. Não se explica na história. Penso, salvo maior clarividência interpretativa, que a ideia é que cada um de nós encontre em si a resposta. Esta possibilidade põe-me a bailar na mente dois senhores: o Senhor Primeiro e o outro Senhor!

A historieta, como todas as fábulas, parece simples, parece até para crianças. Não é uma coisa nem outra. A sua complexidade é tal que não são todos os adultos, não todos os estudiosos que conseguem alcançar-lhe o sentido. É aquele balançar entre a tentação do material e a pulsão espiritual. É aquele decidir difícil entre ter e ser.

O Senhor Primeiro já decidiu.

José Sócrates anunciou, altivo, ao país que transformaria a Educação Portuguesa em ouro! 400 milhões de euros serão investidos! Disse à nação, para a adormecer, para a despreocupar e distrair dos verdadeiros e profundos problemas que investiria todo este ouro na Escola portuguesa. Mas investi-los em quê? Nos alunos? Não! Nos funcionários? Não! Nos professores? Não! Ou seja, em nada que respire, sinta ou anseie. O Senhor Primeiro vai investir em computadores!

Sejamos claros: qualquer investimento que melhore as condições de trabalho nas escolas é bem-vindo, contudo, há prioridades. Quantos milhões pretende o Senhor Primeiro investir em seres humanos por cada milhão investido em máquinas? Não se sabe, não foi dito!

Sejamos claros: os computadores, as redes informáticas, as videovigilâncias, os quadros interactivos, tudo isso é muito lindo, muito interessante e muito útil mas QUEM DÁ AS AULAS SÃO OS PROFESSORES E QUEM APRENDE COM ELAS SÃO OS ALUNOS.

Será fácil adormecer a população incauta dizendo-lhes que nunca se investiu tanto na Educação em Portugal. Resta acordar os adormecidos e perguntar-lhes se sabem quantas décadas, séculos, tivemos de sub-investimento. Resta acordá-los perguntando-lhes se sabem que o mais grave não é haver 40 mil professores no desemprego, o mais grave é haver 40 mil no desemprego e fazerem falta nas escolas muitos destes 40 mil! Fazem falta mais professores nas escolas para se construir uma Escola melhor.

E é nesta altura que se me atravessa na mente esta ideia perigosa: será que o senhor primeiro pensa que os problemas da Educação em Portugal se resumem à falta de computadores ou, pior ainda, se resolvem com eles? Espero que não mas não creio nesta esperança. De resto, já outro senhor tentou o mesmo.

O Outro Senhor tentou ensinar sem professores.

Certo cientista, muito lido, estudado e conhecido, por crença fervorosa ou fé na ciência sua e dos computadores criou um sistema de ensino-aprendizagem sem professores! Os alunos consultavam o computador, estudavam por ele os conteúdos e, depois, nele faziam testes de conhecimento onde eram omitidos os seus erros. Sempre que erravam recebiam nova pergunta. Sempre que acertavam recebiam um aplauso. No momento a ideia pareceu peregrina. Essas crianças foram à sua vida e cresceram. Hoje em dia são adultos e foram consultados por gente curiosa. As reacções foram de diferente ordem excepto num aspecto: todos concordaram que não colocariam os seus filhos em tal sistema. O tal sistema tinha, entretanto morrido! É que os promotores da iniciativa aperceberam-se rapidamente de que os jovens aprendentes eram afectivamente carentes, não tinham capacidade de sofrimento nem resistência à frustração, estavam perdidas na sua "aprendizagem" pois faltava-lhes a atenção, o acompanhamento, a confiança e até o afecto e o carinho.

Bem vistas as coisas, o resultado era previsível e a experiência foi cruel.

Bem vistas as coisas, a tremenda complexidade de ensinar e de aprender remonta aos primórdios da Humanidade e como tal é intrinsecamente humana. Enquanto seres humanos, somos efémeros e temos a trágica consciência disso. Ensinar e Aprender são as formas que temos de combater esta transitoriedade. É o caminho a trilhar para que se preservem os valores, as experiências e o conhecimento. É a única maneira de garantir a evolução.

Sempre que se exclui o factor humano neste processo, abate-se o fracasso.

Logo, pensar uma Escola sem professores, ou com grandes investimentos financeiros que não considerem os professores como elemento central, fulcral e indispensável ao funcionamento e sucesso da escola, é adiar o progresso da escola, é matar o seu espírito construtivo e progressivo.

Podemos pensar e aceitar diversos modelos e formas diversas de funcionamento da Escola mas nenhuma delas dispensa um significativo investimento e uma clara assunção da centralidade e da indispensabilidade dos seus responsáveis científicos e pedagógicos: os professores.

Remanescem questões para além da historieta para adormecer incautos: que investimento humano se fará? Quem verte os computadores e os quadros interactivos em ferramentas didácticas efectivas? Quem acompanha os alunos? Quem constrói materiais para os computadores? Quem resolve os problemas educativos profundos do quotidiano dos nossos alunos? Quem se lembra de que não podemos esquecer o factor humano?

Os 400 milhões parecem bem.

Entre parecer e ser vai uma distância histórica e diametral.

Aqui se invoca, a propósito, o provérbio: nem tudo o que luz é ouro.

Investir 400 milhões em recursos materiais é bom. Esquecer os profissionais que vão rentabilizar tais recursos é duplamente mau. Mau porque ignora os profissionais. Mau porque desperdiça os recursos em que se investiu.

Diz o Senhor Primeiro e a Primeira Senhora da Educação repete que se investe nos computadores mas também nas famílias por via do alargamento da acção social escolar.

Pergunto eu, de que serve um balde maior para mandar a água borda fora se a tempestade não cessa de aumentar?

Vejamos: para além do ridículo que tão grandioso investimento representa, a saber, setenta cêntimos por aluno necessitado, a tempestade das dificuldades assume proporções inimagináveis quando concluímos que o aumento que o aumento da acção social escolar não cobre. Sequer, o aumento dos manuais escolares. Ou seja, grosso modo, cada família necessitada receberá mais cinco euros enquanto, só os manuais, sobem, em média, sete euros! Mais, de todas as áreas de gastos familiares a Educação é aquela que mais cresceu.

Daqui se infere que, por mais que o Senhor Sócrates anuncie facilidades e bonança, as famílias portuguesas continuarão a lutar contras as adversidades financeiras, contras a dificuldade de sustentar a educação dos seus filhos e, pior, muito pior do que isso, o investimento não abrange a sustentabilidade humana de tal educação, isto é, afinal, apesar dos computadores, muitos dos 40 mil docentes desempregados fazem falta à efectiva operacionalização e eficácia de tais ferramentas.

Agarrar na mão.

Quando alguém não sabe ou não pode para onde levar a sua mão, o mais bonito, solidário e valoroso gesto humano, é haver uma pessoa disponível para agarrar na mão perdida com a sua e orientá-la nos gestos e nos caminhos a percorrer!

O senhor primeiro sabe que tem mãos, as dos alunos, a precisar de orientação, já lhes deu os computadores e quejandos electrónicos, resta saber esta coisa simples e fundamental: onde estão as mãos que orientam? Onde nos 400 milhões se contemplam as mãos que fazem falta?

O Rei Midas morreu só! A pior forma de morrer.

O Senhor Primeiro ainda não percebeu que vai morrer só: trágico!

O Outro Senhor, já nem do nome há memória! Sabem quem foi? Em que país foi?

Os 400 milhões podem ser muito mas também podem morrer na esterilidade.

A nossa obrigação humana e educativa é garantir o factor humano, é garantir que antes e depois da opinião do Senhor Primeiro e das campanhas de (des) informação que possa promover, lutaremos até aos limites das nossas forças para que não falte aos alunos do nosso país o acompanhamento, a orientação, o afecto, o conselho, tudo aquilo que as máquinas não fazem: ensinar-lhes o golpe de asa que lhes permitirá voar para além do horizonte das regras, isto é, a plena realização humana das suas capacidades e expectativas na construção de um mundo melhor.

Com ou sem computadores e quadros interactivos.

Já agora, INTERACTIVOS, quer dizer o quê?

João Paulo Videira
Secretariado Nacional da FENPROF