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Passagens do Acórdão de 12/03/2008 do TC

07 de abril, 2008

(...)

C) O artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/2007

9.Por último, sustenta o requerente que é inconstitucional a alínea c) do nº 5 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 15/2007, na medida em que estabelece, como requisito para o recrutamento transitório para professor titular, por parte de professores que à data da entrada em vigor do referido diploma estejam nos 8º, 9º e 10º escalões, a prestação efectiva de funções.

Entende o requerente que a norma agora questionada - que, recorde-se, determina o seguinte: «Apenas podem ser opositores aos concursos referidos no nº 1 os docentes (...) que (...) não estejam na situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva» (itálico nosso) - ao desconsiderar as situações legalmente equiparadas à prestação efectiva de funções, poderá levar ao afastamento do concurso daqueles professores que estejam em dispensa de funções lectivas por razões de saúde, o que implicará violação do artigo 64º da Constituição (direito à protecção da saúde).

Deve antes do mais dizer-se que hoje, face às alterações introduzidas ao Estatuto pelo Decreto-Lei nº 15/2007, a expressão «redução da componente lectiva» tem um significado preciso. Com efeito, tal «redução» vem agora prevista nos artigos 79º e 80º do Estatuto, em que se admite que a «componente lectiva do trabalho semanal» possa vir a ser «reduzida» apenas por razões atinentes à idade e, ou, ao tempo de serviço (artigo 79º) ou por motivos relacionados com o «exercício de outras funções pedagógicas» (artigo 80º). As razões de saúde não integram hoje pois os motivos justificativos da figura «redução da componente lectiva», sendo antes agora equiparadas a prestação efectiva de serviço as «ausências» provocadas por «doença» ou «doença prolongada» (artigo 103º, alíneas b) e c) do Estatuto). Até há pouco tempo, porém, assim não era. Na sua versão original - aprovada pelo Decreto-Lei nº 139-A/90 - o Estatuto previa, no artigo 81º, e justamente para os casos de doença, a «dispensa da componente lectiva», que podia ser «total» ou «parcial». O artigo 81º veio a ser revogado pelo Decreto-lei nº 224/2006, de 13 de Novembro, que estabeleceu - nos seus artigos 3º, 4º, 5º e 6º - um novo regime, mais extenso e detalhado, para o procedimento a seguir em caso de obtenção, por parte dos docentes, de «dispensa da componente lectiva» por razões de saúde. Foi o artigo 25º, alínea g) do Decreto-Lei nº 15/2007 que revogou por seu turno todo este procedimento, assim se explicando que, depois da entrada em vigor deste último decreto-lei, a figura da «dispensa da componente lectiva [por razões de saúde]» tenha pura e simplesmente deixado de existir.

No entanto, é a ela mesma que se refere a norma questionada, quando exclui do universo dos docentes que podem ser opositores ao concurso transitório único para lugares da categoria de professor titular, aberto após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 15/2007 (nº 1 do artigo 15º), precisamente aqueles que estejam na situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva (alínea c) do nº 5 do artigo 15º). Pela sua própria formulação, a norma não pode deixar de abranger todos aqueles docentes aos quais se tenha ainda aplicado os regimes que vigoraram até 2007.

Sustenta o requerente que é inconstitucional semelhante norma, por afrontar ela o direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64º da CRP.

O direito que o artigo 64º da Constituição consagra é, tanto pela sua inserção sistemática quanto pela sua estrutura, um direito social. Ora, e como muito bem se sabe, os direitos sociais - por serem direitos a prestações fácticas e normativas a cargo do Estado - não têm em princípio um conteúdo que possa ser determinado a nível constitucional. Dependendo a sua concretização desde logo de opções do legislador, que age neste domínio de acordo com aquilo que lhe for historicamente possível, tais direitos só acabam por adquirir conteúdo liquido e certo no domínio da normação infraconstitucional. É por isso difícil aceitar que funcionem eles próprios, com o seu conteúdo não determinado a nível constitucional, como parâmetros de invalidade de acções do legislador ordinário - das quais depende, afinal, a sua concretização última. Precisamente por isso, diz o nº 1 do artigo 18º da Constituição que só os preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias (que não, portanto, os respeitantes aos direitos económicos, sociais e culturais) são directamente aplicáveis.

Contudo, tal não implica - não pode implicar - que sejam destituídas de efeitos as normas da Constituição relativas aos direitos sociais. Como o tem sublinhado a doutrina, os preceitos relativos a direitos fundamentais - e a todos eles: sejam direitos, liberdades e garantias, sejam direitos sociais - «não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares perante o Estado, designadamente para dele se defender, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir» (José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra, 2004, p. 115).

A ser assim, também o direito à saúde, consagrado no artigo 64º da CRP - e apesar de não poder ser ele próprio, pelas razões já apontadas, fundamento da invalidade da norma sob juízo -, não deixará de ter uma dimensão ou valência objectiva, que, irradiando para outros lugares do sistema constitucional, ajudará a esclarecer os limites que se impunham, in casu, ao legislador.

Tem sempre dito o Tribunal (cfr. supra, ponto 6, e jurisprudência aí citada), que o direito de acesso à função pública consagrado, como direito, liberdade e garantia pessoal, no nº 2 do artigo 47º da Constituição, inclui no seu âmbito o direito às promoções na carreira em condições de igualdade. Como se sabe, igualdade significa aqui uma realidade jurídica e não fáctica, pelo que, face ao âmbito de protecção da norma contida no nº 2 do artigo 47º, serão ainda isentas de censura aquelas normas infraconstitucionais que venham a estabelecer neste domínio diferenças que sejam fundadas em, ou que correspondam a, critérios de valor constitucionalmente relevantes.

Não é no entanto esse o caso da norma sob juízo.

Com efeito, ao excluir do universo de docentes que podem ser opositores ao concurso para acesso para professores titulares aqueles que se encontrem em situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva - o que, como já vimos, abrange as situações existentes até 2007, em que a figura «dispensa de componente lectiva» era precisamente aplicável em caso de doença -, o legislador está a introduzir, no sistema de regras relativas ao direito à promoção na carreira da função pública, uma diferença que não é fundada em nenhum valor constitucionalmente relevante. Para uma comunidade constitucional como a portuguesa, que elegeu a «protecção da saúde» como valor ou fim que ela própria deve prosseguir, nem outra conclusão se afiguraria possível, sobretudo se se tiver em conta que, no caso, a figura da «dispensa total ou parcial de componente lectiva» por motivos de saúde - tal como resulta do artigo 3º do Decreto-Lei nº 224/2006 - só pode abranger: (i) doenças que afectem directamente o exercício da função docente, e que desse mesmo exercício resultem [alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 3º]; e (ii) docentes que estejam aptos a desempenhar tarefas compatíveis em estabelecimento de educação ou de ensino, e cuja recuperação para o cumprimento integral do exercício de funções docentes seja possível no prazo máximo de 18 meses [alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 3º].

Assim sendo, ao introduzir tal diferença no regime do irrepetível concurso de recrutamento transitório o legislador lesa o direito consagrado no nº 2 do artigo 47º. O bem jusfundamental que aqui se protege - e que é precisamente o da igualdade na promoção da carreira - é negativamente afectado pela exclusão [nas candidaturas ao concurso] operada pelo nº 5, alínea c) do artigo 15º do Decreto-Lei nº 15/2007, sendo tal afectação negativa desproporcionada, porque excessiva face a quaisquer outros bens ou interesses que, através dela, se quisessem prosseguir.

III

Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
(...)

c) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no artigo, 15.º n.º 5, alínea c) do referido Decreto-Lei n.º 15/2007, por violação do nº 2 do artigo 47.º da Constituição.

Lisboa, 12 de Março de 2008

Maria Lúcia Amaral

José Borges Soeiro

Benjamim Rodrigues

Carlos Fernandes Cadilha

Joaquim de Sousa Ribeiro

Gil Galvão

João Cura Mariano

Vítor Gomes

Ana Maria Guerra Martins

Maria João Antunes

Mário José de Araújo Torres

Carlos Pamplona de Oliveira

Rui Manuel Moura Ramos