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"Público", 22/10/2007

O clima anti-sindical e as promessas não cumpridas (André Freire, ISCTE)

23 de outubro, 2007

Num artigo recente demonstrei que, na Europa, a ancoragem social das orientações ideológicas dos eleitores radica não só nas suas pertenças de classe e nível de religiosidade, mas também nas suas atitudes face às organizações representativas das duas grandes clivagens que tradicionalmente têm estruturado a divisão esquerda-direita.

Ou seja, os eleitores de esquerda têm atitudes bastante mais positivas face aos sindicatos; os de direita têm atitudes bastante mais positivas face à Igreja e às grandes empresas. E a história política ilustra claramente o relacionamento (relações orgânicas, alianças, etc.) dos partidos situados em cada um dos quadrantes ideológicos com as organizações referidas.

Por isso, muitas pessoas, nomeadamente socialistas, se espantam com o clima anti-sindical que este Governo tem criado.

Nas comemorações do 5 de Outubro, Dia Mundial do Professor, o Presidente declarou que "a figura do professor deve ser 'prestigiada e acarinhada' (...) (DN, 6/10/07)". Terá sentido que os professores não têm sido "prestigiados" e "acarinhados"... Provavelmente sim. Mas o primeiro-ministro viu naquelas palavras "uma palavra de incentivo ao Governo" (DN, 6/10/07)". Já os responsáveis pela "Educação" e "Ciência, Tecnologia e Ensino Superior" faltaram às comemorações... Terão interpretado de forma diversa o discurso? Alguns comentadores acharam que sim...

O primeiro-ministro "fez questão de distinguir os professores dos sindicatos (DN, 6/10/2007)". Começam aqui os episódios recentes da saga anti-sindical. Mas há vários antecedentes: por exemplo, desde que este Governo está em funções, já foram instaurados processos a 22 dirigentes da CGTP (Expresso, 13/10/07), etc, etc.

A 6/10, o primeiro-ministro visita Montemor-o-Velho e depara-se com uma manifestação de "dezenas de sindicalistas (...) que se deslocaram para protestar (...) contra as declarações do primeiro-ministro no dia do professor (...) (PÚBLICO, 8/10/07)". Sócrates terá sido apupado e declarou que se tratava de protestos conduzidos pelo PCP e que este "(...) confunde o direito de se manifestar com o direito de insultar (Idem)".

Entretanto, a GNR "afastou os manifestantes (...) e apreendeu-lhes as bandeiras e as faixas" (Expresso, idem) e instaurou mais três queixas contra sindicalistas: faltava a autorização do Governo Civil. Ilustres constitucionalistas consideram, todavia, que o direito fundamental à manifestação não deve carecer de autorização (Francisco T. da Mota, PÚBLICO, 20/10/07).

Dois dias depois, o primeiro-ministro desloca-se a uma escola da Covilhã e depara-se com uma manifestação de sindicalistas indignados, nomeadamente, com o facto de antes disso dois polícias à paisana se terem deslocado a um sindicato (SPRC), numa atitude que foi interpretada como intimidatória. Segundo São José Almeida, "os agentes foram enviados ao sindicato com base num fax enviado pela segurança do primeiroministro (PÚBLICO, 13/10/07)".

Na audição parlamentar do ministro da Administração Interna, Paulo Rangel (PSD) declarava que, com as suas atitudes anteriores, o primeiro-ministro teria "incitado" os polícias a irem ao sindicato (cito de memória). Seja como for, é errado ver os episódios da Covilhã como um caso isolado: eles inscrevem-se num clima anti-sindical recorrente suscitado pelas acções e omissões de vários membros do Executivo e são, primeiro, inaceitáveis do ponto de vista das liberdades democráticas e, segundo, estrategicamente erradas para um partido que ainda se chama socialista...

Mais estranho ainda é o silêncio ensurdecedor da famosa ala esquerda, excepção feita a Alegre.

A tentativa de associar os protestos sindicais exclusivamente aos comunistas, mesmo os que são promovidos pela CGTP, não é nova e é errada, como evidenciou, por exemplo, a manifestação com cerca de 200 mil pessoas em 18/10/07. Na educação, há uma frente de 14 sindicatos a contestar as políticas do Governo, entre eles a FNE/UGT.

E estas atitudes são uma ofensa a todos os membros da "tendência socialista" da CGTP. Segundo um estudo de Augusto Santos Silva, do conjunto dos militantes do PS sindicalizados, a divisão por centrais é a seguinte: 29,5%, UGT, e 16,8%, CGTP. E devemos também atentar nos artigos de Manuel Maria Carrilho acerca da necessidade de renovar e apostar mais nas políticas para a qualificação (DN, 24-26/9/07): "Tudo feito com o máximo de abertura, conquistando a adesão dos agentes e dos destinatários dessas políticas, sem o que - não haja ilusões! - nenhuma reforma tem verdadeiro sucesso."

É óbvio que, na educação superior e não superior, o PS não está a conseguir mobilizar os agentes, muito pelo contrário. Vejam-se as cartas de leitores no PÚBLICO, as petições sobre o novo regime jurídico das universidades, a contestação do CRUP às políticas de Gago, etc, etc.

Uma nota sobre os "insultos". Sinceramente, exceptuando talvez a utilização de palavrões, não sei bem o que isso é. E não vejo como é que isso pode ser usado para limitar o direito de manifestação sem se comprimirem liberdades fundamentais. Na dia da Hispanidad (12/10), em Barcelona, os ultradireitistas queimaram retratos do vice-presidente do governo catalão e líder da Esquerda Republicana da Catalunha, Josep Carod Rovira; em Lleida, os independentistas queimaram fotografias do Rei Juan Carlos [El Pais, 13/10/07).

Não consta que alguém se tenha indignado ou movido um processo judicial. Insultos? É apenas a expressão de divergências políticas em democracia, que por vezes é mais radical. Quando manifestantes chamam mentirosos a governantes que não estão a cumprir promessas eleitorais isso é um insulto ou apenas a utilização de linguagem vulgar para lhes lembrar que não estão a honrar os compromissos?

Não será a ideia do respeitinho demasiado salazarenta?


André Freire
Professor de Ciência Política (ISCTE)

"Público", 22/10/2007